por Diego Klautau
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Quando comecei a escrever a dissertação de mestrado, tive três grandes surpresas que me ajudaram muito. Era 2006, um ano após minha matrícula na PUC-SP em Ciências da Religião. O primeiro impacto foi a descoberta da tradução das Cartas de J.R.R. Tolkien, aquelas mesmas que havia ganhado do Brendan, na Nova Zelândia, em 2003. O trabalho do Gabriel Oliva Brum, lançado pela editora Arte & Letra, me ajudou enormemente a confirmar tudo aquilo que, com meu inglês rudimentar, estava lendo.
No mesmo ano, pouco tempo depois, encontrei o mestrado de Reinaldo José Lopes, que consiste numa proposta de tradução do livro Tree and Leaf, que inclui o ensaio “On Fairy-Stories”, traduzido como “Sobre Estórias de Fadas”, foco deste ensaio. E a terceira surpresa foi o achado casual numa livraria de uma outra tradução do ensaio de Tolkien, feita por Ronald Kyrmse e lançada pela editora Conrad. Essas obras em português fortaleceram muito minha pesquisa e sou muito grato aos três pelo trabalho que fizeram. É interessante pensar em como esse ano de 2006 foi importante para os estudos tolkienistas no Brasil.
O ensaio “Sobre Estórias de Fadas” é o texto mais importante de Tolkien sobre teoria literária. Ele foi apresentado inicialmente como uma conferência em 08 de março de 1939 na Universidade de St. Andrews, na Escócia, e posteriormente ampliado até sua publicação em livro em 1947. Seu tema central são as estórias de fadas: sua definição, origem e funções. Sua erudição e densidade intelectual são notáveis e têm correspondência com a profundidade e extensão da literatura tolkieniana, na qual uma montanha nunca é apenas um cenário aleatório, mas possui nomes diversos e uma história própria na qual aparecem personagens e eventos significativos. Da mesma forma, “Sobre Estórias de Fadas” nunca cita um autor, um argumento ou uma exemplificação que não esteja conectada com uma rede de referências teóricas e pressupostos conceituais, num elegante conjunto de premissas sutis e implícitas.[1]
No entanto, o ensaio é criticado como o menos exitoso trabalho de argumentação de Tolkien[2], justamente por não possuir uma delimitação filológica precisa. Minha proposta é que a interpretação mais adequada para o texto não está na filologia, mas na intersecção entre filosofia e teologia. Embora não tivesse formação acadêmica formal em Filosofia ou Teologia, Tolkien era um erudito interessado na Antiguidade e no Medievo, pesquisador universitário cujos objetos de pesquisa frequentemente continham elementos que se relacionavam com essas áreas e, além disso, tinha cursado Clássicos no Exeter College da Universidade de Oxford entre 1911 e 1913, período no qual estudou autores da tragédia grega e os diálogos de Platão.[3]
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Neste texto, vou me restringir a apenas alguns pontos relativos a uma determinada tradição filosófica, conhecida como realista.[4] Em termos simples, a filosofia realista é a que se fundamenta na interpretação feita pela escolástica dos postulados antropológicos, gnosiológicos, morais e ontológicos inaugurados por Platão e Aristóteles, trazidos para o diálogo com o cristianismo pela Patrística, como em Santo Agostinho e, por fim, sistematizados pelas sumas medievais como as de São Tomás.
Por que defender uma leitura realista desse ensaio tolkieniano? Primeiro porque ela converge com a biografia de Tolkien, formado como um intelectual católico praticante no início do século XX[5], justamente quando há um retorno do tomismo promovido pelo Papa Leão XIII, especialmente na encíclica Aeterni Patris (1879).[6] Nesse sentido, aponto a importância do padre Francis Xavier Morgan[7], que se tornou tutor de Tolkien a partir de 1904, ano da morte de sua mãe, Mabel. Padre Francis era membro do Oratório São Felipe Néri, em Birmingham, fundado pelo cardeal John Newman, figura fundamental para a renovação do catolicismo na Inglaterra no final do século XIX.
Segundo, pelas conclusões presentes tanto nas análises de Tolkien sobre Sir Gawain e de Beowulf, especialmente em relação à lei moral e à maneira como o cristianismo se relaciona com o paganismo por via do desenvolvimento da razão natural e da busca pelo transcendente. É justamente essa relação de continuidade da filosofia pagã, oriunda do tratamento crítico dos mitos, com a teologia e filosofia cristãs que encontramos nas reflexões acadêmicas de Tolkien. E, por fim, pelos argumentos e premissas presentes no próprio ensaio “Sobre Estórias de Fadas”, que se tornam mais compreensíveis e harmônicos quando lidos por meio da tradição realista.
