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Esquema de Auerbach
Uma leitura de Mimesis e uma releitura do Dolce Stil Novo
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por Eduardo Henrik Aubert
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O clássico Mimesis: dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur (“Mimesis: a realidade representada na literatura ocidental”, 1946), livro extraordinário sob diversos aspectos, como reconheciam já os primeiros resenhadores, é, mais que análise de um rol fundamental de textos da literatura ocidental, a demonstração, pelo exemplo, de uma poderosa forma de compreensão dos textos literários. É a realização parcial, e seminal, de um projeto. Nesse sentido, pode ser visto como espécie de croqui — ou talvez código-fonte —, sujeito a sucessivos, inumeráveis completamentos, a incontáveis replicações. Esse projeto foi efetivamente colhido e se prolongou em diversos rebentos de Mimesis.
É, afinal, diretriz expansiva já ínsita à produção do próprio autor. Mimesis foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial, em Istambul, onde Erich Auerbach (1892-1957) se encontrava após ter sido demitido pelo regime nazista da cadeira de Filologia Românica da Universidade de Marburg, em 1935. As condições objetivas de trabalho na Turquia lhe impuseram limitações, de que resulta, por exemplo, a breve atenção dispendida em Mimesis ao período que se estende entre os anos 600 e 1100. Justamente por isso, o último trabalho de Auerbach, Literatursprache und Publikum in der lateinischen Spätantike und im Mittelater (“Língua literária e público na Antiguidade Tardia latina e na Idade Média”, 1958), preparado quando lecionava já em Yale, para onde se transferira em 1950, mas publicado um ano após sua morte, é concebido como um complemento de Mimesis, em quatro capítulos, ou em uma “série de fragmentos”. A cada ponto, seria possível fractalizar, esmiuçando zonas ainda inexploradas no emaranhado e extenso tecido da tradição literária ocidental.
Importa, assim, nessa obra que encarna um princípio de análise cujos desdobramentos se projetam potencialmente em uma expansão continuada que vai envolvendo o todo da literatura (ocidental, mas a limitação talvez seja contingente), entender precisamente qual é esse princípio estruturante, a que aludimos, no título, como o esquema da obra — seu ?????, a forma ou figura de uma operação intelectiva.
É a isso que nos dedicaremos aqui, esboçando, em um primeiro momento, o que nos parece ser a articulação nocional fundamental que subjaz a Mimesis, para, na sequência, indicar como essa articulação se narrativiza em um relato da literatura ocidental. Enfim, em um terceiro momento, proporemos um exercício de leitura de capítulo de uma obra de juventude de Auerbach, vista sob a luz retrospectiva do projeto de Mimesis. Será breve exploração de terreno não propriamente intocado por Auerbach, mas que sua própria obra convida a revisitar. O leitor notará que muitos dos termos originais são mantidos, juntamente com a tradução das citações. É porque a linguagem ecoa o esquema, que reverbera, por sua vez, toda uma tradição filosófica, com harmônicos sempre sugestivos.
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O esquema em potência: ser, apreensão, expressão
O esquema de Mimesis é uma maneira de formular o problema da representação da realidade (mimesis) — ou da “realidade representada”, para reter a fórmula do subtítulo de Auerbach, sistematicamente aplainada nas traduções para as diversas línguas — como problema dinâmico, fundamentado na articulação de três estratos nocionais. Sugerimos a metáfora estratigráfica pela dependência de uma noção em relação à antecedente, que é como plataforma em que se assenta e a partir da qual opera em seu domínio próprio. Do ponto de vista do analista, esses três estratos são percorridos como em um arco interpretativo, que busca abarcar o conjunto da estratigrafia que é ínsita ao próprio objeto — no caso, a literatura ocidental.
O primeiro estrato é o da realidade em si mesma, isto é, independentemente da percepção que dela têm ou podem ter os sujeitos, ou, dito de outro modo, a realidade como pura objetividade. Auerbach frequentemente se refere a esse estrato por meio de uma fórmula tripartida que, pela repetição, torna-se quase emblemática (“o econômico, o social e o político”), admitindo, contudo, variações que apontam claramente para sua posição de fundamento do esquema interpretativo: “as bases políticas, sociais e econômicas da vida (Grundlagen des Lebens)”, “uma realidade total (Gesamtwirklichkeit) — política, social e econômica”.
Esse estrato pode ser apresentado mais analiticamente: “conhecimento detalhado e preciso da situação política (politischen Lage), da estratificação social (gesellschaftlichen Schichtung) e das relações econômicas (wirtschaftlichen Verhältnisse) de um momento histórico perfeitamente definido”; pode vir aludido mais sinteticamente, sem detalhar as esferas, que, afinal, são desdobramentos emblemáticos — no sentido de que, entre o econômico, o social e o político, não há articulação de três entidades, tratadas em bloco que são: “a realidade genuína e total (echten und ganzen Wirklichkeit”, “a realidade dada (die gegebene Wirklichkeit)”, a “realidade genuína objetiva (echte objektive Realität)”.
Quando passa de simples referências a uma explanação mais detalhada desse estrato nocional, Auerbach comunica uma compreensão dessa realidade não mediada como inerentemente dinâmica, sempre em movimento: “realidade como um desenvolvimento de forças”, “uma fábrica básica do mundo (Weltgrundes), tecendo-se a si mesma (sich selbst webenden), renovando-se a si mesma (sich selbst erneuernden) perpetuamente e conectada em todas as suas partes”. Ela é “algo em processo (ins Werdende)”, caracterizada por sua “multiplicidade (Mannigfältigkeit)”.
Assim como está sempre se movendo, a realidade é também básica, ou primária — afinal de contas, ela está sempre em movimento porque ela é o agregado de tudo o que acontece, de tudo o que é histórico. Daí a recorrente metáfora empregada para se referir a esse estrato: “um tornar-se que se realiza nas profundezas (in der Tiefe sich vollziehenden Werden)”, um “movimento das profundezas”, “em extensão ou em profundidade (ins Breite oder ins Tiefe)”, “elevar-se das profundezas”, “as profundezas da existência humana (die Tiefe der menschlichen Existenz)”, “nas profundezas do cotidiano (in den Tiefen des Alltags)”, etc. É evidentemente possível intuir que aludir a ela por uma tríade emblemática basta para sugerir que esse movimento resulta da articulação entre determinadas esferas, lógica que, no entanto, se sublima no esquema, ou antes se localiza numa dinâmica essencial que desafia o próprio esforço de singularização por eventos.
Assim, o motor essencial do movimento não é o evento extraordinário, mas antes a própria vida cotidiana, em suas dimensões pré-categoriais: “Pois é precisamente nas relações espirituais e econômicas da vida cotidiana (in den geistigen und ökonomischen Verhältnissen des alltäglichen Lebens) que se revelam as forças que subjazem aos movimentos históricos; estes, quer militares, diplomáticos ou relacionados à constituição interna do Estado, são apenas o produto, o resultado final, de mudanças nas profundezas da vida cotidiana (Veränderungen der alltäglichen Tiefe)”.
