A presença do Brasil sempre foi forte na vida de Eça de Queiroz. O pai nasceu no Rio de Janeiro, nos anos ainda pré-independência, quando o avô servia à corte de D. João VI. Rejeitado pelos pais porque nascido antes do casamento, Eça seria criado até os cinco anos por uma madrinha natural de Pernambuco; depois, na casa dos avós paternos, foi inesperadamente apresentado ao mundo da literatura pelo criado trazido do Brasil, que lia para o menino “histórias francesas” tiradas da biblioteca do avô. O internato onde estudou no Porto era cheio de alunos brasileiros, filhos de comerciantes e expatriados ricos. Já formado e romancista iniciante, iniciará colaboração de 17 anos com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro; logo depois trocará as famosas farpas com Machado de Assis e travará desgastante polêmica com o escritor Pinheiro Chagas por causa do artigo “Brasil-Portugal”; e por fim, já vivendo em Paris em seus últimos anos, mantém um coeso e infalível grupo de brasileiros em sua mais íntima roda de amigos, à frente dos quais está o intelectual e bon vivant paulista Eduardo Prado, talvez a figura que maior influência exerceu sobre ele nessa fase final. Duas de suas obras mais importantes, A Relíquia e A correspondência de Fradique Mendes, além de alguns contos, foram publicadas pela primeira vez no Rio de Janeiro.
A relação tumultuosa e os julgamentos em geral pouco generosos que o escritor fazia do Brasil não se manifestam com frequência nem força na sua obra de ficção — nada do calibre das sátiras maldosas que escreveu sobre o “estereótipo” do brasileiro em As Farpas1. “Duro e complicado é que eu lhe dê (…) a minha opinião sobre o seu Brasil”, disse ele pela boca de Fradique Mendes em carta fictícia a Eduardo Prado2. Mas o que geralmente aparece na ficção são referências esparsas e personagens brasileiros, em geral caricaturais, como o comendador Pinho na Correspondência de Fradique Mendes, cidadão “respeitável” mas insignificante, morador de uma pensão no centro de Lisboa onde engorda “pacífica e risonhamente”, sustentado pelos rendimentos de títulos públicos e passando uma existência regrada, silenciosa e absolutamente medíocre3.
Os Maias é sua obra mais significativa pelas dimensões e por concentrar basicamente tudo o que pensava em termos estéticos e políticos, embora não arrisque afirmar que seja a melhor — há muita concorrência na produção de Eça, inclusive em dimensões bem menores. Nela, a exemplo do resto, o Brasil explícito é limitado, e ganha carne e osso em particular no personagem Castro Gomes, um dândi afetado a carregar os erres como um francês, que faz passar por marido da bela Maria Eduarda, a futura amante de Carlos da Maia4.
Importante é o que está implícito, contudo, e o que o escritor soube colocar no papel na forma de críticas a Portugal e aos portugueses. A essência dessa crônica de costumes, dirigida a um outro país, numa outra época, é que nos espanta e incomoda por sua desconfortável atualidade. Os Maias pode ser lido menos como um romance, com enredo e drama, do que como uma radiografia cruelmente realista dos burgueses, aristocratas, intelectuais e funcionários públicos lisboetas em fins do século 19. A nova onda do realismo, ao qual Eça se referirá como “a análise com o fito da verdade absoluta”5, opõe-se aos românticos ainda fortemente influentes em Portugal. O relato desse cume da pirâmide social é espirituoso e envolvente como poucos escritores conseguiram ou conseguiriam fazer (vem-me à mente o Gógol dos contos de Petersburgo, estes porém em formato mais fragmentado), empurrando para um segundo plano até a história do amor entre os dois protagonistas, Carlos e Maria Eduarda, tal é o poder descritivo dos saraus, jantares e reuniões nos quais a alta sociedade discute o que é e o que deveria ser Portugal. E mais: por meio da inigualável habilidade de Eça na criação de personagens. Eu diria que nenhum outro ficcionista de língua portuguesa soube dar à luz criaturas em carne viva, com tamanho frescor e eloquente simbolismo, como o Conselheiro Acácio, João da Ega, as terríveis Juliana e Maria do Patrocínio, Dâmaso Salcede e tantos outros.