Dessa forma, defendo que o conjunto desses pressupostos conceituais subjacentes ao ensaio forma uma teoria. Para delimitar o sentido do termo, sigo as premissas hermenêuticas da tradição filosófica apresentada, não me restringindo aos expoentes literários ou filológicos presentes na época da elaboração das obras de Tolkien. Assim, entendo teoria como essa articulação conceitual que constitui a unidade compreensiva do objeto que, no caso em questão, são as estórias de fadas. De fato, a palavra teoria(s) (theory-theories)[8] aparece no ensaio cinco vezes, sempre de forma crítica, identificada com limitações e erros de perspectivas derivadas da concepção analítica moderna. Todavia, embora Tolkien não use o termo como proposta ou finalidade, entendo ser possível resgatar seu uso conforme a tradição realista para a apreciação do ensaio. Como afirma Werner Jaeger:
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A ‘teoria’ da filosofia grega está intimamente ligada à sua arte e à sua poesia. Não contém só o elemento racional em que pensamos em primeiro lugar, mas também, como o indica a etimologia da palavra, um elemento intuitivo que apreende o objeto como um todo na sua ‘ideia’, isto é, como uma forma vista […]. Não é uma simples soma de observações particulares e abstrações metódicas, mas algo que chega mais longe, uma interpretação dos fatos particulares a partir de uma imagem que lhes dá uma posição e um sentido como partes de um todo.[9]
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A partir dessa associação entre contemplação (theoria) e conhecimento, encontramos três sentidos do termo entrelaçados em A República: (1) a teoria é a visão do conjunto das coisas;[10] (2) Platão afirma que a contemplação (theoria) é a visão da alma da região inteligível, o mundo das ideia, para além dos dados dos sentidos;[11] (3) A teoria é diferente da técnica, ou arte (téchné), porque tem uma finalidade diferente, pois é um saber que não busca a manipulação instrumental, mas busca realizar o propósito da natureza humana: a inteligência das coisas.[12] Assim, proponho que “Sobre Estórias de Fadas” apresenta uma visão de conjunto do gênero literário, buscando indicar os elos com áreas correlatas (mitologia, filologia, história, antropologia, filosofia, teologia), assim como estabelece conceitos fundamentais para a descrição dos elementos constitutivos das estórias de fadas e, por fim, tem como finalidade a admiração, compreensão e deleite do objeto estudado.
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Obviamente, pelo fato de Tolkien não ser filósofo ou teólogo, não presumo que haja o rigor de um tratado metafísico da antiguidade grega, de uma sistematização de lógica medieval ou uma tese de filosofia analítica moderna. A relação entre os conceitos, especialmente os que estão implícitos em afirmações mais ou menos vagas, é flutuante e Tolkien parece passear por argumentos aristotélicos, platônicos, agostinianos e tomistas sem maiores preocupações. Todavia, o fator que sustenta minha tese de unidade teórica do ensaio, apesar da amplitude de assuntos percorridos, é a persistência de Tolkien em circunscrever, dentro do possível, os contornos do objeto estórias de fadas.
Logo na apresentação do ensaio, Tolkien anuncia que sua abordagem das estórias de fadas é uma aventura temerária. Ele define esse objeto como uma terra perigosa, que denomina de Feéria. Como veremos, essa abordagem metafórica das estórias de fadas como um lugar é fundamental para toda a teoria literária tolkieniana e sua relação com a filosofia realista. Contudo, nesse primeiro momento, quero chamar atenção para o que Tolkien considera como a característica primeira dessa Terra dos Elfos: o assombro e maravilhamento.[13]
Em relação aos mitos, o termo “maravilha” (thaumaston) pode ser encontrado em Platão, no diálogo Teeteto,[14] no qual Sócrates afirma que o início da filosofia é o assombro, o espanto ou o maravilhamento com a realidade. Nesse mesmo sentido, Aristóteles em sua Metafísica,[15] afirma que tanto o amante da sabedoria (philosophos) quanto o amante dos mitos (philomythus) se encontram na origem de sua produção quando estão tomados pelo assombro (thaumaston). Na Poética[16] encontramos a expressão como resultado da produção da mimese poética aliado à finalidade de suscitar o pavor e a compaixão. Assim, por meio das palavras assombro[17] ou maravilha[18] (wonder, marvel), Tolkien se refere no decorrer do ensaio a essa característica essencial de Feéria. Esse é um primeiro princípio hermenêutico para compreendermos todo o ensaio: é um exercício especulativo de contemplação e de admiração do objeto e não de análise minuciosa de seus elementos constituintes.
Na sequência, são propostas três perguntas: o que são as estórias de fadas? Qual é a sua origem? Qual é o seu uso?[19] Ora, nessas perguntas podemos encontrar o seu método, seu objetivo e principal teoria que está implícita no texto. Como meu objetivo neste capítulo é enfatizar a pertença de Tolkien a essa tradição realista, a melhor maneira de derivar essa perspectiva teórico-metodológica se dá pelas perguntas iniciais do autor, que orientam seu aporte do objeto em questão. Aqui, aproximo essas três perguntas à teoria das quatro causas de Aristóteles.
Segundo essa teoria clássica, apresentada na Metafísica,[20] a melhor maneira de entender a realidade de algo é investigar, primeiramente, do que essa coisa é feita em termos de elementos e propriedades que nossos sentidos podem perceber. Isso é a matéria da qual a coisa é feita. Assim, identificamos se é feita de carne e ossos, madeira, vegetais, pedras, fogo, água, ar. Em seguida, é necessário perceber o princípio organizador daquela matéria, os contornos e limites que definem a coisa observada como algo distinto de um caos informe. Isso é a forma que organiza aquela coisa e substância. Em terceiro, é preciso averiguar quais foram as forças que manipularam a matéria para que esta se conformasse a determinada forma específica, que trabalharam para estruturar a combinação entre forma e matéria. Isso é a causa eficiente, ou seja, o agente que operou para que aquela coisa apresentasse sua configuração particular entre a forma e a matéria. Além de matéria, forma e eficiência, a quarta causa é a finalidade, aquilo que define a função, a meta, o propósito para o qual aquela coisa investigada existe em sua relação com o cosmos, no sentido de ordem lógica da realidade e como o bem (agathón) de cada coisa.[21]
O exemplo dado por Aristóteles em outra obra, a Física,[22] é o da estátua. A causa material é o bronze do qual a estátua é feita. A causa formal é a imagem que configura o bronze numa determinada representação, como um herói a ser homenageado. A causa eficiente é o escultor que usa a arte da escultura para unir a forma de homem à matéria do bronze. A causa final da representação do herói no bronze é a contemplação da beleza da arte.