Curiosa consonância com o que propunha o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), em outro grande filho da Guerra, o decisivo La Méditerránée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (“O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II”, 1949), em que, nas três camadas do devir histórico (o Mediterrâneo, o mundo mediterrânico, a época de Filipe II), o episódico e especialmente o político assumem posição terciária.
À realidade em si mesma, sobrepõe-se um segundo estrato no esquema de Auerbach. Trata-se do aparecer da realidade aos sujeitos, estrato que pode ser denominado precisamente “fenomenológico”. Auerbach fala em Geschehensbetrachtung (“consideração do acontecer”), Geschehensdeutung (“atribuição de sentido ao acontecer”), Erscheinungen (“aparecimentos”, ou “fenômenos”) ou, em uma expressão compósita, konkrete Erscheinung und konkretes Geschehen (“aparecer concreto e acontecer concreto”).
Não há uma palavra única para se referir a esse estrato interpretativo, embora Betrachtung (“consideração”), Erfahrung (“experiência”), Erfassung (“apreensão”), Erscheinung (“aparecimento”) recorram com bastante frequência: erfahrungsmä?ige Grundlage (“fundamentos atinentes à experiência”), uma unmittelbaren Erfahrung des Lebens (“experiência imediata da vida”), der vollen Erfassung der gegebenen Wirklichkeit (“a apreensão integral da realidade dada”). Dito de forma simples, sich mit der Wirklichkeit auf eine Weise auseinandersetzen (“defrontar-se de um modo determinado com a realidade”) — isto é, o fenômeno em suas multifárias maneiras de aparecer para o sujeito que o apreende.
A profusão da nomenclatura decorre mais propriamente do fato de que o segundo estrato relata uma operação, que pode ser desdobrada nos momentos do aparecimento e da apreensão: die Wirklichkeit in ihrer vollen Breite und Tiefe erfa?te (“apreendeu a realidade em toda sua extensão e profundidade”), der Welt und der Reichtum ihrer Erscheinungen (“o mundo e a riqueza de seus fenômenos”). Se teríamos certamente razão em admitir que o aparecimento da realidade para o sujeito é, para Auerbach, um movimento tanto intelectual como sensorial, sua ênfase nos sentidos precisa ser apontada: sinnlicher Erscheinung (“fenômeno sensorial”), des unmittelbar Sinnlichen (“o sensorial imediato”). Talvez se trate de relevo concedido ao primeiríssimo momento do conjunto das operações fenomenológicas.
Isso é bastante claro, por exemplo, no caso de Gregório de Tours, que “se interessa pelo que as pessoas estão fazendo… quando se movem ao seu redor (wie sich um ihn herum bewegen)”. Com uma “coparticipação imediata… sensorial (unmittelbarer… sinnlicher Mitleben) nos eventos”, ele testemunha a “captura sensorial, em um novo despertar, daquilo que acontece (neuerwachenden sinnlichen Zugriffs auf die geschehenden Dinge)”. É imagem de um despertar originário, primordial mesmo.
Chega-se aqui a importante injunção para compreender o esquema de Auerbach: se a realidade em si mesma está sempre dada — em sua contínua mudança, logo, em sua (quase) opacidade categorial —, a apreensão da realidade por alguém depende de uma combinação de circunstâncias históricas e de inclinações pessoais, de modo que a percepção pode ser mais ou menos aguçada, completamente aberta a receber a realidade como tal (die gegebene Wirklichkeit) ou antes obtusa ou obstinadamente insensível a ela. Não podemos aprofundar aqui uma discussão sobre a compreensão das relações entre o indivíduo e a sociedade em Auerbach, até porque o tema é antes latente que emerso. É, contudo, importante dizer que, embora critique explicitamente a noção hegeliana de Zeitgeist, Auerbach entende que o indivíduo nunca pode ser isolado da instância social. Essas categorias são passíveis de descompasso tenso, não porque não há determinação da instância coletiva sobre a individual, mas porque essa determinação não é totalizante, com margens efetivas de liberdade.
Ademais da realidade em si mesma e da realidade tal qual aparece para o sujeito, há, para o problema específico de Mimesis, um terceiro estrato identificado pela interpretação, aquele da expressão (Ausdruck) ou representação (Darstellung) da realidade — no caso de Mimesis, da expressão ou representação literária da realidade. Nesse nível, Auerbach está preocupado com “o tratamento literário da realidade (der literarischen Erfassung des Wirklichen)”, com o “relato artístico da realidade do tempo (künstlerische Rechenschaft von der Wirklichkeit der Zeit)”. Em outros termos, está interessado em como especificamente a realidade que está aí e que é percebida é subsequentemente processada em forma literária.
Do ponto de vista do esquema de Mimesis, interessa de perto o problema da expressão, antes que o predicado de ser ela “literária” ou “artística”, que se prende à forma (Form, Gestalt) da expressão, como um modo de ser dessa forma; afinal, a própria noção de “forma” se predica como “literária” (literarisch… zu gestalten, “conformar… literariamente”). O ponto é que esse predicado não é em si mesmo — ou não é percebido em si mesmo — como uma categoria problemática na obra, isto é, como categoria a ser submetida a uma problematização. Sem dúvida, seria ponto digno de ulterior meditação, até mesmo para conceber a possibilidade de encampar muitos outros textos no grande projeto de Mimesis.
De todo modo, atendo-nos à formulação auerbachiana, o autor trata da representação literária especialmente em termos de “estilo”, sendo mesmo de capital importância a recuperação da teoria antiga do estilo, ou dos níveis de elocução, para conceber a dinâmica histórica (ver infra). Mais além — pois o esquema pressupõe vínculos de dependência sucessivos — escreve sobre a Ausdrucksform (“forma de expressão”) ou a Sprachform (“forma de linguagem”) como relacionadas a Lebensformen (“formas de vida”).
Aparecendo em expressões compósitas (Lebens- und Ausdrucksform, isto é, “forma de vida e de expressão”, ou Sprach- und Lebensformen, a saber, “formas de linguagem e de vida”) mais frequentemente do que sozinha, a expressão “formas de vida (Lebensformen)” remete, assim, ao primeiro estrato tal qual ele se permite apreender e expressar no movimento de sua própria operação, “quando uma forma de vida ou um grupo humano realiza-se a si mesmo (wenn eine Lebensform oder ein Menschengruppe sich erfüllt)”. É, enfim, como forma de vida, o primeiro estrato descrito, formulado ou concebido em termos de sua apreensibilidade e de sua consequente representabilidade, isto é, apreendido e quiçá expresso como forma; objetividade, em suma, tornada inteligível e exprimível.
Para Auerbach, a expressão pode ser adequada, quando os autores implementam “métodos apropriados… para fazer a realidade que adotam como seu assunto aparecer em luzes e em camadas cambiantes (in wechselnder Beleuchtung und Schichtung erscheinen zu lassen)”, ou inadequada, quando um “estilo não é capaz de lidar com a extensão e a profundidade da realidade da vida, nem o deseja”. É nesse sentido que a Gegenwartsrealistik é definida como “um retrato agudo e concreto do político e do econômico, com sua enérgica mistura de estilos”. Em casos assim, o estilo — que é, digamos, algo como o meio da expressão — se amolda à adequada apreensão da realidade e não se impõe a ela. Como escreve a respeito de Dante, então “a vida real não é nem selecionada nem preordenada por critérios estéticos”.
