Libertação e descoberta

Por Matheus de Souza, uma resenha de 'Aqui, Ali, Além' — novo livro de Érico Nogueira.

por Matheus de Souza

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Um livro de poemas em versos livres está longe de ser uma novidade. Um em versos metrificados já chama um pouco mais atenção — a depender da faixa etária do público consumidor. Mas o que acontece quando um poeta que estreou com paráfrases de Hölderlin e escreveu versões modernas de poemas pastoris em hexâmetros dactílicos resolve aparecer em cena com um bom número de poemas de versos livres? É o caso de Érico Nogueira em seu recente Aqui, Ali, Além (ed. Filocalia, 2021). O que houve? Por que verso livre agora, uma vez dominadas as técnicas da versificação tradicional?

Para além das respostas mais óbvias, que vão de um sonoro “porque sim” até um experimentalismo que todo mundo um dia acaba fazendo na vida, podemos voltar a um conselho severo e útil de Mário Quintana: “só tem capacidade e moral para criar ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico”. Érico, que já em seu livro de estreia escreveu 24 sonetos ingleses para um “Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama”, tem capacidade e moral de sobra para escrever versos livres. Mas será que isso é o bastante?

Não acho. O conselho de Quintana não é, evidentemente, uma regra geral, afinal de contas nada impede que um poeta que sequer saiba direito o que é um decassílabo acabe escrevendo bons versos livres. A ideia é que, se você não nunca sentiu a camisa de força da métrica, então seus versos serão livres, mas, digamos assim, sem senso algum de liberdade. O problema é que mesmo assim a resposta não convence muito, afinal de contas essa libertação de modelos métricos tradicionais não explicaria por que o poeta emprega, em todos os “Sete Salmos Debaixo do Chão”, metros da lírica grega antiga, por exemplo estrofes sáficas e alcaicas, ou por que, em “Se Pôde Juvenal, eu Também Posso”, ele imita de perto a primeira sátira do autor romano, inclusive na escolha do hexâmetro dactílico, ou mesmo por que usa esquemas métricos mais próximos do nosso, por exemplo o das baladas italianas em poemas como “A Ciência da Carne”, o dos dísticos heroicos de recorte francês na primeira parte de “A Canção da Lagoa dos Afogados”, ou esquemas inventados envolvendo rimas internas, como em “O Seu e o Meu Espinho, o Seu e o Meu Tropeço”.

Outra explicação seria dizer que o poeta decide empregar o verso livre para ser mais coloquial, na esteira do que Bandeira quis dizer em “Poética” com “Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbados / O lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare. // — Não quero saber do lirismo que não é libertação”. Essa explicação, de novo, não convence. Quem abre seu Poesia bovina (ed. É Realizações, 2014) encontra ali versos tradicionais encapsulando diálogos inteiramente coloquiais, por exemplo, na abertura de “Ou Ela ou Eu”:

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 “Que piano pesado”, um pensou, o outro viu

 uma bola no seio assim, ó: “Melanoma?”

 “É, espalhou, olha só”, “Hum… operar, bem, pra quê?”,

“Desse jeito é pior”, “O pior tá por vir”,

 “É, amanhã pode ser?” “Tá, amanhã; é o pior”

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Uma chave de leitura mais interessante nos é dada por Wladimir Saldanha no prefácio à obra: “o lirismo, como paisagem de alma ou poesia da recordação, é nesse autor algo episódico”. O mesmo pode ser dito do verso livre. Wladimir nota muito bem que Aqui, Ali, Além não é, a rigor, o primeiro livro em que Érico emprega o verso livre; na verdade, sequências como os “Quatro Estudos Neoclássicos” de seu livro de estreia, O Livro de Scardanelli (ed. É Realizações, 2008), já estavam em verso livre. Só que esse verso livre de juventude era mais seco, paisagístico — fuga da emoção. Na abertura do primeiro poema, por exemplo, lemos:

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A lua,

o vento na folhagem,

  nós.

 O lago:

 a lua.

E um

som

antigo insinuado na

paisagem.