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Contudo, o que essa teoria das quatro causas tem a ver com as estórias de fadas de Tolkien? Ora, quando Tolkien responde a primeira pergunta (o que são estórias de fadas?), na seção do ensaio que ele denomina “Estórias de Fadas”, ele investiga tanto a matéria quanto a forma desse objeto. Na seção “Origens”, apresenta considerações sobre a causa eficiente, enquanto na seção “Crianças” demonstra como esse gênero literário é associado a crianças apenas por questões acidentais. Finalmente, tanto na seção “Fantasia” quanto em “Recuperação, Escape, Consolação” desenvolve sua teoria acerca da finalidade desse gênero literário. No “Epílogo” e nas “Notas”, alguns apontamentos sobre relações com a teologia e esclarecimentos pontuais acrescentam intuições muito esclarecedoras para a apreciação geral do ensaio. Neste capítulo, vamos nos concentrar apenas na seção “Estórias de Fadas”. Para desenvolver esses passos, é importante definir o fenômeno a ser analisado pela teoria das quatro causas, pois as estórias de fadas são um objeto diferente de uma estátua de bronze.
Tolkien começa sua investigação com as definições do Oxford English Dictionary, acentuando que somente a expressão conto de fadas (fairy-tale) está presente e não o que ele se propõe a discutir, a estória de fadas (fairy-story).[23] Essa ressalva de Tolkien é fundamental para sua teorização do gênero, pois os contos de fadas são descritos no dicionário como um conto sobre fadas, definição que Tolkien de pronto rejeita. Em seguida, volta novamente ao dicionário de Oxford e recorta o verbete fada, com as seguintes características de definição: (1) são seres sobrenaturais (2) de tamanho diminuto (3) possuidores de poderes mágicos (4) influenciam os homens para o bem e para o mal.
A questão do sobrenatural retornará no decorrer do ensaio e é uma dimensão essencial na teoria ligada à tradição realista. Todavia, nesse primeiro momento, Tolkien afirma que as fadas só são sobrenaturais se as entendermos como superlativamente naturais, ou seja, são muito naturais. Nesse sentido, são os homens que possuem uma dimensão sobrenatural. Trata-se de uma afirmação sintética, sem muitas explicações, que só se desenrolam no prosseguimento do texto. É importante notar que Tolkien associa essa recusa do sobrenatural para as fadas a um poema do século XIII atribuído a Thomas, o Trovador,[24] que afirma que a Terra dos Elfos não leva necessariamente ao Inferno e nem ao Paraíso e, embora possam existir relações entre eles, corresponde a uma realidade diferente de ambos.
Sobre o tamanho diminuto, Tolkien explica que esse é um fenômeno moderno. Da mesma maneira que os anjos passaram de seres temíveis, ora exterminadores, ora guardiões, para representações de crianças gordinhas com asas inocentes, as fadas da Antiguidade e da Idade Média eram criaturas muito mais imponentes que os seres infantilizados de certas versões modernas. Vale lembrar, o poema de Thomas, o Trovador, do século XIII, não menciona fadas, mas elfos. Tolkien, porém, indica um poema de John Gower, do século XIV, como a primeira ocorrência da palavra “fada” em inglês. Nesse poema, Confessio Amantis,[25] Gower apresenta um cavaleiro muito bonito que viria de Feéria, a Terra dos Elfos, que então começaram a ser denominados “fadas”. Nessa parte, Tolkien nos apresenta uma definição de Feéria muito significativa para sua investigação: o reino ou estado no qual as fadas têm seu ser.[26] Ao mesmo tempo, Tolkien admite que esse Reino Perigoso não pode ser definido ou descrito diretamente, pois uma das qualidades de Feérie é ser indescritível mas não imperceptível e decide, assim, apresentar alguns vislumbres de sua própria visão imperfeita.[27]
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No caso da magia, Tolkien a descreve inicialmente como o poder de manipular os desejos do corpo e do coração dos homens. É o mesmo significado que Platão apresenta para a fabricação dos mitos (mythopoeia)[28] n’A República, ora denominando-a goeteia[29] (traduzido comumente para o português como magia ou encantamento), ora poiesis, a depender do caráter do uso. Em ambos os casos, a perspectiva da magia como arte ou técnica (téchné)[30] de manipulação do coração humano através da imaginação é mantida. Nesse sentido, Tolkien afirma que a própria Feéria pode ser entendida como Magia (maiúscula dele, Magic)[31] em suas operações para a realização de maravilhas. Como veremos, de forma similar ao que vimos para o termo sobrenatural, cuja controvérsia presente no ensaio quanto à na concepção de magia ora como téchné e poiesis (seja na concepção tecnocientífica moderna, seja na relação com o artesanato de mitos), e ora como goeteia (a manipulação imoral das paixões e da imaginação dos homens) é um elo essencial com a tradição realista.
Por fim, o bem e o mal das estórias de fadas são caracterizados como análogos aos que estão expressos nas narrativas do ciclo arturiano, em especial Sir Gawain and the Green Knight.[32] Ora, como vimos no capítulo sobre Sir Gawain, toda a discussão da moralidade é entendida por Tolkien como referente à lei moral e sua origem na Mente Divina, de recorte especificamente escolástico e, portanto, em diálogo com São Tomás de Aquino.[33] Não são fortuitos, como quase nada é em Tolkien, os discretos apontamentos irônicos acerca da realidade dos elfos, tanto como criações humanas que servem como expressões da Verdade (que Tolkien escreveu com inicial maiúscula, Truth)[34] ou como vontades e poderes reais independentes das mentes dos homens.