É esse terceiro estrato que engaja dinamicamente os outros dois, já que constitui a preocupação imediata de Mimesis — embora seja ontologicamente terceiro relativamente a eles: a obra se define como “uma investigação da representação literária da realidade (die literarische Darstellung der Wirklichen) na cultura europeia”, um livro preocupado com “os motivos fundamentais na história da representação da realidade (Grundmotiven der Geschichte des Wirklichkeitsdarstellung)”. Trata-se de trabalho que lida com “representações da vida cotidiana (Darstellungen des alltäglichen Lebens) em que aquela vida é tratada seriamente, em termos de seus problemas humanos e sociais ou mesmo de suas complicações trágicas”.
Como última parte do arco ser-apreensão-expressão, o terceiro estrato contempla, pois, essa ulterior operação, que transforma a apreensão em representação. Daí que recorram amiúde algumas cópulas como as seguintes no texto: Auffassungs- und Darstellungsweise (“modos de apreensão e de representação”), Lebensauffassung und Lebenswiedergabe (“apreensão da vida e retrato da vida”), Wirklichkeit zu sehen und darzustellen (“ver e representar a realidade”). Algumas passagens desenvolvem a ideia de modo mais analítico: “o sensorial-visual (des Sinnlich-Anschauliche) que aparece aqui (welches hier erscheint) não é uma imitação consciente (bewu?te Nachahmung) e, portanto, raramente se realiza por completo”; alguém pode forçar “seu impulso interno em aparecimento externo (seinen inneren Impuls in die äu?ere Erscheinung)”. Em certo ponto — que já veremos qual é —, “a consciência moderna da realidade começou a criar forma literária (das moderne Wirklichkeitsbewu?tsein literarisch… zu gestalten begann)”.
Buscamos aqui, de forma depurada das contingências de cada situação histórica concreta, caracterizar as três noções centrais que compõem o esquema de Mimesis, em sua articulação potencial: realidade objetiva, apreensibilidade da realidade objetiva, representabilidade da apreensão da realidade objetiva. Cabe passar agora ao exame de sua articulação efetiva, em ato, que, como não poderia deixar de ser, deriva, do esquema geral, uma série de figuras concretas, construídas no devir histórico.
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O esquema em ato: a história literária
No relato de Auerbach sobre a literatura ocidental, os três estratos que acabamos de caracterizar sumariamente estão constantemente engajados como um todo. Algumas passagens dão conta disso com concisão, permitindo ao analista cobrir todo o arco interpretativo em formulações compactas. De acordo com Auerbach, por exemplo, “a imitação da realidade (Nachahmung der Wirklichkeit) é imitação da experiência sensória (Nachahmung der sinnlichen Erfahrung) da vida na terra (irdischen Leben) — uma de cujas características essenciais parece ser o fato de possuir uma história, de estar mudando e se transformando”. De modo semelhante, “o puramente literário, mesmo no mais alto nível de compreensão artística (Kunstverstandes) e em meio à maior riqueza de impressões (des grö?ten Reichtums der Eindrücke), limita o poder de juízo, reduz a riqueza da vida (das Leben) e, por vezes, distorce as percepções do mundo dos fenômenos (Erscheinungen)”. São, ademais, esses os dois pólos do relato, com o juízo valorativo que já se depreende com clareza.
Em um caso concreto, o da relação de Boccaccio para com Dante, Auerbach escreve: “O que ele deve a Dante é a possibilidade de fazer um uso tão livre de seu talento, de atingir o patamar a partir do qual é possível cobrir todo o mundo presente dos fenômenos (die ganze gegenwärtige Welt der Erscheinungen), apreendê-lo em toda sua multiplicidade e reproduzi-lo (wiedergeben) em uma linguagem maleável e expressiva”; logo: Welt (“mundo”), Erscheinung (“fenômeno”), Widergabe (“restituição, reprodução”).
Como a fábrica da realidade está em movimento constante — ou antes, como ela é movimento — e, consequentemente, também estão em movimento sua apreensão e sua representação, alinhando-se ou desalinhando-se, Mimesis de Auerbach é uma investigação histórica: “meu propósito é sempre o de escrever história”, escreve já reflexivamente em Literatursprache und Publikum. Dito de outro modo, o esquema de Auerbach se atualiza a cada ponto com um rearranjo dos elementos. Mais especificamente: a realidade objetiva é apreensível a priori, mas pode ou não ser apreendida a depender de circunstâncias a um tempo coletivas e individuais; do mesmo modo, a apreensão é exprimível a priori, mas pode ou não ser efetivamente expressa por razões homólogas.
Vejamos como isso efetivamente se deu, segundo Auerbach. Em termos muitos simples, os traços gerais dessa história são determinados pelo impacto do cristianismo na tradição clássica. Esta última separou os estilos de acordo com a matéria — é a teoria retórica da correspondência entre (dois ou mais, a depender da matriz teórica) níveis de elocução e as matérias que se prestam a tratamento literário, segundo cânones atinentes aos gêneros textuais; nesse enquadramento, o mundo cotidiano — em que Auerbach via o centro da realidade, como já referido — apenas podia ser enquadrado no estilo baixo, desprovido de mobilidade ou de densidade. Em contraposição à tradição clássica, o cristianismo teria inovado com o recurso a um sermo humilis (“elocução chã”), que não hesita em misturar o alto e o baixo para tratar de um assunto que é, a um só tempo, mundano e sublime: a Encarnação.
No Novo Testamento, escreve Auerbach, “o que nós vemos… é um mundo que, de um lado, é inteiramente real (durchaus wirklich), comum, identificável com relação ao lugar, ao tempo e às circunstâncias, mas que, de outro lado, é abalado em seus próprios fundamentos, transforma-se e renova-se diante de nossos olhos (vor unserem Augen sich wandelnd und erneuernd)”. Com o espraiar do cristianismo, contudo, o sermo humilis do Novo Testamento e sua capacidade de alinhar a realidade em si mesma, a realidade fenomenológica e a realidade representada ficam ameaçados e enfim vencidos por um maneirismo invasor, resultante dos compromissos do sermo humilis com o mundo clássico, ou pós-clássico, tendência que se reforçaria ainda com a incorporação das populações germânicas.
Alguns autores, como Agostinho, de fato teriam escapado à tendência geral e teriam mesmo revigorado as potencialidades latentes no sermo humilis — uma de diversas instâncias que deixam claros os limites à sobredeterminação totalizante da esfera individual nesse esquema maleável e refinado. Porém, apenas no século XIX o realinhamento da realidade em si mesma, da realidade fenomenológica e da representação da realidade teria de fato ocorrido em toda sua plenitude, com o advento do realismo moderno. É o ponto de chegada da narrativa. Entre esses dois pontos, Mimesis tece uma história de potenciais e realizações, de distanciamentos e aproximações.
