“Figura”, de Erich Auerbach: leitura em movimento

Por Eduardo Henrik Aubert, professor de Letras Clássicas na USP, uma análise de fôlego de uma das principais obras do filólogo e crítico alemão, que acaba de ganhar uma nova tradução para a língua portuguesa.

Uma peça musical da Idade Média e seus palimpsestos

Notker, dito O Gago, monge e erudito que nasceu por volta de 840 e passou a vida na Abadia de Sankt Gallen (Suíça), onde morreu em 912, foi um prolífico compositor de peças musicais voltadas à performance na liturgia, reunidas em seu Liber hymnorum por volta de 880. Uma de suas muitas criações, a ser cantada nas missas em que se celebrasse a morte de um mártir, pode ser vista em manuscrito ligeiramente posterior (de cerca de 960-70), proveniente de outro mosteiro suíço, a Abadia de Einsiedeln (imagem 1).

Imagem 1: Einsiedeln, Stiftsbibliothek, codex 121, p. 526
(a prosa Quid tu uirgo, de Notker, o Gago)

Vê-se aqui o começo de uma prosa, gênero típico do Renascimento carolíngio que resultava da aposição de um texto — uma sílaba por nota, procedimento denominado prosulatio, “prosulação” — à melodia, profusamente melismática, que se cantava sobre a vogal “a” no final da palavra aleluia. Isso ocorria no cântico do Aleluia que se seguia à leitura do Evangelho nas missas festivas que não fossem marcadas pela contrição, como na Quaresma; esse melisma era conhecido, significativamente, por jubilus, “júbilo”.

A prosa em questão recebe no manuscrito o título Virgo plorans (“Virgem chorosa”), destacado em letras vermelhas logo após a rubrica De uno martyre (“Na [missa que celebra] um mártir”); na margem, na primeira linha da peça, veem-se as vogais A, E, U e A (de alleluia), com sua notação musical em azul — uma nota por sílaba — e, correspondentemente, à direita, o texto da prosa (aqui, as quatro sílabas Quid tu virgo, “Por que tu, virgem”), que deve ser cantado com a mesma melodia. O princípio vale para todas as linhas subsequentes, com a notação musical na margem e o texto à direita. Note-se que a melodia é a mesma para cada par de versos nesse início do canto.

A melodia — que se presta a reconstituição, podendo ser efetivamente cantada, e que se prestaria a diversas considerações — não nos ocupará neste momento, em que nos importa entender um pouco do complexo texto engenhado por Notker:

1. Quid tu, uirgo
mater, ploras, Rachel formosa,
cuius uultus Jacob delectat?
Por que choras, ó mãe virgem, bela
Raquel, cujo semblante agrada a Jacó?
2. Ceu sororis aniculae
Lippitudo eum iuuet!
Como se os olhos inchados de tua irmã
mais velha pudessem agradá-lo!
3. Terge, mater, fluentes oculos!
Quam te decent genarum rimulae?
Enxuga, ó mãe, os olhos em pranto!
Quanto te convêm as marcas na face?
4. “Heu, heu, heu, quid me incusatis
fletus incassum fundisse?
Cum sim orbata nato, paupertatem meam
qui solus curaret:
“Ai de mim, ai de mim, ai de mim, por que
me recriminas ter vertido um choro
em vão? Uma vez que fui privada de meu filho, o único que remediava à minha
pobreza,
5. Qui non hostibus cederet angustos terminos, quos mihi Jacob adquisiuit:
Quique stolidis fratribus, quos multos —
pro dolor — extuli, esset profuturus.”
Que não cederia aos inimigos as poucas
terras que Jacó adquiriu para mim e que favoreceria a seus tolos irmãos, os quais
— ó dor! — em grande número pus no
mundo.”
6. Numquid flendus est iste, qui regnum possedit caeleste:Por acaso deve ser chorado aquele que
possui o reino celeste
7. Quique prece frequenti miseris
fratribus apud deum auxiliatur?
E que, com oração frequente, ajuda, junto
a Deus, aos seus irmãos desafortunados?

Conforme se vê, uma voz não identificada se dirige a Raquel, perguntando-lhe por que chora — pergunta retórica que equivale a uma afirmação de que ela não deveria chorar, como se constatará claramente no fim, mas fica desde logo sugerido. Raquel responde que perdeu o filho, cujos predicados eram cuidar da mãe, contrapor-se aos inimigos e beneficiar os seus muitos irmãos, filhos de Raquel. O interlocutor de Raquel lhe explica enfim por que não deve chorar — seu filho está no reino celeste e provê aos seus irmãos não por nenhuma ação terrena, mas por oração eficaz pronunciada na proximidade de Deus.

Raquel é personagem bíblica (Gen.29-35), filha de Labão, por quem Jacó — filho de Isaac e de Rebeca, irmã de Labão — se apaixona perdidamente, ao chegar às terras do tio. Jacó aceita então trabalhar para Labão por sete anos em troca da mão de Raquel; findos os sete anos, Labão organiza um banquete de bodas, mas faz Jacó casar-se com a irmã mais velha de Raquel, Lia, menos bela e de olhos inchados (lippis erat oculis, Gen.29.17, na versão da Vulgata latina, aquela que Notker lia); promete-lhe, contudo, casá-lo em seguida também com Raquel, por mais sete anos de serviços.

Em um primeiro momento, o Senhor concede a fertilidade a Lia, que tem cinco filhos de Jacó; só depois permite que Raquel também conceba, primeiro José, e depois de alguns anos Benjamin, o décimo segundo filho de Jacó, origem da décima segunda tribo de Israel. O parto é complicado, e Raquel o chama “Benoni” (id est filius doloris mei, “isto é, filho da minha dor”, Gen.35.18). A mãe acaba por morrer no parto, e o pai do menino lhe atribui o nome definitivo “Benjamin” (id est filius dexterae, “isto é, filho de minha mão direita”); de sua estirpe, nascerá o primeiro rei de Israel, Saul.

Ora, diante desse resumo da narrativa veterotestamentária, a prosa de Notker não pode deixar de causar alguma estranheza. Afinal, embora próxima ao texto bíblico — ao qual retoma até o detalhe físico dos olhos de Lia com palavra cognata àquela que consta na Vulgata (lippis/lippitudo) —, no Livro do Gênesis, Raquel não deu à luz muitos filhos e não viveu para lamentar a morte de nenhum dos dois que efetivamente pariu.