Dentro dessa perspectiva de crônica, encontramos em Os Maias uma involuntária e oblíqua leitura interpretativa do Brasil — não do Brasil oitocentista, que talvez não distinguiríamos tanto assim de Portugal, com seus 80% de analfabetos e sua monarquia decrépita, mas do Brasil atual. Para quem ainda não leu, o romance é uma sucessão de encontros entre amigos e pares — capitaneados pelo playboy Carlos da Maia e seu carismático melhor amigo, João da Ega. Seu esporte são as conversas sobre as mazelas políticas, sociais e culturais de Portugal, estimuladas pelo efeito do champanhe e do grogue, apenas interrompidas, lá e cá, pelo gosto generalizado e habitual de cometer adultério. Essas discussões dão o tom, a forma e a originalidade ao livro; para o bem ou para o mal, não veríamos em Machado de Assis tamanha insistência na reflexão sobre questões nacionais, pelo menos saindo de maneira tão direta da boca dos personagens. Nem em Esaú e Jacó, no qual a política mais aparece entre seus romances tardios, lê-se uma sombra da energia despendida pelos protagonistas ecianos na preocupação com o estado de seu país. Como bem explica Alfredo Campos Matos, um dos bons biógrafos do romancista português, “Machado construiu a sua narrativa a partir da vida interior de seus personagens, Eça a partir da sociedade de que pretendeu fazer o inquérito e a crítica, construindo efeitos de verossimilhança e de fascínio de leitura através da ironia”6.
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Passemos ao que diz Eça sobre Portugal por meio dos personagens de Os Maias. A conclusão final quem tira, como sempre, é o leitor; basta-lhe imaginação e boa vontade para transpor o oceano e o quase século e meio a separarem as duas realidades.
Diria eu que, de forma talvez excessivamente esquemática, a crítica mais frequente que Eça faz a seu país será a de importador de ideias e costumes. Proclama João da Ega em dois momentos:
Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita por nós, fica-nos curta nas mangas… [Capítulo 4]
… este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem caráter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro —modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha… Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado — exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. [Capítulo 18]
A crítica não corre à vontade só pelas páginas de Os Maias; aparece em muita correspondência sua, nas repetidas queixas de Fradique Mendes sobre o esfacelamento do “Portugal português” (a “saloia macaqueação”7) ou no artigo “O Francesismo”, escrito por volta de 1887, no qual compara os portugueses a “patos” que só fazem seguir o “ganso francês: “se ele para, com o bico no ar, todos paramos, com o bico no ar”. Nessa fase mais madura, depois da morte de Victor Hugo (talvez o escritor por ele mais idolatrado) e passada a experiência pouco feliz de cônsul na Inglaterra, Eça começa a apontar sua ironia tanto a Portugal quanto ao estrangeiro, deixando de enxergar a França como modelo e inspiração. Ao lado da literatura a decair nas mãos dos naturalistas, que despreza tanto quanto os românticos, o deslumbramento com Paris, irá arrefecer gradualmente ao longo dos 12 anos que lá passa, quando o escritor vira cético vocal da civilização industrial e de suas inovações técnicas.
Tal incongruência, típica do provincianismo de países pequenos ou periféricos como Brasil e Portugal, perseguirá nosso autor durante toda a sua vida madura, e deixará sem solução a questão do equilíbrio entre o patriotismo, por um lado, e a exagerada desvalorização de tudo o que é nacional, por outro. Vemos em Os Maias as baterias de críticas disparadas à vontade contra dois alvos opostos: os “importadores” de modas estrangeiras e os nativistas cegos. Claro que são duas faces das mesmíssimas moedas, o que mostra como o provinciano é um doente difícil de curar.