Tomemos um dos pontos escuros de Mimesis a partir da perspectiva do primeiro desdobramento do que poderíamos chamar o “projeto Mimesis”, que vai, insistimos, muito além do livro. Concentremo-nos então no segundo fragmento de Literatursprache und Publikum, “a prosa latina na Alta Idade Média”. Para Auerbach, diante do crescente maneirismo e da degradação do sermo humilis a partir do século III, um novo caminho se abria no século VI, o da prosa utilitária de Cesário de Arles, de Gregório Magno e de Gregório de Tours. Para ele, “uma nova situação [comunicar-se com uma audiência expandida] criou a necessidade de um novo tipo de expressão”.
Todos esses autores estariam muito mais abertos ao mundo cotidiano concreto do que seus antecedentes diretos. No que diz respeito a Cesário e a Gregório Magno, “nada lhes era insignificante. Seu propósito — ensinar o cristianismo — permitiu-lhes elevar-se das matérias mais simples a um novo patamar de estilo e falar delas em um tom que não teria sido possível antes”. Distintamente das muitas avaliações negativas de sua prosa, Gregório de Tours, por quem Auerbach já se interessara em Mimesis, teria sido criador inspirado que desenvolveu uma forma de latim apropriada à história e atenta aos eventos concretos: “o Bispo de Tours criou uma linguagem literária com a qual a língua coloquial se fundira”. O potencial cristão de representação da realidade se aproxima aqui de sua realização em ato.
Em oposição a essa efervescência promissora, porém, o século VII seria um vazio literário, em que “o latim escrito se tornou inteiramente disforme”. Somos deixados a tatear como isso se deu. Na sequência, o Renascimento carolíngio dos séculos VIII e IX desfecharia um golpe agora decisivo contra o movimento de alinhamento dos três estratos ensaiado no século VI. Para Auerbach, a promoção de uma latinidade correta, baseada em modelos clássicos e no expurgo do vernáculo, teria tornado o mundo carolíngio de pouca espessura, desprovido de concretude, escuro e sem vida. Eginhardo, por exemplo, teria tentado retratar Carlos Magno em sua biografia do monarca — isto é, pode até ter havido um alinhamento dos dois primeiros estratos —, mas, “quando quer que ele se propõe a dizer algo concreto a respeito do comportamento humano ou das relações humanas, seu instrumento linguístico não está à altura de sua matéria”.
O impacto negativo do Renascimento carolíngio seria de tal monta, que, nos próximos três séculos, “toda a vida intelectual no Ocidente, e a maior parte dela por um período muito mais longo, foi expressa em uma língua morta, quase inteiramente cortada da vida das populações e entendida por muito poucos”. Nesse período, o latim é “um meio que esteve quase inteiramente apartado da vida da época”. Os reformadores carolíngios teriam seguido “a única via que era natural e possível em vista das circunstâncias e da tradição predominante”, mas o resultado permaneceu o mesmo a despeito das intenções: a inabilidade para produzir um relato da realidade — resultando, com isso, uma dificuldade para os analistas pósteros preocupados com avaliar a extensão em que a realidade era efetivamente apreendida.
O fim do segundo fragmento de Literatursprache und Publikum é, de todo modo, interessantíssimo, pois trata de algumas poucas personalidades que buscaram ultrapassar esses obstáculos para empregar o latim como língua de expressão literária. Auerbach julga Lupo de Ferrières o autor mais expressivo do Renascimento carolíngio, “o primeiro a conseguir, vez ou outra, extrair uma faísca de expressão viva ao latim de escola que se estabeleceu no período carolíngio”. Sem dúvida, o destaque conferido a essas personalidades singulares, que se aproximaram mais de pôr em ato o que seria, para Auerbach, a realização da literatura — representar artisticamente a apreensão da realidade objetiva —, mesmo em ambientes adversos, mereceria uma formulação categorial de suas condições de possibilidade.
De todo modo, para Auerbach, com o Bispo Ratério de Verona, já nos meados do século X, uma espécie de milagre se produzia: dotado de estilo inteiramente rebuscado, marcado por hipérbatos, entrecortado de toda sorte de tropo e figura, no que termina por produzir uma saturação cumulativa da língua latina, Ratério consegue elevar o maneirismo a um estilo genuíno, “radicado em seu ser, que ele não poderia ter expressado de outro modo”. E algo vai se passando que não se restringe à exceção individual; antes, o século X “veria os começos de uma intuição que dominaria o pensamento europeu por séculos”, quando despontou uma — ainda muito limitada, circunscrita e frágil, mas mesmo assim — “mais aguçada intuição das condições presentes, particularmente estimulante para os escritores mais talentosos da época”.
O tempo, pois, entre o sermo humilis evangélico e o realismo moderno não é hiato histórico, uma “idade média” entre dois momentos luminosos da história literária ocidental, mas período de profundo dinamismo, responsável por criar as condições de possibilidade da literatura moderna. Vamos agora a um ponto nodal dessa história, talvez mesmo indispensável ao projeto Mimesis.
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Uma batalha de suspiros: Guinizelli, Dante e Auerbach
Dante, a quem Auerbach dedicou um célebre capítulo de Mimesis, em torno de episódio decisivo do canto X do Inferno, é, talvez mais do que uma presença longeva na obra de Auerbach, espécie de obsessão — vale dizer, autor que ressurge continuadamente em uma dimensão propriamente problemática que anima o movimento reflexivo. Essa ressurgência é marcada em Mimesis pela referenciação das obras anteriores, notadamente Dante als Dichter der irdischen Welt (“Dante como poeta do mundo terreno”, sua tese de habilitação, 1929), Figura (1939) e Sacrae scripturae sermo humilis (“O sermo humilis das Sagradas Escrituras”, 1941), os dois últimos originalmente publicados como artigos e incluídos em seus Neue Dantestudien (“Novos estudos sobre Dante”), que vieram a lume em 1944.
O último desses estudos parte da presença do sermo humilis na Comédia, onde “há muito realismo, muita vida concreta, muito biotikon”, para então “buscar as origens da nova concepção da poesia elevada”. Dante se estabelece, assim, para Auerbach, como ponto privilegiado a partir do qual vai desenhando a história que resumimos na seção anterior. Também em Mimesis, Auerbach aponta a raiz dessas preocupações, ao menos no que respeita a Dante, na leitura de uma página capital do Curso de Estética de Hegel, que identifica na Divina Comédia “o verdadeiro épico de arte da Idade Média cristã católica, a maior matéria e o maior poema nesse âmbito”.
A encruzilhada hegeliana nessa curta passagem se concentra na contraposição entre a existência imutável (wechsellose Dasein) daquilo que Dante observa em sua viagem ao Outro Mundo e a operação poética, com que infunde naquela existência “o mundo vivo (lebendige Welt) da ação e da paixão humana e mais precisamente os feitos e os destinos individuais (individuellen Taten und Schicksale)”. Com isso, afirma Hegel, o poema logra “abarcar a totalidade da vida mais objetiva (umfa?t das Gedicht die Totalität des objektivsten Lebens)”.