Ocorre que a narrativa da história de vida de Raquel vem aqui inextricavelmente ligada a uma reminiscência no hermeneuticamente difícil Livro de Jeremias — datado mais de mil anos depois de quando teriam ocorrido os eventos em questão —, reminiscência que por sua vez será retomada no Evangelho de Mateus, seiscentos anos mais à frente. Em Jer.31.15-17 — sempre na dicção da Vulgata latina —, lê-se:

15 hæc dicit Dominus vox in excelso
audita est lamentationis fletus et luctus Rachel plorantis filios suos et nolentis consolari super eis quia non sunt
15 Assim diz Jeová: uma voz se ouviu no
alto, lamentação, choro amargo; Raquel
chora por seus filhos: não quer ser
consolada por seus filhos, porquanto já
não são.
16 hæc dicit Dominus quiescat vox tua a ploratu et oculi tui a lacrimis quia est
merces operi tuo ait Dominus et
revertentur de terra inimici
16 Assim diz Jeová: Reprime tua voz de
choro, e teus olhos de lágrimas: porque
há galardão por teu trabalho, diz Jeová; porquanto tornarão da terra do inimigo.
17 et est spes novissimis tuis ait Dominus
et revertentur filii ad terminos suos
17 E há esperança para teus descendentes,
diz Jeová: porquanto teus filhos tornarão
a seu termo. (Tradução de João Ferreira d’Almeida, ligeiramente alterada)

Claramente, esse trecho da profecia relatada por Isaías serve de molde estrutural para a prosa de Notker: é o próprio Senhor que consola uma Raquel chorosa por seus filhos, por razão que, no original, vem expressa como quia non sunt, que pode ser lido “porque não mais existem”, mas também como “porque não estão junto a si”, o que parece mais consentâneo com a sequência. O Senhor lhe promete que eles voltarão: revertentur, verbo do versículo 16 repetido no 17. Embora Raquel não fale, ao contrário da prosa de Notker, ela é, em um e outro texto, admoestada a parar de chorar, ainda que por razões diferentes: em Notker, porque seu filho está junto a Deus intercedendo pelos irmãos; no Livro de Jeremias, porque seus filhos voltarão para casa, retornando da terra do inimigo.

O texto é, evidentemente, hermético, sem que se explicite com clareza qual é a situação da partida, nem quem são os inimigos. Outro texto bíblico (Mt.2.16-18), contudo, interpretou que a profecia se cumprira com o Massacre dos Inocentes ordenado por Herodes, de que o menino Jesus escapou graças ao anjo do Senhor que apareceu em sonho a José:

16 tunc Herodes videns quoniam inlusus
esset a magis iratus est valde
et mittens occidit omnes pueros qui erant
in Bethleem et in omnibus finibus eius
a bimatu et infra secundum tempus quod exquisierat a magis
16 Vendo-se então Herodes escarnecido
dos sábios, indignou-se em grande
maneira e mandou e matou a todos os meninos em Belém, e em todos seus
termos, de idade e de dois anos e abaixo, conforme ao tempo, que dos sábios diligentemente inquirira.
17 tunc adimpletum est quod dictum est
per Hieremiam prophetam dicentem
17 Então se cumpriu o que foi dito pelo profeta Jeremias, que disse:
18 vox in Rama audita est ploratus, et
ululatus multus
Rachel plorans filios suos et noluit
consolari, quia non sunt
18 Uma voz se ouviu em Ramá,
lamentação, choro, e grande pranto:
chorava Raquel seus filhos, e não quis ser consolada, porque já não são.
(Tradução de João Ferreira d’Almeida)

A diferença no início da citação para com o texto registrado no Livro de Jeremias não nos ocupará aqui. Importa antes notar que só o princípio da profecia é retomado, de sorte que, explicitamente, a situação se identifica apenas pelo choro dos filhos de Raquel — que são aqui os filhos dos hebreus indistintamente considerados —, sem que se verifique, no caso específico, a correspondência da sequência da profecia, a saber, a volta dos filhos para casa.

Evidentemente, contudo, em contexto em que o Livro do Gênesis e o Livro de Jeremias eram parte de um repertório amplamente partilhado, a menção ao princípio do texto remete ao seu conjunto. É evidência disso o fato de que um conjunto de dramas litúrgicos medievais, surgidos desde o século XI e conhecidos como ordines Rachelis (“peças de Raquel”), integravam a liturgia do Dia dos Santos Inocentes, que comemorava as vítimas do Massacre promovido por Herodes, então concebidas como os primeiros mártires do cristianismo. Essas dramatizações tomavam provavelmente por base o próprio texto da prosa de Notker e, assim, continham o lamento de Raquel, fazendo explícita menção a Herodes. Na versão mais antiga — novamente com notação musical! —, vinda do mosteiro de Saint-Martial de Limoges (imagem 2), no Sul da França, um anjo responde a Raquel:

Noli, Rachel, deflere pignora.
Cur tristaris, et tundis pectora?
Noli flere, sed gaude potius,
Cui nati uiuunt felicius.     
Ergo gaude!
Summi patris eterni filius,
Hic est ille quem querit perdere,
Quis uos facis eterne uiuere.     
Ergo gaude!
Raquel, não chora os teus penhores!
Por que te entristeces e golpeias o peito?
Não chora, mas antes te alegra,
Tu, cujos filhos vivem mais felizes.     
Assim, alegra-te!
O filho do sumo pai eterno,
Eis aquele que [Herodes] procura matar,
Que faz com que vós vivais eternamente.     
Assim, alegra-te!
Imagem 2: Paris, BNF, ms. lat. 1139, f. 73r (o mais antigo ordo Rachelis)

A menção ao texto de Jeremias em conexão com o Massacre dos Inocentes no Evangelho de Mateus propicia, destarte, uma leitura cristã da profecia, fazendo substituir-se, ao conforto do retorno dos filhos, o contentamento com a sua salvação e com o atingimento da vida eterna propiciada pelo Cristo. As figurações veterotestamentárias de Raquel, primeiro em contexto narrativo e depois em contexto profético, ganham, pois, nitidamente, uma nova dimensão à luz da revelação cristã.

Todos esses textos — Gen.29-35; Jer.31.15-17; Mt.2.16-18 — estão simultaneamente presentes na prosa de Notker, sem que ela se reduza a nenhum deles: Raquel chora e é consolada, como em Jer.31.15-17; ela tem a densidade concreta de sua história de vida, como em Gen.29-35; o filho por que chora efetivamente morreu, como em Mt.2.16-18. Porém, o texto sugere mais do que isso desde sua abertura, quando Raquel, antes de ser nomeada, é referida como “mãe virgem” (virgo mater); ademais, ela perdeu um único filho (orbata nato), que provê todos os bens a seus irmãos tolos (stolidis fratribus), e enfim ele não regressará da terra do inimigo, mas possui o reino celeste e auxilia seus irmãos de lá, intervindo diretamente junto a Deus. Nada disso está diretamente nos três textos bíblicos. Enfim, no centro da peça, distintamente dos textos de que partiu, Notker inseriu um elaborado lamento de Raquel, dando-lhe, por primeiro, voz própria.