O Brasil oitocentista padece do mesmo mal: é conhecida a “hipocrisia” (para usar este termo tão atual) dos inconfidentes mineiros, dos liberais da Revolução Pernambucana de 1817 e da independência, tão libertários em seus escritos e discursos mas pouco dispostos a alforriar os escravos em suas propriedades. A Revolta dos Alfaiates, que estourou em Salvador em 1798, sugou muito mais do que as ideias iluministas, levando os insurretos a falarem com sotaque francês e se vestirem como jacobinos. Cem anos depois era a vez do Positivismo, a filosofia racionalista de Auguste Comte cujos cultos místicos eram aqui observados a sério como em nenhum outro país do mundo. Roberto Schwarz desenvolve a conhecida tese das “ideias fora de lugar” em seu celebrado (talvez excessivamente celebrado) estudo sobre Machado de Assis8, mas a mania da imitação acrítica permanece vibrante entre nós — Dâmaso Salcede, o ridículo personagem do romance de Eça a chamar de chic qualquer coisa com cheiro ou gosto francês, pronto para fugir para Paris a qualquer sinal de confusão, é constrangedoramente próximo dos nossos compatriotas das redes sociais, exibindo-se embasbacados nas viagens ao exterior . O que não dizer dos nomes em inglês dos prédios comerciais e condomínios, esses World Trade Centers e Exclusive Residences que pipocam nas nossas cidades? Fora da esfera cômica, pensemos nas políticas de cotas mal pensadas, aplicadas como nos Estados Unidos numa realidade majoritariamente mestiça, na qual milhões de pobres de todas as origens esperam alguma oportunidade oferecida pelo poder público.
É claro que o embevecido admirador e macaqueador precisa, para ser congruente, jogar seus ovos podres contra o país em que nasceu. Fazem isso os personagens de Eça e nós, brasileiros do século 21. Quando alguém lança a ideia de uma invasão espanhola9, Ega, sempre ele, avalia a miséria de sua raça, que
…educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o músculo como perdera o caráter, e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa… [Capítulo 6]
Teodorico Raposo, herói de A Relíquia, traça um perfil semelhante:
…as ocupações únicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos modernos lusíadas – descansar encostado às esquinas, ou tristemente carregar fardos alheios… [Capítulo 4]
Quantas vezes escutamos o mesmo diagnóstico “biológico”, determinista, entre nós? O brasileiro não tem caráter, espinha dorsal ou retitude moral para enfrentar seus próprios problemas, muito menos ameaças externas… A medicina para sarar Portugal desses exercícios de autoimolação seria o nacionalismo inocente, pastoral dos últimos anos de Eça, que resultou em A Cidade e as Serras, nos lamentos nostálgicos de Fradique e na bela cena final de Os Maias, quando os dois personagens centrais se sentam na recém-inaugurada Avenida da Liberdade para ridicularizar a “mocidade pálida” e admirar a velha Lisboa das colinas ao redor. A citada carta de Fradique a Eduardo Prado também projeta o sonho de um Brasil arcádico, avesso à influência europeia. Desde o século 19, deparamos com esse tipo de olhar estrangeiro interessado na preservação rousseauniana do habitante primordial, em prejuízo do progresso e de suas contaminações, morais e literais — lemos as mesmas aspirações no racista Gobineau, em Stefan Zweig, nos atores de Hollywood contemporâneos e, claro, em certos adeptos das “esquerdas românticas” que só veem charme e beleza na miséria das periferias e das comunidades. Embora não seja o que Eça defende — nisso é explícito —, é curto o passo a separá-lo da utopia estética que nos quer morando em ocas, se for esse o preço de salvar a floresta e a “originalidade”.