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É a descrição de uma paisagem física que traz ao narrador a recordação de alguma coisa da poesia campestre greco-romana. Noutra passagem da sequência, o poeta nos diz que as faias que ele quer não estão na América do Sul “nem no / Mediterrâneo mais. // Estão abstratas no / poema de / Virgílio, / são refúgio da / sombra, / desafio, / abismo”. Essas três últimas palavras revelam que o verso livre aqui é mais seco e acidentado justamente por serem sombra da poesia antiga, desafio de composição e abismo de consciência histórica. Estamos longe da “paisagem da alma ou poesia da recordação” a que Wladimir Saldanha faz menção em seu prefácio.

O que há de novo nos versos livres de Aqui, Ali, Além é que eles são empregados a serviço de uma poesia lírica que não se contenta em dizer o que o poeta sente. Continua sendo uma poesia lírica com doses sensíveis de racionalidade e consciência, mas sem chegar a tantos passos de distância como nos quatro estudos neoclássicos de anos atrás. Para entender isso melhor, será mais frutífero trazer à recordação o Fernando Pessoa ortônimo, que, diante de uma pobre ceifeira, confessou que “O que em mim sente ‘stá pensando”, ou, ainda, quando precisou desmentir, em “Isto”, algumas leituras falsas de “Autopsicografia”: “Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação”.

O verso livre aparece então como uma ferramenta importante para explorar a distância que existe entre o que o poeta sente e tudo aquilo que ele é capaz de dizer em seus versos através de máscaras poéticas. Se digo que se trata de uma ferramenta importante, é porque ela é capaz de captar um tipo de pensamento mais veloz, que não assume uma única postura ou um único compromisso ao longo do poema. É, no fundo, a voz de alguém que também não sabe com certeza o que é, e que só a partir da reflexão poética pode travar contato com parte importante de si. Como diz “A Teoria do Poema”, “entre isso / e a voz que é e não pode deixar de ser, / ‘Eu sou o que sou’, / flexão flamante na língua do profeta, / o poema oscila, flutua, dança / e, não sendo aquilo nem isto, / é sempre um pouco dos dois”.

Vamos ver isso um pouco melhor num poema chamado “Virado à Paulista”:

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“Garçom?”

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(Não tem nada aí;

viro a cara,

volto pro outro lado,

e lá

e cá

também tem nada.

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Tá bom, tá bom — o lance do sujeito,

escrita automática,

poesiazinha do eu

— eu sei:

………….babau

…………………….pó-pó

já foi.

..

Mas — o negócio é que…

é que…

tem um fundo, sabe,

um selinho,

uma filigrana

frágil

ou um fio

onde a gente é a gente e

é.

..

É difícil chegar.

Na verdade não se chega, hum, — se está

eu acho, mas, com tanto apito

pisca-pisca

..

tudo junto e tanto e simultaneamente,

ninguém vê.

..

[Clichê, não é?]

..

O ponto é que —

já disseram, claro,

aliás: o que é que não disseram? —,

o ponto é que

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Footfalls echo in the memory

é que

……….

………………

………………………….

o disperso se unifica,

alguma coisa faz sentido

um pouco

algum,

mas faz.)

..

“Um minutinho só.”

..

Os parêntesis nos ajudam a entender melhor o que se passa: o narrador chama um garçom (“Garçom … Um minutinho só”) e, enquanto espera, fica pensando com seus botões a respeito de coisas que não têm relação nenhuma com o universo da gastronomia. Não sabemos se ele esperou muito tempo; o tamanho dos parêntesis sugere que a espera foi longa, mas, considerando que nosso pensamento é veloz, nada impede que esse poema todo tenha se passado no espaço de alguns segundos apenas. Pode ser que o narrador ainda esteja ainda decidindo o que pedir, e, tomando a sugestão do título como base, é provável que acabe optando por um virado à paulista. Por se tratar de um prato muito comum em São Paulo, podemos imaginar que o narrador está desatento e que aquele seja mais um dia rotineiro, o que explica os pensamentos soltos indo para bem longe. Pode ser que você mesmo, enquanto lê este texto, esteja pensando em outras coisas também, por exemplo o artigo não enviado ou o que fazer com o aumento do gás.