Ora, essas transformações operadas por Notker sobre os textos bíblicos são direcionadas a fazer ver — como condição mesma para a solução das aporias, que, por resolvíveis, são superficiais — na situação de Raquel e para além dela, outra situação, absolutamente decisiva em contexto cristão: a de Maria, esta sim virgem, que chora o filho único que efetivamente morreu — Jesus —, mas é consolada pelo fato de que seu filho está no Reino dos Céus, o qual efetivamente possui, de onde atua para o benefício de toda a tola humanidade.

Essa operação pressupõe um jogo de correspondências (Raquel/Maria; filho/Cristo; irmãos/humanidade) — com importante tradição antiga e medieval —, mas, muito mais profundamente, porque permite adivinhar as correspondências a partir de indícios textuais, tornando desnecessária uma longa explanação teológica, tal operação interpretativa se fundamenta em um esquema de compreensão dessas correspondências, isto é, no que se pode conceber como uma estrutura de significação, um molde que predispõe à leitura das correspondências, a relacionar os eventos do passado, mais especificamente do passado veterotestamentário, com os eventos decisivos que a eles se seguiram na história do Cristo e, depois dela e por causa dela, na história da humanidade resgatada do Pecado.

Essa estrutura de significação, que, para Notker, como para a ampla maioria dos cristãos tardo-antigos e medievais, era o fundamento mesmo de compreensão da história humana, entende que os eventos concretos — máxime aqueles do Antigo Testamento — têm uma existência histórica real, isto é, eles de fato aconteceram segundo a literalidade do relato bíblico (Raquel existiu e era filha de Labão, foi amada por seu primo Jacó, teve por irmã Lia, que de fato tinha olhos inchados — daí a insistência de Notker nesses traços de realidade); ao mesmo tempo, esses eventos não esgotam seu sentido no tempo em que foram presentes e ocorreram, mas, antes, têm um segundo valor, mais profundo, mais decisivo, pois remetem, como signos reais, por assim dizer, também ao que está, ou estava, por vir: eles são sombra, ou figura, são profecias reais, de eventos futuros, notadamente dos eventos centrais para a salvação humana em torno da Encarnação, da Morte e da Ressurreição de Cristo tais como narrados no Novo Testamento. Daí os deslocamentos da literalidade que, em Notker, operam como sinalizadores da necessidade dessa estrutura: Raquel como virgem que não era, mãe de muitos filhos que não teve, em luto por um filho que não morreu.

*

Essa ideia — de que os eventos veterotestamentários são, a um só tempo, reais em si mesmos e transcendentes de sua efetividade porque prenúncio dos eventos posteriores do Novo Testamento (e além) —, reconhecida, embora, como uma vertente da exegese bíblica, significou, segundo o filólogo alemão Erich Auerbach (1892-1957), muito mais que isso: teria sido uma cosmovisão absolutamente dominante na Antiguidade Tardia e em toda a Idade Média, estendendo-se até o limiar da modernidade, de modo a determinar não apenas a compreensão dos textos escriturais, mas a decifração mesma da realidade e, nessa condição, informadora também da representação da realidade nos textos literários desse vasto período (sobre a relação entre realidade, apreensão da realidade e representação da realidade em Auerbach, remetemos a texto que publicamos anteriormente neste Estado da Arte).

Embora essa ideia tenha uma longa gênese na obra de Auerbach e múltiplos desdobramentos até os últimos textos escritos, pretendemos, no que se segue, oferecer uma leitura do ensaio capital que dedicou ao tema em 1938, buscando, contudo, dar uma ideia do movimento reflexivo que passou por ele, mas não se fixou definitivamente naquele escrito. Postular uma leitura assim, de certo modo aberta — que não hipostasia o texto de 1938, mas o compreende como testemunho de um estágio temporário, e por isso mesmo precário, de uma reflexão —, pode ajudar também a abrir o texto auerbachiano para reflexões ulteriores sobre os interessantes problemas que suscita. É o que passamos a fazer.

Ansatz e Absicht: método da filologia histórico-sintética

Em 1952, Auerbach deu expressão clara a seu método de trabalho, em texto intitulado Philologie der Weltliteratur (“Filologia da literatura mundial”). Vejamos a enunciação, inserta formalmente após o sinal gráfico de dois pontos, do que denomina “princípio metodológico” (methodischen Prinzip):

Para levar a termo um grande plano de síntese (synthetischen Absicht), deve-se primeiramente encontrar um ponto de partida (Ansatz), uma empunhadura, por assim dizer, que permita abordar o objeto de estudo. O ponto de partida precisa distinguir um círculo de fenômenos firmemente delimitado e bem discernível; e a interpretação desses fenômenos precisa deter força de irradiação (Strahlkraft) de tal sorte que ela ordene e interprete, conjuntamente, um escopo bastante mais amplo do que o ponto de partida (GA, 297).

Trata-se, portanto, da enunciação de um percurso de investigação de matriz nitidamente indutiva — “indução a partir do testemunho individual” (Induktion aus dem einzelnen Zeugnis), dirá Auerbach em outra importante declaração de método, na introdução ao póstumo Literatursprache und Publikum in der lateinische Spätantike und im Mittelalter (“Língua literária e público na Antiguidade Tardia latina e na Idade Média”, LSP, 18), que veio a lume em 1958. Parte-se daquilo que já aparece como claramente circunscrito a uma primeira apreensão, mas que permite, ao ser interpretado, esclarecer um espectro muito mais extenso de fenômenos — e acrescentamos — talvez não tão evidentes ou delimitáveis à primeira vista, de modo a resultar em uma apreensão sintética de largas dimensões (“um plano geral de caráter sintético”, eine allgemeine Absicht synthetischen Charakters, GA, 298).