Após termos encontrado a definição de Tolkien, qual é, enfim, a matéria das estórias de fadas? São justamente as estórias concretas recolhidas nas tradições orais e escritas, com as palavras que as compõem, sendo estruturadas em narrativas formadas por conjuntos de personagens, temas, objetos e cenários. É o que Tolkien denomina mundo secundário, em contraste com a realidade existente fora das estórias de fadas, que é o nosso mundo cotidiano, o mundo primário. Assim, Tolkien segue descrevendo a matéria composta pela linguagem nos contos da tradição oral recolhidos por Andrew Lang; parte para poemas medievais britânicos, como os de Thomas, o Trovador, e John Gower; discute com os do período do humanismo e da Renascença por meio de exemplos de William Shakespeare, Michael Drayton e Edmund Spenser; cruza com os contos populares gaélicos e galeses dos shee-folk; entra na matéria da Bretanha com o ciclo arturiano de Sir Gawain and the Green Knight e do inglês antigo de Beowulf; encontrando, enfim, as narrativas recolhidas por Charles Perrault e os Irmãos Grimm.
Em seguida, Tolkien nos apresenta sua proposta de definição da forma das estórias de fadas, expressa no decorrer do ensaio como essência[35] (esssence, essential, essentially) ou natureza[36] (nature, natural, naturally). É precisamente essa delimitação que é usada para excluir algumas narrativas que materialmente contêm fadas, mas que não estão ligadas formalmente à sua essência. Esse tipo de expurgo é um método antigo utilizado na chamada teologia negativa[37], é baseado na delimitação de algo a partir do seu contraste, evidenciando aquilo que a coisa não é. No caso das estórias de fadas, após apresentar a materialidade do gênero, isto é, as narrativas concretas recolhidas durante a história dos povos e da cultura, Tolkien começa a escolher algumas dessas estórias a partir de critérios que vão além do seu conteúdo material, isto é, pela presença de descrições de fadas, elfos, seres diminutos, objetos mágicos e animais falantes. Ao separar as narrativas que são estórias de fadas das que não são, Tolkien afirma que o elemento material é insuficiente. É aí que encontramos a definição formal.
Assim, retomando a diferença entre um conto que meramente contenha fadas e a definição formal de estória de fadas, Tolkien afirma que esta depende da definição da natureza[38] própria de Feéria. A palavra natureza, com o sentido de princípio intrínseco e constitutivo de algo e que configura a existência concreta desse algo, pode ser entendida como relacionada à forma aristotélica. Ora, quando Tolkien afirma que a natureza das estórias de fadas é na verdade a natureza de Feéria, ele remete ao poema de Gower, que descreve o cavaleiro provindo da Terra das Fadas. Embora ele anuncie que essa definição é metafórica, pois a Terra dos Elfos não pode ser descrita absolutamente, Tolkien afirma que é possível vislumbrar alguns traços, ainda que parciais e imperfeitos.
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Esse recurso literário de definição formal de uma realidade a partir da metáfora é encontrado nos textos filosóficos de Platão. N’A República, Platão denomina a dimensão inteligível do real, aquela que não pode ser acessada meramente pelos sentidos, de mundo das ideias[39] (noeton tópon). Assim, nessa tentativa de compreensão da natureza de Feéria, proponho que nos aproximemos analogicamente de Platão e de seu mundo das ideias para compreender o que Tolkien quer dizer com o mundo dos elfos. No diálogo Timeu,[40] Platão descreve o surgimento do mundo usando um mito filosófico, ou seja, uma narrativa ficcional, mas que contém princípios lógicos que podem ser extraídos da narrativa a partir do raciocínio analógico.
Em breves palavras, existe o mundo das formas, das ideias, dos conceitos extramentais eternos e existentes por si mesmos que residem fora da matéria. Nele há um demiurgo (palavra grega que significa artesão) igualmente espiritual e eterno, mas com poder eficiente de ação. E, por fim, existe a matéria informe, pura possibilidade de arranjos, igualmente eterna. O demiurgo, então, contemplando intelectualmente as formas eternas, opera na matéria a configuração do mundo, produzindo os elementos (fogo, terra, água e ar), os céus e os planetas, os seres vivos: os animais, plantas e homens. A finalidade da criação é a expressão da existência como Bem, Belo e Verdadeiro. Assim, as quatro causas aristotélicas são prenunciadas nesse mito.[41]
Para Platão, o mundo das ideias é essa realidade eterna e inteligível, na qual as formas, os princípios constitutivos de todas as coisas materiais, residem. Na Metafísica,[42] Aristóteles critica essa concepção de seu mestre, afirmando que tais formas existem nas próprias substâncias individuais. Assim, ainda que as formas tenham realidade independente da mente humana, é somente pela atuação do que será denominado pelos medievais de intelecto agente[43] (parte constitutiva da mente humana), que conseguimos abstrair (extrair, arrancar) as formas das coisas para nosso intelecto. Porém, o que isso nos ajuda para encontrarmos a natureza de Feéria? Antes de apresentar meu entendimento mais filosófico do que é Feéria (obviamente sem intenção de esgotá-la), vou retomar as exclusões que Tolkien fez ao analisar a matéria concreta do conjunto histórico das narrativas que se apresentaram como estórias de fadas.