O mesmo provincianismo que fabrica o deslumbrado importador de ideias e o iconoclasta impiedoso será também responsável pela existência do ufanista kitsch que passeia, de peito estufado, pelas páginas de Os Maias. Essas criaturas são a cara e a coroa da mesma moeda. As encarnações do nacionalista histriônico têm dois perfis: o do bom Alencar, o poeta romântico esquecido, cujos olhos se umedecem de “paixão patriótica” nas discussões sobre ser português, e o do esnobe conde de Gouvarinho, sob vários aspectos semelhante ao orgulhoso Karênin de Tolstói10, rindo com superioridade dos detratores da terra: “a inveja que nos têm todas as nações por causa da importância das nossas colônias, e da nossa vasta influência na África”, e das “grandes glórias” do passado, alardeia. [Capítulo 12]
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Falando em esnobes, outro importante alvo da crítica de Eça em seu romance é o pseudointelectual. Também ele é um camaleão; traveste-se de grandioso homem de Estado, diplomata, artista medíocre, flâneur inútil, eclesiástico — todas essas figuras marcantes na obra de Eça de Queiroz, marcantes porque tão características de sua época e de seu país, da mesma forma tão características de nossa época e de nosso país. O debate que permeia o romance é quase sempre débil, rasteiro, inconsequente. Por exemplo:
… os literatos estirados pelas poltronas — havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismarck, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flamejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metafísicas, as próprias certezas revolucionárias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquetes. [Capítulo 4]
Engraçado como o pseudointelectual de Eça não é limitado pela miséria moral: ele pode ser mau ou bom, não importa. Os melhores personagens do livro — os “heróis”, se assim podemos chamá-los — também caem fácil nos pecados do esnobismo, da futilidade e do diletantismo. Carlos e Ega são diletantes, e parecem mesmo orgulhar-se disso. O primeiro, formado em medicina, monta um lindo consultório cujo frequentador mais assíduo é o faxineiro. Os manuscritos de sua ambiciosa obra científica não passam de material coletado, queixa-se ele com o avô Afonso:
— mas quando se trata de por as ideias, a observação, numa forma de gosto e de simetria, dar-lhe cor, dar-lhe relevo, então… então foi-se!
— Preocupação peninsular, filho [retruca o avô Afonso] (…) O português nunca pode ser homem de ideias, por causa da paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a ideia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado não hesita… vá-se pela água abaixo o pensamento, mas salve-se a bela frase. [Capítulo 9]
A “preocupação peninsular” pode ser lida, do ponto de vista da teoria estética, como fruto do pensamento do autor sobre o papel da forma na obra de arte. Para nossos propósitos, porém, é defeito antigo, percebido pelo avô na geração do neto; é o vírus que o faz vagar de um interesse a outro, ora na literatura, ora nas belas artes, ora na decoração, arquitetura ou música, mas focado de verdade apenas nos saraus e nas amantes. Sérgio Buarque de Holanda e Luiz Costa Lima tiveram muito a dizer sobre a cultura auditiva, que prefiro chamar de discursiva — o hábito antigo, tipicamente luso-brasileiro, da superficialidade, do matraquear inconsequente, da valorização da aparência (através do discurso bem torneado mas vazio, ou da obsessão por títulos e diplomas universitários), da ojeriza ao trabalho duro, à dedicação e à especialização11.
Ega, ao contrário, iconoclasta que não poupa nem a si mesmo, sacrifica o debate sério em nome do chiste: defenderá a escravatura para chocar os interlocutores e admitirá que as Memórias de um Átomo, sua magnum opus eternamente inacabada, mais pertence ao discurso que ao papel: “estou à espera que o país aprenda a ler”, desculpa-se. Ega difere-se do intelectual discursivo pela recusa em levar-se a sério.
O diletantismo e o ócio, que antes significavam uma forma distraída (e divertida) de levar a vida, darão o tom de melancolia aos personagens já amadurecidos no capítulo final. Vejamos o contraste entre uma época e outra: em discussão com o maestro Cruges, que se aflige com o talento desperdiçado de Ega, que não faz nada,
— Ninguém faz nada — disse Carlos espreguiçando-se — Tu, por exemplo, que fazes?
Cruges, depois de um silêncio, rosnou encolhendo os ombros:
— Se eu fizesse uma boa ópera, quem é que ma representava?
— E se o Ega fizesse um belo livro, quem é que lho lia?
O maestro terminou por dizer:
— Isto é um país impossível… Parece-me que também vou tomar café. [Capítulo 8]
E mais tarde, no trecho de diálogo entre Carlos e Ega que traz uma das mais célebres frases do autor:
Paris era o único lugar da Terra congênere com o tipo definitivo em que ele [Carlos] se fixara: ‘o homem rico que vive bem’ (…) Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável.