Esse ponto de partida precisa ser “um fenômeno parcial o mais possível delimitado, concreto e passível de descrição com instrumental técnico-filológico” (GA, 298). A aplicação do instrumental descritivo técnico-filológico (technisch-philologisch Hilfsmitteln), que é a técnica pela qual o método opera, não vem descrita aqui, embora muito se possa colher em sua obra coeva Introduction aux études de philologie romane (“Introdução aos estudos de filologia românica”, 1949). De todo modo, é preciosa a exemplificação que Auerbach fornece:

Os pontos de partida podem ser muito distintos; enumerar aqui todas as possibilidades seria impossível. A particularidade de um bom ponto de partida repousa, por um lado, em sua concretude e em sua densidade e, por outro, em sua força de irradiação potencial. Ele pode consistir no sentido de uma palavra, em uma forma retórica ou em uma forma sintática, na interpretação de uma frase ou em uma série de declarações feitas em determinado lugar e em determinado momento; mas ele precisa irradiar, de tal sorte que, a partir dele (vom ihm aus), se possa conduzir uma história do mundo (GA, 298).

A aplicação da técnica filológica ao material concreto deve, pois, ser caminho de realização de uma “filologia histórico-sintética” (einer synthetisch-historischen Philologie, LSP, 18), como Auerbach insiste vez empós outra — o ponto de partida é, sempre, a expressão verbal concreta, posta em sua situação histórica precisa.

A concentração em “palavras e expressões como ponto de partida para investigações sintético-históricas” (LSP, 20) depende de um percurso a que Auerbach alude, economicamente, como “desdobramentos” do individual característico em direção à síntese (vom charakteristisch Einzelnen durch Entfaltung zur Synthese zu gelangen, LSP, 19), ou, um pouco mais amplamente, como descobrimento, no ponto de partida escolhido — que é elemento concreto de uma realidade histórica, um seu fragmento — de “uma marca característica interna à própria história, determinada no próprio ponto de partida, a qual, destacada e desdobrada, esclarece tanto a ele mesmo como a outros objetos que estão em relação com ele” (ein innergeschichtliches, an ihm festgestelltes Merkmal, welches, hervorgehoben und entfaltet, ihn selbst in seiner Eigentümlichkeit und andere Gegenstände im Verhältnis zu ihm deutlich macht, LSP, 20).

O pressuposto que sustenta essa operação de concentração e desdobramento é a ideia, colhida por Auerbach no filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744) — certamente seu máximo interlocutor teórico —, da “unidade de tudo o que se conforma em cada período histórico” (LSP, 12); assim sendo, pressuposta a “unidade das épocas”, “cada texto necessariamente fornece a perspectiva que permite a síntese” (so muβ jeder Text den Ausblick geben, der die Synthese ermöglicht, LSP, 20). Como bem resumiu Holdheim, um aluno de Auerbach, “o todo está contido, em potencial, nas partes” — na fórmula feliz de Tinè, trata-se da “copresença do universal no particular”; destarte, prossegue Holdheim, “o desdobramento de Ansätze [pontos de partida] não é nada mais do que a expressão dessa condição humana [um ser finito que existe em um ambiente holístico], a atividade típica de uma criatura que vive em um perpétuo círculo hermenêutico de partes e todos”.

A filologia auerbachiana se compreende, assim, como hermenêutica concentrada no particular e capaz de, ao intensificar a compreensão do particular, ir extraindo dele o horizonte de totalidade que lhe é ínsito. É exercício de compreensão de texto que julga o particular o melhor ângulo para ver a totalidade, a qual, por ser estruturante de todos os particulares, está nele, se verifica nele e se dessume dele.

O método em ato em Figura

A descrição retrospectiva do método de trabalho já na década de 1950 corresponde bastante bem ao percurso seguido em Figura. É exatamente de acordo com o exemplo privilegiado de um Ansatz propício à investigação que se inicia o ensaio quadripartite, cuja primeira seção se dedica a investigar o sentido da palavra latina figura “de Terêncio a Quintiliano”, isto é, desde sua primeira atestação no comediógrafo arcaico Públio Terêncio Afro (†159 a.C.) até seu estabelecimento como termo técnico da retórica na pena do rétor imperial Marco Fábio Quintiliano (c. 35 – c. 96 d.C.).

Essa explicação coloca Auerbach na senda de uma tensão entre um sentido mais concreto e sensorial de figura, como “forma plástica”, afim aos cognatos fingere (moldar), figulus (ceramista) e fictor (escultor), e um sentido mais abstrato, mais esquemático, como se produzirá na retórica; mesmo nesse âmbito, porém, “figura é, por vezes, não apenas mais plástico, mas também mais dinâmico que nosso estrangeirismo ‘esquema’ (Schema) [do grego σχῆμα, skhēma, termo da retórica grega traduzido por figura nos escritos retóricos latinos]” (F, 126). A tensão parece a Auerbach mais produtiva e criativamente ativada no poeta latino Tito Lucrécio Caro (c. 99/94 a.C.-c.55/53 a.C.); historicamente, contudo, é a apropriação da palavra para referir as figurae sententiarum (“figuras de pensamento”) no amplo tratamento a elas dispensado pelo rétor romano Quintiliano, como parte fundamental do estudo do ornato do discurso, que foi prenhe de consequências. Afinal, entre as diversas manipulações da elocução que Quintiliano discute como potenciais recursos para o orador proficiente, Auerbach entende haver um recurso que se sobrepõe aos demais:

Sobretudo, porém, aquela figura que então se considerava a mais importante, à qual parecia se aplicar especialmente o nome figura: a alusão dissimulada em suas distintas formas. Havia-se erigido uma técnica refinada para expressar ou insinuar algo sem o declarar, e muito naturalmente se tratava de algo que, por razões políticas ou táticas ou simplesmente para atingir um efeito maior, deveria permanecer latente ou, ao menos, não declarado (F, 137).

É o próprio Quintiliano quem, ao encetar uma ampla abordagem do tema, declara ser essa figura aquela que em sua época se usava sobremaneira (qua nunc utimur plurimum), a mais empregada (frequentissimum), e aquela que “quase exclusivamente é chamada schema pelos nossos e de onde tiram seu nome as controuersiae figuratae [as disputas oratórias centradas na insinuação]” (Quint.9.2.65). Trata-se, nos dizeres do próprio Quintiliano, de dizer não o contrário do que se pretende fazer entender, mas de referir indicialmente o que deve ser compreendido (per quamdam suspicionem), isto é, dizer “outra coisa, que se implica, a ser como que descoberta pelo ouvinte” (sed aliud latens, et auditori quasi inueniendum, Quint.9.2.65).

A exploração de diversos autores latinos e os múltiplos detalhes colhidos por Auerbach em cada texto pareceriam uma errância diletante a quem não percebesse o que está a se processar: a delimitação de uma estrutura discursiva de insinuação, isto é, de um molde enunciativo para sugerir algo além do que se diz explicitamente — estrutura tão importante que merece ela, por si mesma, o nome de figura —, e que, uma vez moldado, com seus dois polos (o que se diz, o que se insinua), é suscetível de continuar atritando produtivamente a oposição entre concretude e abstração ínsitas à noção de figura.