Primeiramente, Tolkien exclui as estórias de viajantes, tais como as aventuras do Barão de Münchhausen e de Gulliver, afirmando que o tamanho diminuto dos liliputianos é apenas acidental, pois são homens como nós. A razão apresentada é que a natureza das estórias de fadas é constituída pela expressão de um desejo de explorar os confins do tempo e do espaço,[44] e as estórias de viajantes apenas descrevem maravilhas contidas na realidade espaço-temporal do mundo comum. E aqui Tolkien apresenta outro traço distintivo da forma das estórias de fadas: elas são produtos da expressão de desejos por maravilhas. Logo, sua forma está ligada diretamente a uma fabricação originária a partir das paixões e da vontade, ou seja, elas são um algo feito pela humanidade. São uma realidade artificial, no sentido de que são originárias de uma arte que integra emoção e sentimentos, uma decisão de ação e um domínio técnico-conceitual.
Relacionando esse traço a outra característica já anunciada, a de que se trata da natureza de um lugar metafórico, concluímos que a forma das estórias de fadas é um produto artístico que exprime Feéria, o lugar das maravilhas, e que esse mundo é constituído por vislumbres dos confins do espaço e do tempo que transcendem, por meio do estranhamento[45] como recurso literário, os limites da realidade primária.
Uma segunda exclusão feita por Tolkien são as estórias que se apresentam como relatos do “sonhar do sono humano real”.[46] Embora cheios de maravilhas — o que as aproxima da contemplação por meio do estranhamento proposta pelas estórias de fadas — os relatos que usam a ambientação do sonhar se assumem como devaneio e ilusão desconectados absolutamente da realidade. É nisto que consiste a expressão que mistura lamento e desprezo: foi só um sonho. Isso não faz parte da essência das estórias de fadas. O exemplo que Tolkien apresenta aqui é Alice, de Lewis Carroll, excluída do gênero estória de fadas porque se apresenta literalmente como um sonho. A justificativa para essa retirada do sonho do gênero é a característica das estórias de fadas de se assumirem como verdadeiras, ou seja, como integrantes da realidade desperta, ainda que divergente do mundo primário.
Dessa forma, Tolkien apresenta outro desejo como elemento formador das estórias de fadas, o da realização, independente da mente que o concebe, do assombro imaginado.[47] Essa realização é entendida como concretização num produto artístico, uma narrativa fabricada, oral ou escrita. É a libertação do autor e a corporificação da estória de fadas, a passagem de um ente meramente mental para sua “materialização” numa estrutura autônoma feita pela linguagem.
Literariamente, as estórias de fadas não são apenas relatos de sonhos ou fingimentos, mas pretendem-se reais em seu próprio mundo. Da mesma forma, apresentam-se como independentes de seu próprio autor, constituídas como narrativas que não estão ligadas a uma pessoa de maneira inseparável, como uma autobiografia ou apenas como expressão de sentimentos particulares alegorizados. É justamente essa característica que as permite ultrapassar as gerações, muitas vezes sendo consideradas de autoria desconhecida.
A terceira exclusão feita por Tolkien é das fábulas de animais. De fato, tal gênero possui conexões com as estórias de fadas, pois em muitas destas existem animais e outras criaturas que falam como os homens. Contudo, essa maravilha reflete o terceiro desejo humano que molda as estórias de fadas, o de “entrar em comunhão com outras coisas vivas”.[48] Assim, nas narrativas que apresentam os animais falantes apenas como alegorias, máscaras e representações dos próprios homens, como em Os Três Porquinhos, existe apenas fábula de animais e não estórias de fadas.
Apesar da aproximação das fábulas de animais com as estórias de fadas também se dar pela forte presença do elemento moral, a interação dos humanos com seres maravilhosos (fantásticos) próprios em sua configuração, é um traço de Feéria. Essa distinção literária vai muito além da significação alegórica moralizante de animais com uma equivalência direta para com os homens. Novamente, reitera-se o estranhamento diante do mundo primário como recurso literário para acessar Feéria por meio da recusa da redução alegórica da humanidade aos seres fantásticos.
A partir do que foi exposto por Tolkien, podemos definir a forma das estórias de fadas como expressão de um lugar de maravilhas, a própria Feéria. Os três desejos satisfeitos por essa expressão são: (1) o de explorar os confins do tempo e do espaço, (2) o de comunhão com outras coisas vivas e (3) o de realizar as maravilhas concebidas. Com efeito, as qualidades da natureza da Terra dos Elfos são: (1) sua ordenação lógico-racional de uma realidade compatível com o mundo primário; (2) sua diversidade e fecundidade de fauna e flora e civilizações inteligentes; (3) sua inteligibilidade e comunicabilidade na linguagem.[49] Assim, ordenação cósmica, diversidade de seres e inteligibilidade compõem a natureza de Feéria. Ademais, tais traços se manifestam literariamente para a produzir o efeito de estranhamento, ou seja, nem um completo desconhecimento do que se mostra e nem um pleno reconhecimento, mas sim a percepção de algo ao mesmo tempo familiar e diferente. Finalmente, podemos avançar temerariamente rumo a uma definição filosófica de Feéria, enquanto causa formal das estórias de fadas.
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Sobre a ideia de a natureza das estórias de fadas ser na verdade um lugar, voltemos ao mundo das ideias de Platão. Em sua teoria do conhecimento, podemos encontrar dois meios que permitem ao homem conhecer alguma coisa: pelos sentidos e pela inteligência. Os sentidos nos fornecem as informações oriundas da realidade material, dos seres concretos com os quais interagimos com nossa visão, olfato, paladar, audição e tato. Com eles, percebemos como o mundo se apresenta para nós. E o que a nossa sensibilidade nos mostra é a transitoriedade absoluta de tudo o que percebemos. Tudo nasce, cresce e se dissolve. São as famosas sombras da caverna platônica. Em outro mundo, fora da caverna, é que estão as realidades duradouras, eternas, verdadeiramente existentes.