— E aqui tens tu a existência do homem! Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o phaéton na estrada de Saint-Cloud (…)
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
— Falhamos a vida, menino! [Capítulo 18]
Os dois, ricos que vivem bem, têm todo o direito ao diletantismo e, se foram de fato vencidos pela vida, o problema é deles. Com os homens públicos já não é assim, muito embora alguns deles tendam igualmente à existência ociosa. Eça podia ser bastante enigmático quando tratava de sua orientação ideológica, ora manifestando-se pela manutenção da monarquia ora pendendo para a república, muitas vezes contradizendo-se ao falar sobre democracia e não raro renegando, nos últimos anos, o ímpeto revolucionário dos tempos de Coimbra e do Cenáculo. Numa coisa, porém, foi sempre coerente: a aversão aos políticos. Ainda jovem ridicularizou Dom Pedro II em inúmeras crônicas e artigos, quando de sua visita a Portugal em 1871; não poupou ataques a Napoleão III ou Guilherme II, este justamente pelo “diletantismo”, que considerava falha perigosa para um governante. No plano genérico, abstrato, Eça será
…o criador, na literatura portuguesa, da mais vasta galeria de personagens políticas da mais absoluta e ridícula nulidade, tão abundantemente citada na imprensa dos nossos dias12.
Os modelos percorrem o romance de cabo a rabo, com referências en passant aos pomposos ocupantes ou candidatos a posições de poder. Gouvarinho é um deles. Os comentários de Ega sobre a classe bem resumem a opinião que, presente noutras obras, parece ser a do próprio autor:
A política! Isso tornara-se moralmente e fisicamente nojento, desde que o negócio atacara o constitucionalismo como uma filoxera! Os políticos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financeiros por trás lhes puxavam pelos cordéis… Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Aí é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas… Coisa extraordinária, que em país algum sucedia (…)! Os três ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem for, largamente, excluem a maioria dos políticos. E por que? Porque as senhoras têm nojo! [Capítulo 18; grifo do autor]
Não creio ser necessário estender-me mais com relação ao sentimento que se nutre pela casta, hoje e sempre, em Portugal, no Brasil e em quase todo o resto do mundo. O desprezo de Eça de Queiroz por políticos e pela política — “ocupação dos inúteis” — replica-se também no serviço público, setor, recordemos, a que pertenceu Eça a partir de seu ingresso na carreira consular do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1870. Num daqueles momentos de puro humor eciano, ele descreve a conversa de Carlos da Maia, em jantar na casa do conde de Gouvarinho, com um tal Sousa Neto, que o choca ao querer saber se na Inglaterra também havia literatura. A sós com Carlos, Ega retruca:
— Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
— Não sei… Há tanta gente capaz…
E o Ega radiante:
— Oficial superior de uma grande repartição do Estado!
— De qual?
— Ora de qual! De qual há de ser?… Da Instrução Pública! [Capítulo 12]
E em outro diálogo memorável:
— Duas horas e um quarto! — exclamou Taveira, que olhara o relógio. – E eu aqui, empregado público, tendo deveres para com o Estado, logo às dez horas da manhã.
— Que diabo se faz no Tribunal de Contas? – perguntou Carlos. – Joga-se? Cavaqueia-se?
— Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo… Até contas! [Capítulo 5]
É claro que pertencer à carreira diplomática só legitimou o romancista a ridicularizar seus pares, e Os Maias está cheio de referências pouco elogiosas a eles — para começar com o ministro Steinbrocken, representante de uma Finlândia fictícia (a nação fazia parte do império russo no final do século 19 e portanto não podia ter embaixada em Portugal), um pusilânime que passa seus dias frequentando eventos sociais e cantando melodias de sua terra natal, incapaz de dar opinião sobre qualquer assunto. A diplomacia, em resumo, é tomada de “monos, de sensaborões e de tolos” [capítulo 12], “uma outra forma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da própria insignificância” [capítulo 18]. Os atuais serviços diplomáticos, tanto de Portugal como do Brasil, são burocracias altamente profissionais e eficientes, regidas pelos mesmos princípios da administração pública que todo o resto das repartições; muitos de seus integrantes, porém, assim como todo o resto, continuam com as mesmas características que a pena eciana expôs lá atrás.