Auerbach glosa o texto hegeliano ao tratar de Dante em Mimesis valendo-se da categoria analítica da figura — que, como o sermo humilis, vincula o grande poema à firme abertura para o real da primeira tradição cristã: ao preservar a “figura” (isto é, o evento concreto, real, que aponta para outro evento futuro que será cumprimento deste, figura que, no caso, é a vida terrena) em sua “realização” (a vida eterna), Dante chega à formulação de um “realismo figural”, vale dizer, “uma experiência direta da vida que se impõe sobre tudo o mais, uma compreensão das realidades humanas que se estende tão ampla e variadamente quanto penetra profundamente nas próprias raízes de nossas emoções”.
Ora, se, declaradamente, a leitura de Hegel sugeriu a Auerbach o “realismo de Dante” como um problema, ele começou a ser investigado, como também declara o crítico, com Dante als Dichter der irdischen Welt, que assim aparece como plataforma, ao menos retrospectivamente preparatória, para as reflexões que, em Mimesis, abarcariam diretamente a longa trajetória da literatura europeia, sempre na esteira do problema hegeliano de suprassunção do mundo objetivo pelo texto literário, ou mesmo, da saga hegeliana dessa suprassunção. É o sopro de inspiração que faz Auerbach alçar voo.
Diante disso, propomos retomar aqui a grande monografia dantesca de Auerbach, escrita entre 1926 e 1929, servindo-nos dela como oportunidade para pôr à prova, à luz de problemas que estão muito próximos do centro de gravidade do edifício de Mimesis, a interpretação desenvolvida até aqui. Afinal, se Dante assume dimensão portentosa na história que Auerbach está a narrar, ele a teria em razão de um destaque já em relação a si mesmo, considerado o contraste entre sua poesia (lírica) da juventude e a obra madura (épica) da Comédia.
Em referência breve, parentética, ainda no capítulo dantesco de Mimesis, tratar-se-ia de “mudança que o levou do meramente lírico-filosófico à grande épica e, com isso, à representação dos eventos humanos em plenas dimensões”. Ora, essa anotação lança o problema da gênese dessa viragem fundamental promovida por Dante, cuja compreensão pode já esclarecer algo da arquitetônica auerbachiana, no interior do projeto Mimesis, mas pode ainda aprestar sua crítica, internamente à própria operação analítica, isto é, sem solução de continuidade com a problemática auerbachiana, mas antes obrando por sua perfectibilidade. É, assim, à leitura do segundo capítulo de Dante als Dichter der irdischen Welt, dedicado à “poesia juvenil de Dante” (Dantes Jugenddichtung), que avançamos agora.
Surpreendentemente, se o receio do anacronismo nos refreia de afirmar que o problema de Mimesis está todo lá, não há, porém, como duvidar de que ele esteja inteiramente pré-estruturado: “realidade, evocação, unidade (Realität, Beschwörung, Einheit)” seriam as três grandes características da poesia de Dante, tríade afim aos três grandes estratos nocionais da interpretação auerbachiana, colhida analiticamente na apreciação da escrita de Dante como “uma razão poética (dichterischen Vernunft) por meio da qual o real é subjugado e se torna visão (das Wirkliche bezwungen und zur Vision wird)”.
Já nos quadros potenciais de uma história contada pela articulação daqueles estratos, Auerbach está preocupado com uma “forma de vida (Lebensform) que se espelha na poesia”, e mais especificamente com o momento em que se deu um “renascimento de todas as forças sensíveis (sinnlichen Kräfte)”, levando à “representação dos fatos… [com] particular concretude e evidência (Darstellung des Geschehenden… konkrete und deutliche Besonderheit)”.
Nesse alinhamento entre a realidade, sua apreensão e sua ulterior representação, “a voz de Dante foi uma voz nova desde o primeiro dia”, embora a Vita nova, obra do poeta florentino que recolhe parte significativa da poesia da juventude, seja “antes o primeiro degrau necessário do conceito dantesco de realidade, seu verdadeiro germe, o prelúdio necessário da Comédia”. Isto é, a poesia da juventude é condição, em falta de implementação e completamento. A tensão é mesmo replicada: assim como o Dante maduro tomou passos decisivos a partir do poeta juvenil, este poeta, voz desde sempre nova, ter-se-ia singularizado de imediato no interior do círculo poético que integrou na juventude, isto é, como uma das vozes do movimento literário conhecido como dolce stil novo.
Nesse âmbito, a contraposição que Auerbach persegue sistematicamente, como marca de uma ruptura histórica significativa, é entre Dante e Guido Guinizelli (c. 1230-1276), o poeta bolonhês da geração precedente considerado pela história literária — na esteira de declarações do próprio Dante — como fundador do dolce stil novo, noção desdobrada, na voz de Auerbach, como “o novo estilo da poesia italiana”. O crítico descreve esse movimento literário, ao menos em apreciação preparatória à análise, a partir de um conjunto de temas, como a potência do amor como mediador da sabedoria divina, o liame imediato entre a senhora e o reino de Deus, etc.
De forma muito sistemática, então, Guinizelli aparece como antípoda de Dante no interior do stil novo, em um de muitos módulos como os que vemos em Mimesis, em que dois referenciais encenam a batalha entre alinhamento ou desalinhamento da apreensão e da expressão com o real, com a possibilidade de que o alinhamento ainda imperfeito seja subsequentemente mobilizado como antípoda de novo módulo opositivo na sucessão da narrativa, desta vez como desalinhado na comparação com o novo ponto de referência.
É assim que a poesia de Guinizelli seria marcada por uma “frieza conceitual” que “impede nele a força real da apreensão (hindert bei ihm die wirkliche Kraft des Griffes)”, ou mesmo por uma “fuga do acontecimento (Flucht aus dem Ereignis)”. Tratar-se-ia de um “poeta filosófico-retórico” que “apenas cita um acontecimento para sondar conceitualmente seu efeito (die Wirkung gedanklich zu ergründen)”, desprovido, enfim, de “imediatez concreta (konkrete Unmittelbarkeit)”.
No jovem Dante, ao contrário, “o fenômeno concreto (konkrete Vorgang) assume o lugar da retórica ideal (Gesinnungsrhetorik) de Guinizelli”. A ocasião de sua poesia “não é um sentimento ou um pensamento, mas um evento (Ereignis)”, isto é, o motivo é sempre a “ocasião concreta individual (konkrete einzelne Gelegenheit)”. Seus poemas são “os primeiros em que a retórica não sufoca o real, mas o forma e o mantém íntegro”. É, na verdade, a colheita da “evidência sensível do real (sinnliche Evidenz des Wirklichen)” que singulariza Dante em relação a Guinizelli e aos demais poetas do stil novo; ele “conserva a evidência dos acontecimentos (die Evidenz der Erscheinungen bewahrt)” na representação poética.
