por Caio Cesar Esteves de Souza
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Quando a pandemia estourou, eu me vi em uma posição privilegiada por poder ficar em casa durante o dia inteiro todos os dias da semana. Após alguns meses, esse privilégio foi se tornando insuportável e, assim como milhões de pessoas ao redor do mundo, comecei a buscar outros hobbies que me ajudassem a não enlouquecer. Passei a cozinhar mais, aprender francês e latim, buscar bandas novas para ouvir nas caminhadas em círculo no meu quintal. Foi então que, há poucos meses, em meio a um profundo tédio, assisti a um vídeo viral no YouTube e decidi colecionar mini bandeiras de países estrangeiros. Como comprar bandeiras não teria o menor sentido, decidi colecionar bandeiras que fossem exclusivamente fruto de doação de amigos, figuras políticas e embaixadas. Enviei email a várias embaixadas em Washington DC perguntando se aceitariam me enviar suas bandeiras, e a resposta foi de modo geral muito positiva. Fiquei muito surpreso com a forma como algumas embaixadas se dedicaram a me apresentar a cultura e o país que representam. Foi a primeira vez em que tive contato com esse outro lado da atividade diplomática, e fiquei realmente fascinado com isso. Dentre todas essas embaixadas que me responderam, a do Principado de Liechtenstein se destacou. Após trocar vários emails com Tamara Brunhart, assistente do embaixador em Washington, achei impressionante com o interesse da embaixada em me apresentar cada vez mais materiais sobre a cultura e a história do país. Decidi retribuir da forma como posso: escrevendo este ensaio apresentando ao público brasileiro a história e a literatura de Liechtenstein. Agradeço muito à embaixada, em especial à senhora Tamara Brunhart, e também a Mathias Ospelt, um dos maiores nomes da literatura contemporânea de Liechtenstein, que por meio da embaixada cedeu um de seus contos para que eu o traduzisse pela primeira vez ao português e publicasse aqui no Estado da Arte, apresentando sua obra ao público brasileiro.
O leitor que decidir olhar o mapa da Europa com mais atenção notará que na fronteira entre a Suíça e a Áustria, há um pedaço de terra que parece não pertencer a nenhum dos dois países. Se olhar mais de perto, descobrirá que esse território é um país soberano completamente cercado por seus dois vizinhos e sem acesso ao mar. Trata-se do Principado de Liechtenstein, um país com área de pouco mais de 160km² e população de um pouco menos de 40.000 habitantes — basicamente, com a mesma área da cidade de Santo André e população de Presidente Venceslau, ambas do estado de São Paulo. O país tem o segundo maior PIB per capita do mundo, atrás apenas de Mônaco, outro microestado europeu, e é hoje um grande centro financeiro da Europa. Devido ao sistema tributário favorável, o país se tornou a sede financeira de um número enorme de empresas e bancos europeus, o que garante uma alta qualidade de vida à sua população, que tem o 19º maior IDH do mundo ao lado do Japão — nesse ranking, o Brasil ocupa a 84ª posição.
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O sistema político de Liechtenstein é uma monarquia hereditária constitucional, liderada pelo Príncipe-Regente Hans-Adams II (1945-), mas desde 2004 governada por seu filho, o Príncipe-Herdeiro Alois Philipp (1968-). A história de como o país se tornou um principado autônomo e soberano é bastante interessante. A área que hoje corresponde a Liechtenstein foi inicialmente ocupada por povos celtas e récios (a divisão entre os dois povos na região até hoje não parece muito clara para as fontes que consultei; algumas tratam ambos como sinônimos e outras propõem que os celtas tenham entrado em contato com os récios que já habitavam a região e se integrado socialmente). Por volta do ano 15 AC, o Império Romano, sob o comando de Tibério e seu irmão mais novo, Druso, ocupou a região e criou a província de Récia. O domínio romano sobre o território durou até o século V, quando os Alamanos invadiram o território a partir do sul do que hoje é a Alemanha, e ocuparam a região por muitos séculos. O território de Liechtenstein pertenceu também ao Sacro Império Romano, e em 1342 viu ser criado o Condado de Vaduz (Vaduz é ainda hoje a capital do país, em cujo castelo a família principesca vive, cercada por seus quase 9.000 habitantes). Meio século mais tarde, o imperador Wenzel de Luxemburgo, pouco antes de ser deposto, decretou que o Condado de Vaduz deveria se subordinar exclusivamente ao Império, e não a qualquer outra liderança regional vizinha, garantindo-lhe alguma autonomia política em relação aos outros grandes donos de terra. As regiões do país pertenciam a diferentes famílias da aristocracia local, até que na primeira metade do século XV foram adquiridas pelos Barões de Brandis. Desde então esse território passou às mãos de diferentes famílias, mas se mantive unificado com a exceção de um pequeno hiato temporal (1699-1712).