Eça faz uso de uma qualidade agridoce para enaltecer a reputação duvidosa de seus políticos e funcionários públicos: o talento. Talentoso, para Eça, corresponde de certa forma ao adjetivo interessante, que não quer dizer muita coisa e pode servir para expor defeitos mais que virtudes. Trata-se de instrumento poderoso do sarcasmo eciano e de mais uma manifestação da cultura discursiva mencionada acima — o diletantismo, o amadorismo e a superficialidade parecem unir-se para constituir essas criaturas que gostamos de chamar de talentosas13. Um dos personagens mais famosos e representativos de Eça aparece na Correspondência de Fradique Mendes: José Joaquim Alves Pacheco. Parlamentar e ministro, esse grande homem de Estado, cuja morte fez Portugal inteiro cair em prantos, “não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque ‘tinha um imenso talento’”14. João da Ega (sempre ele) tem algo a dizer-nos sobre isso:
É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm imenso talento (…). De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este fato supracômico: um país governado com imenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a ver: que, como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis! [Capítulo 15; grifos do autor]
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Os Maias é diferente dos outros grandes romances europeus do século 19. Otto Maria Carpeaux chama-o de “grande fragmento”, e com razão, dada a sua arquitetura solta; são os personagens, não o enredo, que determinam a continuidade dramática. Sua natureza episódica, composta de modo a reforçar a função de crônica de costumes e crítica social, tem também outro propósito: impedir que aquela continuidade dramática ganhe o contorno trágico e o peso moral que esperamos encontrar num romance oitocentista de 900 páginas. É nisso que difere de, digamos, Anna Karenina, Educação Sentimental ou Memórias Póstumas de Brás Cubas. Tal característica muito particular, ausente até mesmo noutras obras de fôlego de Eça de Queiroz (recordemos como terminam O Primo Basílio e A Relíquia, por exemplo), é deliberada e cheia de simbolismo; está em harmonia com a finalidade do livro, que é retratar a nação de seu autor, e a retrata sem enfeites nem piedade. A ausência de um final, ou pelo menos de um final esperado de romance, dramático, trágico, montado em torno de um clímax, encaixa-se perfeitamente no que o autor quer nos transmitir a respeito da índole e do espírito desse “país desgraçado”, para usar as palavras da personagem Dona Maria da Cunha. A última cena de Os Maias, que reproduzi em parte anteriormente, pode ser adjetivada como simplória: como poderia um retrato “realista”, antirromântico, da sociedade portuguesa no final do século 19, não ser simplório e inconsequente?
Peço permissão para um raro spoiler: após a revelação do amor incestuoso com Maria Eduarda, Carlos é previsivelmente tomado por uma crise moral, que não o impede de descer para jantar com os amigos e dar um pulo no clube, antes de afinal ir visitar a irmã com a intenção de contar-lhe o segredo terrível. Mas, encontrando-a deitada,
sentiu a quentura de desejo que vinha dela, que o entontecia, terrível como o bafo ardente de um abismo, escancarado na terra a seus pés (…). E enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, numa paixão e num desespero que fez tremer todo o leito. [Capítulo 17]
Só depois da morte repentina do avô Afonso, que cai sobre ele como um castigo divino, Carlos decide partir de Lisboa, deixando a Ega o encargo de contar a verdade a Maria Eduarda. Os irmãos amantes nunca mais se verão. Ele instala-se em Paris e só volta a Portugal quase dez anos depois. Ega, ao revê-lo, espanta-se com a sua “imutabilidade”, a ausência de rugas, de cabelos brancos, de fadiga; em contraste, ele mais magro, começa a ostentar a calva incurável, resultado, riem os dois, da “ociosidade”.
Segue-se o passeio por Lisboa, pela velha Baixa e pela nova Avenida da Liberdade, onde reencontram caras conhecidas e voltam a surpreender-se com cenas e personagens ridículas. Comentam a notícia do casamento de Maria Eduarda, agora Madame de Trelain. “Sob este nome”, comenta Carlos, “tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memória… foi o efeito que me fez”. E não falam mais nela. Em tom de graça e de pastiche, “falham a vida”.