Essa argumentação, amplamente desenvolvida, parte da contraposição entre alguns sonetos de Guinizelli e de Dante, em torno de tema fundamental para o stil novo — visto então, insistimos, sob a lente de uma temática —, a saudação da senhora. O primeiro soneto de Guinizelli de que Auerbach vai extraindo seus argumentos é o seguinte:
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Para Auerbach, o poema faria seguir-se à enunciação da intenção laudatória, no primeiro verso, um conjunto de comparações cumulativas justapostas, sem ordem certa. O tema da saudação apareceria como “motivo novo” depois de todas as comparações, mas a saudação “não é vista absolutamente como um fenômeno (überhaput nicht als Vorgang gesehen ist)”. Haveria, sim, muita elegância e agudeza, mas desprovida de contato fenomênico com a realidade e mesmo também de unidade compositiva.
Apesar de julgá-lo, “do ponto de vista temático, muito mais unitário”, Auerbach aprecia de maneira grosso modo equivalente o segundo soneto de Guinizelli sobre o qual se detém:
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Auerbach entende — em função de seu critério decisivo de adesão da apreensão e da representação ao real concreto — que “aqui tampouco lhe importa o fenômeno (Vorgang), mas apenas o efeito maravilhoso”, salvando-se, “com surpresa (überraschend)”, apenas a imagem do temporal do primeiro terceto, “um dos pontos mais fortes que dele nos sobrou”. Tem mesmo valor de índice, pois essa imagem trairia mais que efetivo desprezo de Guinizelli pelo real, sua ordinária incapacidade de dominá-lo a despeito do que concebe como um esforço: “esse [passo] mostra seu esforço de concretude (die Bemühung um das Konkrete), mas ao mesmo tempo a origem alegórica e analítica desse esforço”.
A apreciação convoca desde logo algum comentário crítico. Chama atenção, com efeito, que, no soneto Io voglio del ver, o conjunto da comparação que se estende pelos dois quartetos tenha forte assento escritural, notadamente no Cântico dos Cânticos e no Eclesiástico. Evidentemente, caso se tenha conta disso, há, na articulação entre saudação e poder de conversão da senhora, não irrupção de um tema novo, mas atenção às consequências das qualidades da senhora que ocuparam os versos anteriores. Poder-se-ia mesmo ter em conta o quanto a canção fundamental da Vita Nova, Donne ch’avete inteletto d’amore, é, no dizer de Contini, “toda entretecida de recordações” desse soneto guinizelliano, para desde logo nos pôr em guarda contra o suposto hiato entre Guinizelli e o mais jovem stilnovista.
Não deve escapar tampouco a forte abertura do soneto, que, nos termos de Borsa, é uma “evidente declaração de poética”, evidenciada já pela posição destacada do sujeito (io), pela enunciação do tema da composição e pela explicitação da forma com que irá abordá-lo, isto é, “segundo a verdade”, e não, aponta Borsa, “segundo os modos próprios à convenção”. É, assim, composição que “se apresenta como texto de ruptura”, em que as equiparações da senhora com o mundo natural são uma fratura em todo um sistema de convenções poéticas, o que foi imediatamente denunciado por uma das mais influentes vozes poéticas da época, Guittone d’Arezzo, no soneto S’eo tale fosse ch’io potesse stare.
No caso de Lo vostro bel saluto, desenvolvido em torno do tema tradicional do dardo de amor, há espécie de inversão dos efeitos de que fala o outro soneto: o olhar e a saudação da senhora, antes que salvar e converter, paralisam e matam. Se o tema é fundamental para os stilnovisti — decisivo mesmo em Guido Cavalcanti, desdobrado repetidamente, sob todos os ângulos, em Cino da Pistoia —, o que importa notar aqui é que, distintamente do quanto afirmado por Auerbach, o tema não “se esgota já no segundo verso com a palavra extrema ancide”, de modo que “o resto da poesia é comentário a essa palavra”.
Antes, o texto vai descrever o processo pelo qual o efeito se produz: o dardo é lançado (pelo olhar e pela saudação) e passa, assim, do corpo da senhora ao meio, que o comunica ao corpo do poeta, onde, chegando ao íntimo, produz sensações de ardor e paralisia, até que o movimento se esgota na imobilidade da estátua de latão; contrapõem-se assim a ausência de vida interna — recorrendo ao termo técnico fundamental que os stilnovisti tiram à ciência contemporânea do corpo humano, spirto — e a aparência externa (figura d’omo).
Auerbach poderia ter olhado, talvez com mais benevolência, para outro soneto de Guinizelli que reproduzimos aqui:
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Trata-se de uma descrição do aparecimento da senhora, a que se dedicam os quartetos (Vedut’, viso…, no início de cada um), que compõem, em conjunto, a fronte do poema, seguindo-se, nos tercetos, isto é, em sua sirma, a consideração da posição do poeta. Note-se que fronte e sirma se ligam pela repetição da palavra valor(e) — procedimento colhido às coblas capfinidas provençais. A senhora aparece, na fronte, como verdadeira epifania; mais que equiparada à estrela matutina, ela é metamorfose efetiva daquela estrela, vinda à Terra, que tomou figura humana (figura umana) e manteve no olhar o brilho com que reluzia no Céu (lucente, lucenti, um em cada quarteto).
A visão, amplamente descrita, como na fronte de Io voglio del ver, com que compartilha a imagem da stella dïana, como epifania que é — e que transmite ao ditado poético a urgência da revelação, verificável nos ecos sempre escriturais da operação descritiva —, causa efeitos no poeta, como já, de morte ou salvação, na sirma dos outros dois sonetos. O poeta é assalito (como Amor o assale em Lo vostro bel saluto) por uma batalha de suspiros, imagem que pensamos dar a precisa dimensão dos movimentos internos à alma do poeta. Diante disso, a mudez que aqui retorna (correspondente ao parlar non posso em Lo vostro bel saluto) reforça a essencial fronteira entre o que se vê externamente e o que se passa na alma.
É decisivo na consideração dessa fronteira o verbo posto no início do último terceto, conoscere, que ainda não víramos em Guido, mas cujo campo semântico é fundamental em sua produção (intelligenzïa, senni e intendimenti). É, mais além, parte central do léxico e, enfim, da visão comunicada pela poesia do stilnovismo, novamente em posição de destaque na decisiva composição dantesca Donne ch’avete inteletto d’amore, com o substantivo inteletto já no primeiro verso.
Vistos sob a óptica de Vedut’ho la lucente stella diana, os outros dois sonetos guinizellianos que ocuparam a atenção de Auerbach e fundamentaram sua apreciação negativa dos esforços de Guinizelli, isto é, de sua aptidão a apreender e expressar a realidade objetiva, parecem desenvolver aspectos de um mesmo grande problema: o encontro amoroso é uma perturbação externa que produz alterações internas, isto é, na alma humana; essas alterações são um processo de movimentos e influxos entre componentes que se podem não apenas descrever, a despeito da figura externa se manter impassível, mas se podem descrever precisamente porque se dão a conhecer a quem os observa.