Essas são as formas, as ideias, as essências de tudo o que existe na matéria. São elas que concedem a participação[50] em sua forma para que as coisas individuais e materiais possam existir. Por isso podem ser chamadas também de arquétipos ou universais, porque concedem a forma subsistente para os entes singulares. Essa dimensão inteligível é imaterial, inacessível aos nossos sentidos, mas possível de ser conhecida por nossa inteligência, pelos raciocínios e pela contemplação intelectual do mundo das ideias.
Entre o mundo dos sentidos, material e transitório, e o mundo das ideias, inteligível e eterno, existe um fosso que só é possível de ser transposto pela formulação em nossa mente das imagens (phantasmata) condensadas dos objetos dos sentidos. Ao captarmos uma pessoa concreta, guardamos sua imagem em nossa memória e podemos evocá-la mesmo quando ela sumiu de nossa vista. Essa capacidade da mente humana é chamada de imaginação (phantasia), e é a partir dela que iniciamos o processo, que Platão chama de dialética, em direção ao inteligir do que é a essência da pessoa, que serve não apenas para definir a mim ou à pessoa que vi mas todas as pessoas universalmente. É por essa razão que Platão dá tanta atenção à poesia e aos mitos em sua A República,[51] inclusive lançando mão de tantas narrativas míticas para exprimir suas teorias.
Como vimos, Aristóteles criticou a teoria de Platão do mundo das ideias,[52] pois entendia que as Ideias-Formas estavam nas coisas mesmas e nós as extrairíamos pelo intelecto agente. Não existiria uma dimensão ontológica na qual as formas puras repousavam eternamente. Assim, diante da realidade individual de um ente, era o nosso intelecto que abstraía a forma universal. Contudo, nesse processo de passagem, dentro da mente, do individual percebido pelos sentidos para o universal extraído e elaborado pelo intelecto, havia uma etapa intermediária. É justamente a imaginação (phantasia) que promove a integração dos dados dos sentidos em uma imagem unificada com todas as suas possibilidades. É dessa imagem que o intelecto extrai o universal.
Nesse sentido, no De Anima[53] Aristóteles descreve a imaginação não apenas como tendo a função de remontar mentalmente o ente que não está mais em nossa percepção direta (o que seria a operação feita pela memória), mas também como sendo capaz de recombinar traços de diferentes indivíduos, seres, animais, plantas, montanhas, virtudes e vícios e elaborar seres novos, fantásticos, que não existem enquanto elementos concretos e materiais. É justamente essa função, pressuposta na Poética,[54] que permite o poeta elaborar metaforicamente entes fictícios, que a depender da dedicação do fabulador podem ser mais ou menos verossímeis.
Logo, podemos afirmar que entre o mundo dos sentidos e o mundo das ideias existe um mundo intermediário, uma “Terra Média”, que podemos denominar de Terra dos Elfos, entendendo que essa dimensão inclui todas as possibilidades de maravilhas concebidas pela mente humana que, de alguma forma, refletem tanto a concretude do mundo primário quanto às estruturas combinatórias inteligíveis, as Formas, presentes no mundo das ideias.
Essa definição filosófica de Feéria inclui as três qualidades fundamentais apresentadas por Tolkien. Quanto à ordenação cósmica que sacia o desejo de explorar os confins do tempo e do espaço, esse mundo intermediário da imaginação obedece aos princípios estruturantes do mundo material e do mundo inteligível. Com efeito, da mesma maneira que o mundo dos sentidos existe materialmente e o mundo das ideias existe essencialmente fora de nossa mente, Feéria não é apenas uma expressão da imaginação do autor de uma estória de fadas, mas é constituída pelo conjunto de possibilidades que podem ser concebidas e realizadas pela linguagem. Tempo e espaço são regras fundamentais da ordenação dos cosmos, são categorias inevitáveis e inerentes a qualquer discurso, lógica ou razão.
Explorar tempo e espaço distantes é partir para o desconhecido, mas obedecendo às regras do ponto de partida. Contudo, o expurgo das estórias dos viajantes exige que em Feéria esse tempo e espaço sejam radicalmente diferentes do que vivemos no mundo primário, ainda que se mantenham como normas da realidade. Com efeito, todas as maravilhas de paisagens distantes e de épocas longínquas que nos são estranhas existem virtualmente como possibilidade lógica e imaginária fora de nós mesmos.
A característica da diversidade de seres está em Feéria, pois segue a mesma lógica do estranhamento das estruturas da realidade. É esse desejo de comunhão com as coisas vivas que nos permite vislumbrar a possibilidade de outras coisas vivas compartilharem conosco elementos próprios de nossa natureza, constituída pela racionalidade, vontade e paixões. A plena comunhão, palavra oriunda da tradição cristã, só é possível com o entendimento comum, a decisão conjunta e a paixão compartilhada. Nenhuma outra coisa viva pode ter todos esses aspectos como o homem, porque não possui tais elementos próprios da natureza humana.
Contudo, há a doutrina cristã da participação (participatio), cujo expoente primordial é Santo Agostinho, que em O Livre-Arbítrio[55] reelabora a filosofia de Platão da participação nas Ideias (Formas), afirmando que tudo o que existe é tributário de Deus, pois a mera possibilidade de ser algo é derivada de Deus, pois é o único que é em si e por si mesmo. Tudo é mutável e tende à deterioração e à dissolução, e todas as coisas minerais, vegetais, animais, com ou sem razão, só são de maneira transitória, tendo necessariamente que participar temporariamente daquilo que é a fonte de todo ser. Agostinho define as criaturas como poemas temporais feitos por Deus. Assim, a fundação de todo ser é n’Aquele que sempre foi, é e será, o próprio Eterno. Dessa maneira, o mundo das ideias platônico não existe em si mesmo, mas na mente divina.