Assim como a condessa de Gouvarinho não estava fadada a morrer como Karenina, as consciências — antirromânticas, dirão alguns, portuguesas, dirão outros — de Carlos e Maria Eduarda parecem poupá-los do destino de um Édipo, de uma Mirra ou dos pobres heróis do Anel do Nibelungo. Não são poucos os leitores que estranham o final de Os Maias: pálido, lânguido e amoral, anticlimático, melancólico, lírico. E não são parecidos os desfechos das “tragédias” brasileiras? Praticamente contemporânea ao final da narrativa foi a queda da monarquia no Brasil: Machado de Assis relata, em Esaú e Jacó, como a manhã do 15 de novembro de 1889 no Passeio Público foi só ligeiramente diferente das outras, na medida em que havia menos pessoas que o normal, e em vez de sentadas, de pé, “falando entre si”. A população assistiu “bestializada” ao golpe de estado que derrubou um regime de quase 70 anos, substituindo-o com inacreditável facilidade por uma ditadura militar. Quase nada mudaria na sociedade brasileira nas quatro décadas seguintes. O episódio é símbolo da inércia e da acomodação com que, salvo raros momentos da história recente, a população acompanhou acontecimentos importantes. O brilhante senso de humor de Eça de Queiroz tem também a qualidade de dissimular a inércia e a acomodação de dois povos sob a máscara da graça e da superficialidade. Como a política que vira carnaval entre nós. Como os “memes” que nos fazem rir, pelo whatsapp, de nossas desgraças diárias.
André Chermont de Lima é diplomata de carreira e colabora com o Estado da Arte desde 2017. Lançou recentemente o livro O País do Eterno Retorno — Um Ensaio sobre o Subdesenvolvimento Cultural Brasileiro, pela Editora EDA. O conteúdo deste artigo é estritamente pessoal e não se confunde com políticas ou orientações oficiais do governo brasileiro.
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Notas:
- Por exemplo, numa crônica de 1872: “O Brasil é Portugal — dilatado pelo calor. O que eles são expansivamente — nós somo-lo encolhidamente; as qualidades retraídas em nós, estão neles florescentes; nós somos modestamente ridiculitos, eles são à larga ridiculões”. ↩︎
- O Brasil reagiu a tal desconfiança com amor e generosidade: o primeiro ensaio biográfico de Eça foi de autoria de um brasileiro, Miguel Mello (1911). Menosprezado em sua terra natal por algumas décadas, o escritor foi durante esse tempo amplamente lido, publicado e republicado no Brasil — a ponto de Monteiro Lobato criar o substantivo “ecite” para se referir à moda. ↩︎
- A Correspondência de Fradique Mendes, carta nº 10. ↩︎
- Em correspondência a Ramalho Ortigão, Eça revelou que em certo momento da gestação do livro pretendeu fazer Carlos da Maia brasileiro, mas mudou de ideia. ↩︎
- Citado na História das Conferências do Casino, de António Salgado Júnior. ↩︎
- Matos, A. Campos. “Eça de Queiroz. Uma Biografia”, Ateliê Editorial/Editora Unicamp, 2014, pág. 121. ↩︎
- “Saloio” pode ser traduzido por “caipira”. ↩︎
- Um mestre na periferia do capitalismo (1990). ↩︎
- O próprio Eça teria discutido a hipótese entre amigos, como forma de levantar o brio do português. O resultado, muito esquemático, foi o conto “A Catástrofe”, publicado postumamente em 1925. ↩︎
- Não conheço a opinião de Eça de Queiroz sobre Tolstói ou qualquer outro autor russo. Levando-se em conta que a primeira tradução de Anna Karenina em francês surgiu em 1885, é possível que o português a tenha lido durante a criação de Os Maias. O resto é especulação, mas não resisto a comparar o casal Gouvarinho aos Karênin. A cena no capítulo 15 em que Carlos e Ega tentam arrancar do conde as preferências sobre que ministério assumiria é muito semelhante às especulações carreiristas do russo. A tragédia de Anna, claro, não combinaria com a índole portuguesa que Eça se esforça por retratar na sua obra; o resultado é que a condessa permanece ao lado do marido e provavelmente morrerá da doença que a ataca ao final da história. ↩︎
- Desenvolvo um pouco mais o assunto no artigo A Intelectualidade Fora dos Eixos, publicado neste Estado da Arte em 7/8/2021 ↩︎
- Matos, Campos A., op.cit., pág. 312. ↩︎
- Sérgio Buarque e Costa Lima criticam a supervalorização do “talento” no Brasil como forma de associar seus beneficiários a alguma espécie de qualidade inata, contraposta ao trabalho duro e ao esforço individual, seja ele de natureza braçal ou intelectual. ↩︎
- A Correspondência de Fradique Mendes, carta nº 8. ↩︎