É o processamento histórico dessa figura retórica por excelência, quando adentram a cena teólogos cristãos de ampla formação nas escolas imperiais de rétores, que Auerbach explora na segunda parte do ensaio, centrada na noção de figura cultivada pelos “Pais da Igreja”. Essa seção trata de descrever a promoção, no interior desse esquema interpretativo, de um “realismo enérgico” (F, 142), expresso por primeiro com clareza por Quinto Septímio Florente Tertuliano (após 150 – após 220), um dos mais antigos apologetas cristãos.

Para Tertuliano, a leitura do Antigo Testamento não é meramente alegórica, como para seu contemporâneo Orígenes de Alexandria (185-254) ou como o fora, muito mais evidentemente, para o filósofo judeu Fílon de Alexandria (c. 15/10 a.C. – após 45 d.C.). O modo de leitura de Tertuliano, que estaria destinado a um sucesso histórico plenamente rematado no século IV d.C. (F, 145), é mais de uma vez descrito por Auerbach, como, por exemplo, ao comentar trecho em que Tertuliano afirma que Cristo foi figurado em Moisés (in se figurato), estabelecendo uma relação de realização (Erfüllung) e figura (Figur), respectivamente:

A realização é frequentemente, como acima em um exemplo, denominada ueritas [verdade], e a figura, correspondentemente, umbra [sombra] ou imago [imagem, retrato]; no entanto, ambas, sombra e verdade, são abstratas apenas em relação ao sentido primeiramente encoberto e depois revelado, porém concretas em relação às coisas, ou formas, que surgem como veículos do sentido. Moisés não é menos interno à história e real porque ele é umbra ou figura de Cristo, e Cristo, a realização, não é uma ideia abstrata, mas interno à história e concreto. As figuras, dotadas de realidade histórica, devem ser interpretadas intelectualmente (spiritaliter interpretari), mas a interpretação (Deutung) remete a uma realização carnal, logo histórica (carnaliter adimpleri, De ressurr.20) — pois então a verdade se tornou história ou carne (F, 145).

Com o cristianismo, a figura por excelência da retórica continua sendo uma estrutura para sugerir algo dizendo outra coisa que a ela remete, mas a carga de concretude plástica que o termo figura detinha em suas primeiras ocorrências é reativada para gerar o que é o esquema (σχῆμα) por excelência da apreensão cristã da história: cada ocorrência histórica é real em si mesma, ao mesmo tempo em que é imagem de outras ocorrências históricas, elas igualmente reais; para o homem, posto no tempo, a primeira é prefiguração da segunda, “profecia real”, como insiste Auerbach, instrumento de decifração da realidade; para Deus, contudo, que está fora do tempo, sombra e verdade são aspectos concomitantes dos dois pontos da relação.

Auerbach avança, então, na terceira seção do texto, para detalhar a “interpretação figural” (Figuraldeutung) delineada na seção anterior, sob dois aspectos: o filólogo particulariza sua gênese e analisa esse esquema interpretativo, distinguindo seus elementos constitutivos e diferenciando-o de outras modalidades de interpretação aparentadas, pertinentes ao contexto cristão.

Note-se, contudo, que, dentre as diversas palavras que, em alemão, poderiam ser traduzidas por interpretação (Auslegung, Auffassung, Exegese, Interpretation, etc.), Auerbach escolhe justamente Deutung, que é propriamente a decifração por meio de um sinal, como, e.g., na interpretação de um sonho. Assim, para ficar em um caso expressivo, Nabucodonosor ordena aos sábios, na Bíblia de Lutero: Werdet ihr mir aber den Traum anzeigen und deuten, so sollt ihr Geschenke, Gaben und große Ehre von mir haben. Darum so sagt mir den Traum und seine Deutung, “vós, contudo, me exporeis o sonho e o decifrareis (deuten), e assim tereis presentes, dádivas e grande honra de minha parte; portanto, exponde-me o sonho e sua decifração (Deutung)” (Dn.2.6). Evidentemente, como a figura é esquema interpretativo que decifra o insinuado, como um sentido que não está plenamente declarado, Figuraldeutung parece ser de fato a expressão que melhor colhe esse instrumento hermenêutico.

Para esclarecer a gênese da figura cristã, Auerbach remete a uma série de passagens do Novo Testamento, fundantes dessa leitura, especificamente às epístolas paulinas que, valendo-se dos termos gregos τύπος (týpos) e τυπικός (typikós), desenham o contexto concreto de surgimento da interpretação figural, vale dizer, a oposição à normatividade do Antigo Testamento em ambiente judaico, em prol da superioridade da mensagem cristã:

[Em Paulo,] aquelas ideias judaicas se atavam a uma forma de pensar (Gesinnung) que estava na mais aguda oposição aos judeus cristãos e que, a partir dela, primeiro adquiriram seu sentido característico. […] Toda a interpretação figural supõe o tema fundamental da oposição entre lei e graça, entre justificação pelas obras e pela fé: a velha lei é revogada e dissolvida, ela é sombra e τύπος [prefiguração]; a lealdade a essa lei se tornou inútil e mesmo perniciosa, desde que Cristo, por seu sacrifício, trouxe a realização e a salvação (F, 161).

Conforme o cristianismo se alastrou, convertendo populações, sobretudo celtas e germânicas, sem nenhum vínculo com suas origens judaicas, foi, segundo Auerbach, a interpretação figural que assegurou a compreensibilidade do Antigo Testamento e sua contínua pertinência por mais de um milênio — nesse contexto, o Antigo Testamento pôde ser tratado como “um enfileiramento de figuras de Cristo e da Salvação” (F, 163).