Ora, Feéria é uma realidade na qual o homem encontra o mundo da possibilidade imaginada e desejada, que está, ainda que de maneira própria e assombrosa, dentro das regras elementares da realidade (os confins do tempo e do espaço), com seres que são absolutamente diferentes dele (de outra natureza), mas com os quais se pode entrar em comunhão plena, com racionalidade, vontade e afetos. É por isso que as fábulas de animais não se alçam a estórias de fadas, pois lhes falta a interação dos homens com outros seres falantes, propiciadas justamente pelo fato de possuírem a mesma racionalidade, vontade e afetividade e, portanto, a mesma moralidade natural.
É nessa ambiguidade e ironia que Tolkien insiste quando levanta a suspeita de que os elfos não são necessariamente produtos exclusivos da imaginação humana. Eles existem enquanto virtualidade e possibilidade em Feéria, que é próxima ao mundo das ideias, mas que não lhes concede existência concreta e material senão pela linguagem. E, ao mesmo tempo, os elfos são constituídos pela combinatória ficcional de maravilhas que, apesar de fundadas no mundo dos sentidos, o subverte e o transcende. Se aprofundarmos a questão filosoficamente, São Tomás, na Suma Teológica,[56] segue Santo Agostinho ao afirmar que as Ideias-Formas existem na mente de Deus, inclusive todas as virtualidades oriundas das possibilidades inerentes ao real. Logo, o Mundo das Fadas no sentido tolkieniano existe na própria Mente Divina.
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Essa afirmação temerária me leva ao terceiro traço da natureza de Feéria: sua inteligibilidade. De fato, o desejo de realização do assombro imaginado (independente da mente de quem o concebe) resulta na própria fabricação de mitos, a mitopoética (mython poieten) descrita por Aristóteles,[57] ou seja, a atividade artística tomada como virtude intelectual produtiva, que se refere ao mundo da possibilidade, do intermédio entre os sentidos e as Ideias-Formas. É por essa razão que Tolkien afirma que a produção de literatura de fantasia é uma atividade racional, embora possa ser feita de uma maneira que a torne mórbida.[58] É justamente essa racionalidade que garante que o estranhamento contenha tanto a familiaridade quanto o assombro pelo desconhecido.
O tipo de raciocínio analógico proposto por Aristóteles na Poética, que une elementos diferentes com características comuns para a consolidação da metáfora, é concretizado numa arte (téchné) por meio da atividade produtiva (poiesis) do homem,[59] na confecção, por meio da linguagem, de uma nova figura. Na Suma Teológica,[60] São Tomás apresenta a arte como virtude intelectual produtiva, isto é, a arte é a razão reta das coisas factíveis (ars est recta ratio factibilium), não sendo exatamente uma ciência, e também não uma prática, no sentido de ação moral. É assim porque o artista não tem como finalidade a contemplação (theoria) do funcionamento da realidade, como nas ciências, e também não visa atuar sobre si mesmo, como na prática das virtudes morais. O propósito do artista é fazer (fabricar, produzir, construir) algo distinto de si, ainda que o produto de sua arte possa carregar (embora não necessariamente) características de sua própria ciência ou moralidade ou que a obra fabricada possa inspirar contemplação ou elevação moral. Seja como for, o resultado da arte é algo independente do artista que originalmente o fez. A estátua de bronze existe definitivamente separada do escultor. As estórias de fadas, uma vez escritas ou narradas de forma inteligível, se tornam independentes da mente que as concebeu.
De fato, a Terra dos Elfos não é caótica nem alucinada, pois possui suas próprias regras. E a própria definição de regra pressupõe uma ordenação (ratio) que pode ser compreendida e comunicada, mesmo que custe entender que algumas regras são diferentes das do mundo primário. É nesse sentido que Tolkien afirma que Feéria pode ser entendida como a própria Magia, pois esta é a grande Arte élfica do encantamento da linguagem, concretizando o mundo das possibilidades não verificáveis no mundo primário, mas que dialogam com o mundo das ideias. A consumação do desejo de realização (no sentido de trazer para o real), do assombro concebido na Terra dos Elfos são as estórias de fadas, que são feitas pela própria Arte (Magia) da mitopoética, envolvendo razão, sentimento e vontade tanto do autor quanto do leitor. Féeria faz-se Magia porque só podemos acessá-la enquanto realização por meio do ofício da linguagem consumada na mitopoética: cada estória de fadas em sua singularidade.
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Notas:
[1] TESTI, Claudio A. Pagan Saints in Middle-earth. Zurich and Jena: Walking Tree Publishers, 2018. pp. 75-79.
[2]SHIPPEY, Tom. The Road to Middle-earth. Londres: Grafton/HarperCollinsPublishers, 1992. p. 45
[3] HAMMOND, Wayne G.; SCULL, Christina. The J. R. R. Tolkien companion and guide: Chronology. Londres: HarperCollins, 2006. pp. 28, 38.
[4] PIEPER, Josef. O que é filosofar? Tradução de Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado. São Paulo: Edições Loyola, 2007.pp. 29-38; MELENDO, Tomás. Metafísica da Realidade. Tradução de José Roberto Costa da Silva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llul), 2002. pp. 40-114; REALE, Giovanni. O saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. Tradução de Silvia Cobucci Leite. São Paulo: Edições Loyola, 2014. pp. 67-84; BRAGUE, Rémi. Âncoras no Céu: a infraestrutura metafísica. Tradução de Nicolás Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2013. pp.36-51. MARITAIN, Jacques. Introdução Geral à Filosofia. Tradução de Ilza das Neves. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1989. CARDONA, Carlos. Metafísica de la Opción Intelectual. Madrid: Ediciones Rialp, 1973.
