por Érico Nogueira
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A luta pelos direitos das minorias, e pelo respeito às minorias, é assunto recorrente, diário, nas páginas dos jornais. Não é para menos: a despeito do inevitável sensacionalismo — vício aparentemente inextirpável na era dos “clicks” e “likes” —, o tema é candente porque as agressões são prementes, e porque em pleno século XXI pessoas de carne e osso ainda são ultrajadas e mortas por conta da cor da pele e da orientação sexual. Até quando, Catilina?
Fugindo a todo e qualquer sensacionalismo, porém, é justamente a matéria homoerótica que caracteriza e distingue dois dos melhores livros lançados neste ano biruta de 2020 — os quais, destinados à condição de clássicos da literatura em língua portuguesa, seguramente vão transcender o ano louco (e fortuito) de sua publicação. Refiro-me a Arte Nova (Patuá), última recolha de poemas do grande poeta Wladimir Saldanha, e O País das Luzes Flutuantes (Filocalia), primeiro romance do também grande poeta Marco Catalão.
Se a matéria homoerótica irmana esses livros, o gênero literário e as estratégias de composição não poderiam ser mais diferentes — embora ambos os dois, nas suas inconciliáveis diferenças, sejam obras de arte igualmente consumadas. Começo pelo livro de poemas.
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Constante de cinquenta e três poemas de medida, extensão e assunto variado, Arte Nova — quinto livro de um dos mais cultos, finos, sensíveis e virtuosos poetas da língua portuguesa em atividade — é um longo elogio ao amor. Centrado na figura do efebo amado e adorado pelo homem maduro, o livro é todo ele abertura às delícias e epifanias do amor, razão por que nele pulsa uma vitalidade, uma urgência, uma afirmação do presente e da vida raras vezes alcançadas na língua de Camões. Ler um poema como “Enquanto o Mar nos Vaia”, que alucina e cativa já de início, ah…
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Recorta agora contra o mar teu rosto:
é bem ele o que cessa quando as ondas
continuam a se perder por gosto
em formas longitudinais, redondas
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que não param de ser… Já teu semblante
concentra alguma coisa que se gasta
em tanta agitação dessemelhante,
ao mar e ao coração dizendo basta.
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Explica sem falar à paisagem —
o corpo é algo que foi dar na praia
trazendo a nós naufrágio e salvatagem:
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dos gritos no escaler, por mais descaia
e quase vire, nasce a modelagem
de ser o que se é enquanto o mar nos vaia.
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é uma das alegrias que redimem e consolam os leitores de poesia neste ano catastrófico que teima em não acabar. Agora vamos ao romance.
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Alternando, em seus vinte e dois capítulos, basicamente dois planos, tempos e técnicas narrativas distintas — isto é, um presente de início mais prosaico que se coloca em primeiro plano, e que se vai entrelaçando (e enriquecendo) com um passado ardentemente poético, que constitui o segundo —, O País das Luzes Flutuantes é magistral homenagem a grandes nomes da literatura japonesa como Eiji Yoshikawa e Yasunari Kawabata, entre outros, sendo também um sensível e alentado estudo ficcional sobre a imigração japonesa no estado de São Paulo. O enredo gira em torno da amizade despretensiosa, fundada no jogo de gô, entre um menino brasileiro sem ascendência japonesa e o senhor Yasuro, seu vizinho — o qual, talvez farejando nele o futuro escritor do romance, lhe deixa um manuscrito em que conta sua literalmente inefável, indizível história de amor. Narrado em estilo elegante e lapidar — uma exceção, uma dádiva em meio ao pobríssimo fraseio jornalístico da quase totalidade dos romances brasileiros contemporâneos —, o livro tem tal densidade filosófica, e patenteia compreensão tão profunda da aventura humana, que, como disse, está seguramente destinado à categoria dos clássicos. Assim como a inimitável Arte Nova.
São dois alentos. São duas esperanças. Feliz Natal e Boas Festas.
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