Esclarecida a origem, trata-se de promover “uma determinação mais precisa da interpretação figural e uma delimitação dela em face de outras formas interpretativas afins” (F, 164). Auerbach, então, fornece, na abertura dessa segunda parte da terceira seção do ensaio e, então, no fim dela, duas definições que almejam a máxima precisão e que merecem ser traduzidas aqui, em cotejo, sobretudo para destacar algumas das tensões fundamentais que perpassam o texto — notando sempre que a contínua redefinição da noção central de figura não deve ser vista como mera hesitação ou flutuação, mas antes como reprocessamento sempre mais exigente, em que Auerbach exibe um verdadeiro trabalho do conceito:

A interpretação figural estabelece uma conexão (Zusammenhang) entre dois acontecimentos ou entre duas pessoas, em que um deles significa (bedeutet) não apenas a si mesmo, mas também ao outro; o outro, por sua vez, compreende (einschlieβt) ou realiza (erfüllt) o primeiro. Os dois polos da figura são separados temporalmente, mas, como ocorrências ou formas reais (als wirkliche Vorgänge oder Gestalten), estão ambos no tempo; como já se enfatizou muitas vezes, ambos estão contidos no fluxo contínuo que constitui a vida histórica, e apenas a compreensão (Verständnis), o intellectus spiritualis [compreensão espiritual], é um ato intelectivo que, em cada um dos dois polos, precisa ser apreendido com o material dado ou esperado do acontecer passado, presente ou futuro, e não com conceitos ou abstrações; estes são de todo secundários, pois promessa e realização são eventos reais e internos à história que em parte ocorrerão na Encarnação do Verbo e em parte ocorrerão em sua Parúsia (F, 164).

A profecia figural contém a interpretação (Deutung) de uma ocorrência intramundana por meio de outra; a primeira significa a segunda, a segunda realiza a primeira. Contudo, ambos permanecem eventos ocorridos internamente à história; ambos contêm, nessa perspectiva, algo provisório e incompleto; eles remetem um ao outro e ambos remetem a algo futuro que ainda está por vir e que será o real mesmo, o acontecer completo, efetivo e definitivo. Isso vale não apenas para a prefiguração do Antigo Testamento, que sinaliza a Encarnação e a proclamação do Evangelho, pois essas tampouco são a realização definitiva, sendo também, por sua vez, promessa do Fim dos Tempos e do verdadeiro Reino de Deus. Assim, o acontecer permanece sempre um símile, em toda sua potência sensorial, velado e carente de decifração, ainda que o direcionamento geral da interpretação seja dado pela fé (F, 169).

Passa-se, nitidamente, assim, da definição da segunda seção, em que a polaridade entre Antigo e Novo Testamento seria absoluta não fosse um exemplo de Agostinho arrolado à margem de comentário (F, 149), para duas definições da figura cristã em que ganha progressivamente mais destaque a abertura da “tipologia escritural” para a história futura, não só pela inserção de um terceiro termo na equação (a Parúsia e, como sua consequência, o próprio encerramento da história, concluindo-se o desenrolar dos tempos, logo a possibilidade mesma da correlação entre eventos), realização última das profecias, mas sobretudo pela consideração de que a vida humana presente, inserta entre a Encarnação e a Parúsia, é o tempo da decifração, da decodificação dos sinais seja da grande história, seja da pequena história cotidiana, como realizações do que se profetizou com os acontecimentos passados e como profecias do que está por vir no grande e derradeiro horizonte futuro. Insufla-se, assim, um sopro hermenêutico na vida cotidiana que não pode mais ser tomado por mero instrumento teológico, mas se deve assumir na qualidade de estrutura fundamental de apreensão da realidade do mundo, com todas as consequências que isso passa a ter para as condições mesmas da representação literária da realidade.

Esse esquema de interpretação vem diferenciado de dois outros esquemas: a interpretação alegórica em sentido estrito e o que Auerbach denomina “formas simbólicas ou míticas”. O primeiro — herdeiro distante do espiritualismo de um Fílon de Alexandria — consiste em método “com o qual a interpretação figural permaneceu em contínua concorrência na explicação da Bíblia” (F, 165), um esquema de correlação em que os eventos singulares das Escrituras vinham “despojados de sua realidade sensorial” (F, 166), privados, portanto, de realidade própria que não o ser signo de outra coisa. O segundo esquema — de que Auerbach prefere falar com cuidado por se ter ainda pouco conhecimento sobre as formas simbólicas ou míticas —, apesar de não vir definido diretamente e, assim, ser um tanto refratário a uma apreensão clara, tem algo que ver com o “pensamento mágico”, pois o símbolo seria “interpretação imediata da vida e, originariamente, sobretudo interpretação da natureza” (F, 168).

Como Auerbach mostra, enfim, na quarta e última parte de Figura, a “interpretação figural” teve profundo impacto ao longo de toda a Idade Média e mesmo para além dela, determinando amplamente diferentes formas de representação, como as imagens visuais, os espetáculos dramáticos e, evidentemente, a literatura. Afinal, ela “oferece o fundamento geral da compreensão histórica na Idade Média e ela desempenha um papel também na apreensão da simples realidade cotidiana (die Erfassung der einfachen Alltagswirklichkeit; F, 174). Auerbach se escusa por não poder tratar com mais detalhes as imagens visuais (que ele denomina “obras de arte”, Kunstwerk; F, 174) e se concentra especificamente na Comédia de Dante, evocando três exemplos de figura: Catão de Útica, Vergílio e Beatriz.

Nesse exercício, o autor revisita seus trabalhos anteriores sobre Dante e reconhece que lhes faltava, para a compreensão da obra, “o fundamento histórico preciso” (F, 183) que agora teria descoberto, isto é, “a interpretação figural da realidade” (die Figuraldeutung der Wirklichkeit; F, 183). Em suas palavras:

Cada acontecimento terreno não é concebido apenas como uma realidade definitiva, bastante em si mesma, mas como elo em uma correia de desenvolvimento, em que, de um acontecimento ou do efeito conjunto de muitos acontecimentos, despontam acontecimentos sempre novos; ele é visto, antes de tudo, na conexão vertical imediata com uma ordem divina, em que ele está contido, a qual, em um dia futuro, será, ela própria, a realidade divina imediatamente realizada (F, 184).

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Que a descoberta é percebida como definitiva por Auerbach, compreende-se não apenas em seus grandes tratamentos posteriores da Comédia, dedicadas a São Francisco (nos Neue Dantestudien, de 1944) e a Farinata (em Mimesis, de 1946), mas também na miúda anotação de diversos passos (notadamente em “Figurative texts illustrating certain passages of Dante’s Commedia” [Textos figurais que ilustram certos passos da Comédia de Dante], de 1946). Mais que isso, porém, muito da produção que se seguiu propiciou a Auerbach a ocasião de retomar sua caracterização da interpretação figural, e, ainda que brevemente, parece-nos relevante verificar como se deu essa retomada, como via para apreender a reflexão de Auerbach não como desvelamento hipostasiado, mas como construto aberto a contínuos aperfeiçoamentos, inclusive para além do ponto atingido pelo filólogo. É a isso que nos dedicamos agora, na última seção do texto.