[5] MCINTOSH, Jonathan S. Tolkien, St. Thomas, and the Metaphysics of Faërie. Kettering, OH: Angelico Press, 2017. pp.16-25.
[6] FABRO, Cornelio. Breve introdução ao tomismo. Tradução de Rafael Sampaio. Brasília, DF: Edições Cristo Rei, 2020. pp. 101-118.
[7] CARPENTER, Humphrey. J. R. R. Tolkien: uma biografia. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2018. pp. 41-42; 45.
[8] “Sobre Estórias de Fadas” (SEF) p. 32; p. 36; p. 60; p. 64; p. 86. Utilizo para as referências das páginas a tradução de Lopes (2020), cotejando os termos em inglês com a edição de Flieger e Anderson (2014). Ver nota 10.
[9] JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 12
[10] A República, Livro VI, 486a.
[11] Ibidem, Livro VII, 517a – 518c.
[12] Ibidem, Livro VII, 518d-519b.
[13] BERTI, Enrico. No Princípio era a Maravilha: As grandes questões da filosofia antiga. Tradução de Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2010, pp. 10-16.
[14] PLATÃO. Teeteto. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2007. 155d1. p.63
[15] ARISTÓTELES, REALE, Giovanni (ed.). Metafísica. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2015. 982b12-b28. pp. 11-13.
[16] ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. 1452a1-1452a9.
[17] SEF, p. 17, p. 27, p. 54, p. 55, p. 57, p. 83.
[18] Ibidem, p. 23, p. 26, p. 28, p. 68, p. 78, p. 80, p. 83.
[19] Ibidem, p.17.
[20] Metafísica, Livro I, 983a25-983b15.
[21] REALE, Giovanni. História da filosofia grega e romana, vol. IV: Aristóteles. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz; Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2013. p.33
[22] ARISTÓTELES. Física. Tradução de Lucas Angioni. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. 195a32-196b28. pp 49-50.
[23] SEF, p. 18.
[24] FLIEGER, Verlyn; ANDERSON, Douglas A. Editors’s Commentary. In: Tolkien On Fairy-stories. Londres: HarperCollinsPublishers, 2014. p. 87.
[25] SEF., p. 92.
[26] Ibidem, p. 23.
[27] Ibidem, 24.
[28] A República, Livro II, 377a-379a.
[29] Ibidem, Livro III, 413c.
[30] Ibidem, Livro I, 341d-342e.
[31] SEF, p. 24.
[32] Ibidem, p. 24.
[33] Suma Teológica, II parte, II seção, questões 90 a 108.
[34] SEF, p. 23.
[35] Ibidem, p. 27, p. 35, p. 38, p. 44, p. 57, p. 58, p. 71, p. 72, p. 74, p. 75, p. 78.
[36] Ibidem, p. 44, p. 45, p. 53, p. 55, p. 59, p. 63, p. 86.
[37] Suma Teológica, I parte, questão 84, art. 7.
[38] SEF, p.24.
[39] A República, Livro VI, 508c, 509d. Livro VII, 517b-c.
[40] PLATÃO. Timeu. Tradução, introdução e notas de Rodolfo Lopes. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos – Universidade de Coimbra, 2011. 28a – 32a. pp. 93-101.
[41] REALE, Giovanni. História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2014. pp.130-133.
[42] Metafísica, Livro I, 990b1 – 992a1.
[43] BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Tradução de Raimundo Vier O.F.M. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. pp. 472-476. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de São Tomás de Aquino: psicologia, metafísica. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo: Paulus, 2013. pp.110-122.
[44] SEF, p. 27.
[45] Ibidem, p. 17, p. 57, p. 67, p. 81.
[46] Ibidem, p. 27.
[47] Ibidem.
[48] Ibidem, 28.
[49] Um dos fundamentos da filosofia realista é a contemplação da realidade, seja em sua ordem (kosmos) espaço-temporal, seja na natureza (physis) dos entes. Além disso, a admiração e o estudo da natureza possuem uma significação existencial, derivando ensinamentos morais para o homem, como humildade diante da imensidão do universo e prudência diante do ritmo dos ciclos da vida. Ver HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1999. pp. 290-313.
[50] ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luís; MELENDO, Tomás. Metafísica. Tradução de Esteve Jaulent. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llul), 2014. pp. 319-341; FABRO, Cornelio; FERRARO, Christian (ed.). La Nozione Metafisica di Partecipazione: Secondo San Tommaso d’Aquino. Opere Complete, Vol. 3. Roma: Editrice del Verbo Incarnato, 2005.
[51] A República, Livro III, 377a – 379d, 414b-416d; Livro X, 599c-608b.
[52] Metafísica, Livro I, 990b1-993a10.
[53] De Anima, Livro III, 427b16-428b30.
[54] Poética, Seção XXV, 1460b5-1461a5.
[55] AGOSTINHO. Livre-Arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. Livro II, parte III. pp. 125-144.
[56] Suma Teológica, I parte, questão 15, art. 2.
[57] Poética, Seção IX, 1451b-1452a.
[58] SEF, p. 64, p. 84.
[59] Poética, Seção XXI, 1457b15- b34; Seção XXV, 1460b10- 1460b30.
[60] Suma Teológica, II parte, I seção, questão 57, art. 3 e 4.
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Este ensaio é uma reprodução adaptada de capítulo de Metafísica da Subcriação, obra de Diego Klautau sobre A filosofia do mito em J.R.R. Tolkien.
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O livro pode ser adqurido no site da editora A Outra Via.
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