Essa atitude contém o núcleo essencial da novidade stilnovistica. Gianfranco Contini o viu precisamente: se, como constatamos nos sonetos de Guinizelli, “o conteúdo normal da lírica stilnovista é o fato amoroso minuciosamente analisado e depois hipostasiado em seus elementos”, isso não é bem resultado de uma indiferença à experiência, mas uma forma de entender a experiência, mais precisamente como oportunidade de compreender, na fenomenologia particular, o “indivíduo absoluto”. A análise do fato amoroso entre os stilnovisti, explica Contini, “não se reporta ao indivíduo empírico, mas, além dessa sua aventura inicial, a um exemplar universal do homem: a um indivíduo ele também objetivo e absoluto”.
A potência do influxo amoroso surge assim como oportunidade para que o poeta olhe para os movimentos internos da alma, em contexto em que a recepção de Aristóteles se debruçava com afinco sobre a composição da alma humana, em sua tripartição em alma vegetativa, perceptiva e intelectiva, problema fundamental para Dante, assunto de larga explanação no canto XXV do Purgatorio. Sonia Gentili enunciou com justeza: “com rigor euclidiano, poucas linhas conceituais conjugam, em figura compacta, temas chave da literatura italiana das origens: são as linhas traçadas pela investigação aristotélica sobre o homem”. Nos sonetos, nas canções e baladas do stil novo, o poeta se dispõe, vez após outra, a compreender a compleição interna do homem, em suas relações com o mundo externo. É daí que o stil novo seja plano de uma “figuração objetiva”, em contraposição à “representação subjetivista de tipo romântico”, ainda em termos de Contini.
Talvez seja justamente a identificação tácita entre potencial de apreensão do real concreto na experiência, de um lado, e efetiva manutenção da dimensão pessoal dessa experiência (nesse sentido subjetiva) na expressão literária, de outro, o que teria levado Auerbach a ver em Dante — colorido sob aquelas vestes românticas de que fala Contini — o ponto nodal de uma inflexão. Repostas as coisas nos termos mesmos de um interesse pela observação e pela descrição da experiência do mundo, poder-se-ia, assim, redimensionar o stilnovismo em um “projeto Mimesis” depurado de limitação que pode favorecer uma leitura anacrônica dos textos, pois projeta, nos autores dos textos, uma intencionalidade, a partir da qual se poderia avaliar, pelo resultado, a capacidade ou não de produzi-lo.
Ora, parece que o stilnovismo esteja justamente a mostrar que o inegável evento poético que se consubstancia na produção de Dante — e, assim, para Auerbach, essa grande viragem de atitude na história da literatura ocidental — esteja empenhado em tarefa diversa daquela que retrospectivamente se lhe atribuía. Sem dúvida, seria pertinente, a partir daí, colocar em questão se e como redimensionar a intencionalidade pode ou não interferir na concepção do “projeto Mimesis”, já na matriz hegeliana, mas também nas inflexões, de não pouca monta, da investigação de Auerbach.
Diante desses esclarecimentos, contudo, que bastarão nesta sede, podemos voltar a Dante als Dichter der irdischen Welt e examinar o que Auberbach afirma sobre o soneto de Dante que escolhe como contraponto à poética de Guinizelli:
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Para Auerbach, Dante constrói uma introdução que conduz diretamente ao “acontecimento (ihn ins Gechehende hineinzieht)” da saudação, retomando-se a passagem da senhora no segundo quarteto, como “um acontecimento presente (als ein Gegenwärtigen)”. Nesses poucos versos, poder-se-ia ver, segundo Auerbach, como ocorre a “conformação poética (dichterischen Formgebung)” nessa novidade capital representada por Dante: “a impressão de um fenômeno ininterrupto tal qual ele efetivamente vivia na concepção de Dante (die Illusion eines ununterbrochenes Vorgangs, wie es auch wirklich in Dantes Konzeption lebte)”. Quando Dante chega à primeira comparação (e par che…) — mas Auerbach imagina que pare signifique “parece”, e não “se manifesta em sua evidência”, como de fato é o caso aqui, conforme apontou Contini —, depois de a senhora ter passado, isto é, depois do fato realizado, mesmo a comparação é “formada naturalmente e totalmente pela sugestão do momento”.
Seria, contudo, possível destacar a homologia da construção dantesca com o guinizelliano Vedut’ho: a fronte dedicada a apresentar a epifania da senhora, vista como coisa vinda do céu (centralidade que se revela inclusive no artifício dantesco do encavalgamento sintático dos versos: venuta / dal cielo) e a sirma alusiva ao processo de sua impressão na alma de quem a vê, partindo do espírito — hipóstase de uma atividade vital — lançado pelo olhar ou pelos lábios, e que, chegado à alma do poeta, produz um movimento interno, também aqui aludido pelo suspiro. Ambas as partes são também aqui unidas pela repetição vocabular na solda (mostrare, mostrasi). Nesse esquema, a experiência (prova) é plataforma de conhecimento (’ntender), não de um indivíduo apenas, mas de quem quer que viva a experiência (chi… la prova).
Grimaldi ainda aponta como Dante se serviu aqui de “modelos excelentes”, antes de todos de Io voglio del ver, em que se encontram, notadamente nos tercetos, os motivos principais de Tanto gentile. Com relação a esse poema, e aos demais precedentes stilnovisti de que Dante parte, a originalidade de Tanto gentile repousa antes que na particularidade da experiência subjetiva e de sua representação, precisamente no inverso disso. Conforme aponta Grimaldi, em Tanto gentile, Dante “cancela todos os elementos subjetivos e se coloca em um ponto de vista objetivo, universal e coletivo”, de modo que “a aparição de Beatriz é representada como um fenômeno universal, não como uma percepção subjetiva”.
A intuição genial fora de Contini, em um denso exercício de leitura desse soneto, talvez o mais famoso de Dante. Para o filólogo, forçando-nos a relativizar a perspectiva auerbachiana, “o problema expressivo de Dante [em Tanto gentile] não é, absolutamente, o de representar um espetáculo, mas antes o de enunciar, quase teoreticamente, uma encarnação de coisas celestes e de descrever seu efeito necessário sobre o espectador. Para Dante, aqui, não interessa em nada um visível, mas, o que é inteiramente outra coisa, uma visibilidade. Não se preocupa com sensações, mas com metafísica amorosa e psicologia geral”.
Grimaldi ainda remete, como ulterior modelo de Tanto gentile, ao fundamental soneto de Guido Cavalcanti, “o primeiro amigo de Dante”, que completava o rol das composições sobre a saudação examinadas por Auerbach em Dante als Dichter der irdischen Welt. Vale a pena completar a releitura das peças centrais do dossiê auerbachiano:
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Se, para Auerbach, aqui “a força sensível já vem destruída no segundo verso”, na medida em que, à imagem de abertura, “não se liga a ideia de um evento real”, resumindo-se a declaração de inefabilidade a uma “renúncia a dizer o que não sabe dizer”, à luz do quanto já dito, surge imagem bastante diversa. O subtexto escritural é aflorado desde o primeiro verso (“Quem é essa que vem como a aurora que se levanta, bela como a Lua, eleita como o Sol”, Quae est ista quae progreditur quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut sol, lê-se no Cântico dos Cânticos, 6, 9), e a inefabilidade é estreitamente vinculada à mudez em Guinizelli e em Dante, apenas ampliada aqui.