A figura além de Figura

Antes de avançar para depois de Figura, cabe capturar, tanto quanto ainda o podemos, o movimento que desembocou naquele ensaio. Para além de algum traço detectável em Dante als Dichter der irdischen Welt (“Dante como poeta do mundo terreno”, de 1929), a que o próprio Auerbach remete ao traçar breve arqueologia de seu trabalho na quarta seção de Figura (F, 183), parece ser no curto ensaio sobre Romantik und Realismus (“Romantismo e Realismo”, 1933) que Auerbach põe por primeiro suas mãos na situação histórica que enfim descortinará em Figura.

Dada a transformação capital, que, para Auerbach, consubstancia-se na literatura do século XIX, quando, “por primeiro se deu a tentativa de representar as pessoas em toda a amplitude de sua realidade cotidiana” (RR, 426) e quando, mais precisamente, a um só tempo, “tratou-se de mostrar as pessoas vivendo no interior de sua cotidianidade material e, ao mesmo tempo, em toda a extensão e profundidade de sua humanidade interna” (RR, 428), verifica-se, contudo, um ponto de dissonância. Primeiramente, Auerbach matiza, em um aparte, sem desdobramento imediato algum, a afirmação que acabara de fazer sobre a primazia do século XIX: “isso [a existência de tais representações, dotadas desses predicados] não ocorreu antes — ou, pelo menos, não mais há muito tempo” (RR, 428, destacamos). É no final do artigo, mais precisamente no final do último parágrafo, sem preparação nem transição, que o aparte se esclarece:

Muito antes do Romantismo, houvera já uma vez um realismo trágico, que apreendia nosso mundo desordenado como realidade verdadeira, tal que se ordenava a si própria. Eu me refiro ao realismo trágico da Idade Média e à sua fonte, a história de Cristo. Ela foi, contrapondo-se à Antiguidade, a mais radical demolição do princípio da separação de estilos e, em absoluto, a mais radical efetivação do realismo trágico; ela surgiu do sacrifício de Deus na realidade terrena. Nossa realidade mundana alterou-se a tal ponto, que uma simples retomada dele seria despropositada. Porém, como seriam sequer representáveis uma ordenação e uma verdade do real senão por meio da percepção de Deus nela? (RR, 438).

Com isso, fica evidente que o móvel que permite ao Ansatz de Figura frutificar, sua força própria de irradiação, consiste na centralidade da noção de figura para o problema da representação da realidade na literatura ocidental. A possibilidade de contemplar a concretude do acontecer, de todo acontecer, como possível fundamento para a decifração das realidades últimas da vida, isto é, em contexto cristão, dos eventos decisivos da história humana, teria sido a chave para que o cristianismo abrisse os sentidos do homem para apreender e representar o mundo tal qual ele se dá à percepção, em sua rica e multifária efetividade.

Sendo o potencial irradiador do vocábulo figura tão vasto para o filólogo — em potencial elucidativo, essa palavra contém, tal como usada na Europa medieval, todo um reordenamento da apreensão da realidade, ela compreende um decisivo abrir dos olhos para o mundo sensível — é natural que, ao longo dos diversos trabalhos em que voltou a tratar da interpretação figural (ou “tipológica”, como passa a denominá-la amiúde nos escritos posteriores, valendo-se do equivalente grego na matriz neotestamentária paulina), Auerbach tenha, mais ou menos marginalmente, apontado para outros domínios de atuação da “apreensão figural da realidade na Idade Média”, como poderíamos conceber o problema.

Assim, ao tratar de São Francisco de Assis na Comédia de Dante (1181/82-1226) — texto em que remete explicitamente a Figura (GA, 53) — Auerbach afirma, assertivamente, que “a chamada interpretação tipológica […] criou um novo sistema de interpretação da história e, sobretudo, da realidade que domina a Idade Média cristã” (GA, 53). Nesse contexto, Auerbach caracteriza a posição de Francisco — que, como todo santo, empreende uma imitatio Christi, uma “imitação de Cristo” — como a de uma “imitação existencial” (existentielle Nachfolge; GA, 53), que é “como uma figura invertida” (umgekehrte Figur; GA, 53).

Com isso, Auerbach promove ao mesmo patamar da figura uma noção de imitatio: “figura e imitação formam conjuntamente uma concretização (eine Versinnbildlichung) da concepção teleológica e fechada da história em cujo centro está a aparição de Cristo” (GA, 53); ou ainda “as representações da repetição antecipadora e imitativa foram tão usuais ao leitor medieval como, por exemplo, o conceito de desenvolvimento histórico o é para um leitor moderno” (GA, 54).

Auerbach não desenvolve o problema mais amplamente, mas é claro que, se não é sempre o evento futuro que esclarece o que lhe antecede, imperfeito como a Lei Mosaica diante da Nova Aliança, se não é sempre aquele que realiza este, podendo-se antes se passar o contrário — isto é, se um evento esclarece potencialmente o outro, sem preeminência ditada pela própria estrutura interpretativa —, então o percurso hermenêutico se enriquece sobremaneira, e seria necessário recorrer a conceito mais amplo, a dar conta da multifária coordenação dos eventos no tempo. Seria talvez por isso que Auerbach teria passado a preferir falar em typologische Deutung (“interpretação tipológica”), em lugar do Figuraldeutung (“interpretação figural”) onipresente em Figura?

É, de certa forma, nesse mesmo sentido que Auerbach destaca, em texto de 1953 sobre Typologische Motive in der mittelalterlichen Literatur (“Motivos tipológicos na literatura medieval”), que “a tipologia, como bem se sabe, desempenha um papel importante na fundamentação teórica de pretensões políticas — pelo menos desde a época carolíngia, quando a posição que Carlos Magno perante o papa é interpretada como realização do reino de Davi (nouus Dauid)” (TP, 265); ora, aqui também temos uma “imitação existencial”, em que Carlos Magno é nouus Dauid, como Cristo fora nouus Dauid, de tal sorte que o rei franco é, também e necessariamente, nouus Christus; parece que a dissolução da sucessão temporal como critério interpretativo necessário na interpretação figural, ou tipológica, significa, de algum modo, a passagem de um discurso estritamente teológico para uma mais lata apreensão do mundo.

Neste ponto, talvez caiba um reparo mais geral ao tratamento auerbachiano dos textos com que lida. Por mais que, em suas declarações de método, insista na necessidade de que o ponto de partida do filólogo seja a expressão verbal concreta compreendida no hic et nunc de sua enunciação, o filólogo não caracteriza claramente os textos que está tratando como atos discursivos concretos em uma sociedade complexa e em constante transformação.