O narrador reflete, mais especificamente, sobre o quão difícil é ter acesso àquele “fio / onde a gente é a gente e / é”, ou seja, aquela parte de nós que faz com que sejamos nós mesmos, a ericidade de Érico ou a fulanicidade de Fulano. Por isso o narrador vira o rosto, olha ao redor e não encontra nada. Ele provavelmente está em um restaurante popular e ninguém a seu redor deve estar pensando nisso. Talvez nunca pensou: “com tanto apito / pisca-pisca / tudo junto e tanto e simultaneamente, / ninguém vê”. Nem mesmo a massa de poetas que gasta a vida inteira publicando versos confessionais talvez já tenha pensado nisso pra valer — aquilo que Érico chama de “escrita automática, / poesiazinha do eu”: “babau / po-pó / já foi”. Para se ter algum acesso a essa chave interior, é preciso ouvir os passos que ecoam na memória, Footfalls echo in the memory, ou, como diz Eliot na passagem completa (primeira parte de “Burnt Norton”, na tradução de Ivan Junqueira):

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Ecoam passos na memória

Ao longo das galerias que não percorremos

Em direção à porta que jamais abrimos

Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras

Em tua lembrança.

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Pois bem. Pegando o fio da meada do que vinha dizendo, gostaria de propor a seguinte leitura: o sujeito, a “filigrana / frágil” daquilo que nós somos, é um mistério. Não temos acesso a ela pelo simples motivo de que nem nós mesmos sabemos o que somos. O erro capital de muita poesia lírica em verso livre publicada por aí é que, nas palavras de Wladimir Saldanha, o lirismo se reduz “ao flagrante da percepção”, enquanto o verso livre em si virou “moldura fragmentária para essa percepção”.

Érico não está experimentando formas novas só por experimentar, nem se libertando só por libertar ou mesmo usando a varinha de condão da poesia lírica para tocar o coração dos leitores. Não me levem a mal: ele realmente faz isso quando escreve coisas como “E um sino deu as vésperas e o sol sumiu e eu obstinadamente não me lembrei dos teus olhos” ou “Ontem meu filho fez três anos; / e minha filha de cinco é a flor do meu quintal”. Mas não é só isso. O lirismo se torna libertação para explorar formas novas de coloquialidade, mas também, e principalmente, para explorar ritmos de um pensamento inesperado e não exatamente caótico, mas sim, eu diria, inquieto e explorador.

Quero terminar meu texto falando um pouco mais disso. Perceba, em “Virado à Paulista”, que os impulsos de pensamento que vão surgindo na cabeça do narrador motivam também a quebra dos versos. Entre o vocativo “Garçom?” e o pedido “Um minutinho só” existe sem dúvida uma pausa. O mesmo ocorre quando, na segunda estrofe, as vírgulas vão pontuando o pensamento, inclusive o movimento de rosto em “e lá / e cá”. Pode ser que Érico conseguisse um efeito parecido em um poema metrificado, mas não estou certo de que isso seria o caso sempre:

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o ponto é que

..

Footfalls echo in the memory

é que

……….

………………

………………………….

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Os monossílabos “aí / lá / cá” (com “aí”, a meu ver, claramente lido com uma só sílaba) estão obviamente sugerindo coisas dispersas que, conforme será dito no verso seguinte, vão se unificando. Mas eles também criam um paralelo intrigante com a citação de Eliot no verso anterior.

Se pensarmos do ponto de vista fonético puro e simples, é claro que “Footfalls echo in the memory” não é a mesma coisa que “aí / lá / cá”, tanto em razão do idioma quanto em razão do tamanho das palavras; mas, se levarmos em conta que um monossílabo não necessariamente evoca uma memória rápida (ele pode sugerir também um movimento físico, como no “e lá / e cá” da segunda estrofe, ou mesmo a demorada unificação de coisas dispersas), então talvez o paralelismo entre essas duas passagens não seja tão absurdo assim. É como se a citação surgisse como um lampejo na cabeça do autor, uma recordação rápida e passageira que termina por ilustrar de maneira muito precisa aquela “alguma coisa [que] faz sentido / um pouco / algum, / mas faz”.

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(Reprodução)

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