Como Tanto gentile, Chi è questa também bebe diretamente na matriz guinizelliana de Io voglio del ver, com que compartilha duas rimas (-are, -ute) e quatro palavras em rima (âre, pare, vertute, salute). Ao colocar em questão os limites do conhecimento, de forma pungente — uma das decisivas especificidades cavalcantianas no seio da matriz stilnovistica —, é o tema mesmo da experiência amorosa como epifania para operações cognitivas que vem decisivamente à tona (mente, canoscenza). A insuficiência não é renúncia, mas premente incompletude. Como anota Pirovano, o resultado das limitações é que “o desejo e a ânsia de conhecimento só podem permanecer acesos”.
Sob essa perspectiva, há menos fratura entre o soneto (e a lírica, talvez mesmo a obra) de Dante e as composições de Guinizelli ou dos (outros) stilnovisti, que parecem todos voltados a tomar a experiência amorosa individual como oportunidade para uma operação de conhecimento objetivo sobre o homem, desenvolvida como operação de escrita poética. Nesse sentido, as composições mais centradas na descrição do evento, aquelas mais preocupadas com a experiência interna e enfim as mais dedicadas à análise do processo aparecem como partes de um esforço — não esgotado em um poema, mas estendido em uma atividade compositiva coletiva — para promover a sublimação da experiência em conhecimento e partilhá-la com aqueles que se dispõem a compreendê-la. Tudo isso com um notável senso de urgência insuflado pela epifania escritural, já do conhecimento obtido, já do impulso a conhecer, próprio de quem se julga portador de uma mensagem essencial que deve ser difundida para todos os que possam colhê-la. São poetas que veem, compreendem e revelam, conotando assim de modo particular a tríade auerbachiana, que assume valores próprios nessa quadra histórica. Assim concebido, naturalmente, o stil novo surge como bem mais que uma temática.
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Nas linhas acima, apresentamos o ambicioso e decisivo “projeto Mimesis” de Auerbach, primeiro em sua articulação nocional elementar, tomado em estado de potência, depois em sua efetivação na história, como relato da literatura ocidental. Relendo, enfim, criticamente, alguns textos de poetas italianos que estão muito envolvidos no projeto, embora tenham ficado de fora do magnum opus, pudemos aportar sugestão de pequena correção na narrativa: há uma viragem decisiva na atitude diante da realidade (apreensão e representação) introduzida pelos stilnovisti, que é colhida por Dante, não produzida por ele.
Isso se fez, contudo, na senda fecunda da própria impostação nocional de Auerbach, que resiste a vieses como o subjetivismo (pós-)romântico do autor, de que depende por exemplo, o tratamento em negativo da Antiguidade clássica, passível então de ir fornecendo balizas para investigações em que aqueles que desejam operar no seio do “projeto Mimesis”, como coautores do projeto, possam intersubjetivamente controlar, corrigir e expandir um poderoso instrumental intelectual para promover o efetivo conhecimento dos textos, talvez não só literários, talvez não só ocidentais.
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Sugestões de leitura
Agradeço a generosa leitura de Alexandre Pinheiro Hasegawa, assalito como sempre pelos meus escritos; suas observações perspicazes foram de imensa valia.
As primeiras duas seções deste texto são tradução, correção e expansão de uma digressão inserta em publicação anterior: E. H. AUBERT. When the Roman liturgy became Frankish: sound, performance and sublation in the eighth and ninth centuries. Études grégoriennes, n. 40, 2013, p. 57-160. A seção relativa ao stil novo, contudo, é inédita.
Os textos de Auerbach foram citados a partir das seguintes edições: Mimesis: dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur. Tübingen/Basel: A. Francke, 2001; Literatursprache und Publikum in der lateinischen Spätantike und im Mittelalter. Bern: Francke Verlag, 1958; Dante als Dichter der irdischen Welt. 2.ed. Berlin: de Gruyter, 2001; Neue Dantestudien: Zürich: Europa, 1944.
Felizmente, muitos desses textos estão traduzidos para o português. Há recente reedição de Mimesis, com relevante aparato de estudos: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. George Bernhard Sperber e equipe da Perspectiva. São Paulo: Perspectiva, 2021. Ver ainda: Dante: poeta do mundo terreno. Trad. Bruno C. Duarte. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2020 (essa tradução é preferível àquela saída no Brasil, mas hoje esgotada: Dante: poeta do mundo secular. Trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997); Figura. Trad. Duda Machado. Rev. José Marcos Macedo e Samuel Titan Jr. São Paulo: Ática, 1997.
Há diversas outras obras de Auerbach, além das aqui citadas, em língua portuguesa. Ademais, a bibliografia sobre o autor é imensa. Além do importante ensaio de Edward Said incluído pela Editora Perspectiva como introdução à recente reedição de Mimesis, podem servir de orientação: S. LERER. Literary history and the challenge of philology: the legacy of Erich Auerbach. Stanford: Stanford University Press, 1996; M. BORMUTH. Erich Auerbach: Kulturphilosoph im Exil. Göttingen: Wallstein, 2020.
Para saber mais sobre o stil novo, um manual recente: P. RIGO. Lo stilnovo. Firenze: Franco Cesati, 2020. E uma monografia crítica: D. PIROVANO. Il dolce stil novo. Roma: Salerno, 2014. Pirovano também organizou uma edição comentada dos stilnovisti, de que nos servimos amiúde: D. PIROVANO (ed.). Poeti del dolce stil novo. Roma: Salerno, 2021 (coleção “I diamanti”). Todos os textos dos stilnovisti, porém, foram citados segundo a edição monumental de Contini: G. CONTINI (ed.). Poeti del Duecento. Milano/Napoli: Riccardo Ricciardi, 1960, 2 v.. Já a Vita nova, com os comentários de Donato Pirovano ao libelo e de Marco Grimaldi aos poemas, foi citada de acordo com: D. PIROVANO; M. GRIMALDI (ed.) Nuova edizione commentata delle opere di Dante: volume 1, Vita nuova, Rime, tomo I, Vita nuova, le rime della Vita nuova e altre rime del tempo della Vita nuova. Roma: Salerno, 2015.
Referimo-nos ainda a: P. BORSA. La nuova poesia di Guido Guinizelli. Firenze: Cadmo, 2007; G. CONTINI. Introduzione. In: IDEM (ed.). Dante Alighieri. Rime. Torino: Einaudi, 2021, p. liv-lxx (para a caracterização do stil novo); G. CONTINI. Esercizio d’interpretazione sopra un sonetto di Dante. In: IDEM. Un’idea di Dante: saggi danteschi. Torino: Einaudi, p. 21-31; S. GENTILI. L’uomo aristotelico alle origini della letteratura italiana. Roma: Carocci, 2005; G. W. F. HEGEL. Vorlesungen über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970.
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