Dito de outro modo, se a interpretação figural, ou tipológica, é estrutura geral de apreensão da realidade na idade Média, quais são as formas distintas que ela assume segundo as coordenadas temporais, espaciais e propriamente comunicativas das interações sociais havidas naquele contexto? Da teologia tardo-antiga à hagiografia do século XII, passando pela renouatio carolíngia, como um instrumento muito geral de compreensão do mundo se especificou? A validade dos percursos hermenêuticos na ampla estrutura da interpretação figural não esteve em questão como parte da gestão da vida social? São questões que, se Auerbach não resolve cabalmente, certamente as vê surgir em seu horizonte, no processo de desdobramento que vai se irradiando conforme a investigação se estende a novos textos.

Pode ser que sinalize uma sutil reconsideração nesse sentido a afirmação, não desenvolvida e em nota de rodapé, nos Epilegomena zu Mimesis (“Reflexões retrospectivas a respeito de Mimesis”, de 1954), de que, “em minha apresentação dos primórdios da teologia cristã, o papel de Paulo talvez tenha sido enfatizado de modo demasiado excessivo” (EM, 474, n. 14). Ora, não é possível saber em que sentido exatamente Auerbach teria desenvolvido esse ponto. Seria abrindo-se a escritos bíblicos distintos dos paulinos, a outros textos, testemunhos de outra natureza, como os visuais? Ou, quem sabe, Auerbach estaria aberto a considerar, com Heidegger, Paulo menos como escritor dogmático e mais como agente de uma “exposição original a partir do sentido da própria vida religiosa (aus dem Sinn des religiösen Lebens selbst)”, como veículo de ideias “formadas na experiência religiosa primária (in der religiösen Grunderfahrung)”? E, nesse sentido, a interpretação figural adviria mais de uma sensibilidade forjada na experiência religiosa coletiva do que na cabeça de teólogos e polemistas? Sem dúvida, esse redirecionamento não seria inimaginável à luz do roteiro hermenêutico desenhado em Mimesis (conforme exposto em nosso já citado “Esquema de Auerbach”, neste Estado da Arte).

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A prosa de Notker, Quid tu uirgo, era texto, ou melhor, canto para a liturgia cristã — origem, mais que isso, de práticas de representação dramática bastante populares na Idade Média. Buscamos esclarecer, antes de examinar o texto de Auerbach, que um suposto fundamental daquela peça era sua capacidade de evocar distintos textos escriturais para promover um conjunto de correlações que promovessem correspondências entre a situação superficialmente descrita e a situação sugerida pelo texto, como caminho de resolução de suas aporias hermenêuticas caso a leitura fosse determinada a tudo resolver apenas com a situação de Raquel.

Depois de explorar Figura e seus desdobramentos, seria possível voltar ao texto e colocar em questão precisamente aquilo que parece, muito frequentemente, ficar de fora do escopo daquele monumento filológico: a situação específica de enunciação. Afinal, é na festa para um mártir que a comunidade cristã entoa aquele cântico, de modo a introduzir dois elementos no sistema de correspondências que precisariam reconquistar sua primazia: o mártir comemorado, necessariamente imitator Christi, imitador de Cristo, e os monges que o comemoram, os quais bem se encaixam nas figuras do irmão que morreu e dos irmãos desafortunados que (ainda) não possuem o reino celeste. Cantando as palavras em meio a incensos e na expectativa de logo comungar a santa hóstia, o que se estrutura assim é uma comunidade interpretativa aberta à multissensorialidade como complexo de mídias para o processamento de sua apreensão do mundo.

É apenas se tivermos na devida conta esses contextos que poderemos entender como de fato a interpretação figural, ou tipológica, abria olhos, ouvidos (etc.) dos cristãos medievais para apreender a realidade concreta em torno de si mesmos.

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Textos citados e indicações de leitura

Gostaria de agradecer a João Carlos Mettlach a cuidadosa leitura e as valiosas sugestões para a redação deste artigo.

O texto de Figura (abreviado F no corpo do texto) foi citado a partir de: F. BALKE. H. ENGELMEIER. Mimesis und Figura: mit einer Neuausgabe des „Figura“-Aufsatzes von Erich Auerbach. 2.ed. Paderborn: Wilhelm Fink, 2018, p. 121-188. Esse texto foi objeto de uma nova e recentíssima tradução para a língua portuguesa, acompanhada de diversos outros textos de Auerbach que tocam no tema da interpretação figural, muitos dos quais também foram mobilizados nesta contribuição: E. AUERBACH. Figura. Org. Leopoldo Waizbort. São Paulo: Duas Cidades/34, 2024. Citamos diretamente da tradução desse importante volume o ensaio Typologische Motive in der mittelalterlichen Literatur (TM).

Os textos Franz von Assisi in der Komödie e Philologie der Weltliteratur foram citados a partir de: E. AUERBACH. Gesammelte Aufsätze zur romanischen Philologie. 2.ed. Ed. Matthias Bormuth & Martin Vialon. Tübingen: Narr Francke Attempto, 2021 (sempre com a sigla GA). O primeiro se encontra traduzido no volume citado no parágrafo anterior, e o segundo, em E. AUERBACH. Ensaios de Literatura Ocidental. Org. Davi Arrigucci Jr. & Samuel Titan Jr. São Paulo: Duas Cidades/34, 2012, p. 357-373.

Foi citado com a sigla LSP: E. AUERBACH. Literatursprache und Publikum in der lateinischen Spätantike und im Mittelater. Bern: Francke Verlag, 1958.

Enfim, Epilegomena zu Mimesis (EM) e Romantik und Realismus (RR) foram citados a partir de: K. BARCK; M. TREML (ed.). Erich Auerbach: Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlin: Kulturverlag Kadmos, 2007, p. 466-479 e p. 426-438, respectivamente. O primeiro desses textos se encontra vertido para o português em E. AUERBACH. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Ed. revista e aumentada. São Paulo: Perspectiva, 2021, p. 607-620.

Sobre Quid tu uirgo, cf.: R. L. CROCKER. The Early Medieval Sequence. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1977. Sobre o ordo Rachelis, a principal referência é: K. YOUNG. Ordo Rachelis. Madison; University of Wisconsin, 1919.

Também foram citados:

M. HEIDEGGER. Phänomenologie des religiösen Lebens. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995.

W. W. HOLDHEIM. The Hermeneutic Significance of Auerbach’s Ansatz. New literary History, n. 16 (3), 1985, p. 627-631.

G. TINÈ. Erich Auerbach: una teoria della letteratura. Roma: Carocci, 2013.

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Eduardo Henrik Aubert é doutor em História pela EHESS e em Direito e Letras pela USP. É professor de Letras Clássicas na USP.

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