Apesar de hoje Liechtenstein ser um país com uma economia muito próspera e com uma das famílias reais mais ricas do mundo, essa nem sempre foi a realidade da região. No século XVII, o país enfrentou os efeitos uma série de guerras que devastaram as suas terras e aumentaram ainda mais a pobreza de uma população que ainda sofria com a fome e com a peste. Para piorar a situação, o território era comandado pelo Conde Ferdinand Karl von Hohenems, que decidiu se valer de investigações contra bruxaria para prender e assassinar pequenos donos de terra, apreendendo os seus bens para quitar as suas próprias dívidas. Cerca de 10% da população desse território foi morta sob acusação de bruxaria (um dos casos mais graves em territórios de língua alemã), o que forçou o Imperador Leopoldo, do Sacro Império Romano-Germânico, a lançar uma investigação e depor o conde Ferdinand Karl imediatamente. Com isso, os territórios ficaram à venda, mas como os aristocratas locais estavam arruinados financeiramente, o imperador decidiu recorrer à nobreza de Viena para encontrar uma família que tivesse dinheiro suficiente para garantir a prosperidade da região e capacidade de governança para evitar outros escândalos dessa natureza. Ele encontrou essa liderança na figura do Príncipe Johann Adam Andreas von Liechtenstein, conhecido como “Hans-Adams I, O Rico”, segundo algumas fontes. Em 1699, o príncipe comprou o senhorio de Schellenberg e em 1712 adquiriu o condado de Vaduz. Em 1719, o imperador Carlos VI permitiu que os dois territórios fossem unificados sob o nome da família que os possuía, e foi assim que Liechtenstein passou a existir enquanto unidade política, tornando-se um principado do Sacro Império Romano-Germânico. A família de Liechtenstein governa o território ininterruptamente desde essa época. O atual Príncipe-Regente, Hans-Adams II (13º de sua dinastia), foi o primeiro príncipe dessa família a nascer e se criar em Liechtenstein; antes dele, toda a família governava o país a distância, vivendo em Viena, na Áustria.
Desde então a dificuldade financeira de Liechtenstein deixou de ser um problema, mas sendo um território tão pequeno em meio a uma região tão central para movimentações políticas na Europa, garantir a sua sobrevivência e soberania sempre exigiu uma forte atividade diplomática por parte de seus príncipes. Quando Napoleão invadiu a Áustria, por exemplo, vários príncipes foram obrigados a formar a Confederação do Reno e a se distanciar do Império Germânico. Os príncipes de Liechtenstein se mantiveram fiéis aos seus aliados austríacos, recusando-se a se unir à Confederação, mas se valeram dessa pressão política para se tornarem um estado soberano, já não mais subordinado ao Império Austríaco, apesar de manter relações próximas com o país. Essa soberania se mantém firme até os dias de hoje, sobrevivendo a duas guerras mundiais e a diversas alterações no mapa geopolítico europeu. Liechtenstein nunca chegou a se defender militarmente contra qualquer outro país; a última guerra de que participaram data de 1866, quando a Prússia e a Áustria se enfrentavam. Liechtenstein se aliou à Áustria, mas se recusou a atacar seus vizinhos alemães; por isso, enviaram todo o seu exército (com 80 soldados) à Itália, para servir em um posto defensivo em que nada efetivamente ocorreu. Em 1868, o país aboliu de vez as suas forças armadas e hoje é um estado que se declara eternamente neutro em conflitos bélicos. Quando o Império Austro-Húngaro deixou de existir, após o fim da Primeira Guerra Mundial, Liechtenstein decidiu se aliar a seu outro vizinho, a Suíça. Desde então, passaram a integrar a zona econômica Suíça, usando o franco suíço como sua moeda oficial e estabelecendo uma série de parcerias logísticas e econômicas com seu vizinho ocidental. O país abandonou o modelo de economia agrária e é hoje um polo respeitado de indústrias modernas e de prestação de serviços financeiros, com uma população composta de locais e de imigrantes (cerca de 33% dos habitantes de Liechtenstein vieram de países estrangeiros).
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Literatura
Pensar o que pode ser considerado parte da tradição literária de Liechtenstein antes de fins do século XVIII é bastante problemático e requer uma reflexão especializada que eu infelizmente não posso oferecer. O nome de Heinrich von Frauenberg (1257-1314), associado geralmente ao Códice Manesse, e antigo dono do castelo Gutemberg em Balzers, costuma ser apontado como um “antecessor” dessa tradição literária, mas evidentemente há muitos anacronismos nessa proposta, e o debate sobre isso vai além do que me posso propor a discutir neste texto. A partir de Peter Kaiser (1793-1864), a situação fica um pouco menos complexa. Kaiser foi um historiador e uma figura política relevante na região, autor de Lied am Feuer (1817 — Canção ao fogo), considerada comumente o marco inicial da literatura de Liechtenstein, além da História do Principado de Liechtenstein (1847), que serviu para a construção de uma identidade nacional. Durante um período de turbulência política, em que o povo de Liechtenstein exigia maior participação política e o Príncipe Alois II se opunha a isso, Kaiser foi uma figura fundamental para apaziguar as tensões, mesmo sendo parte do grupo revolucionário e defensor de pautas sobre o direito dos servos e dos homens do povo.
Durante o século XIX, uma figura relevante foi Jakob Josef Jauchs (1802-1859), a quem é atribuída a autoria do texto do hino nacional de Liechtenstein. Jauchs teria sido um padre autor de uma série de hinos populares em Liechtenstein (Liechtensteinischer Volkshymne) que teriam, direta ou indiretamente, resultado no hino que foi performado pela primeira vez em 1895, vários anos após a morte do autor. Outra figura relevante a partir de meados do século XIX foi a de Albert Schädler (1848-1922), médico natural da região de Vaduz, que também compôs poemas e hinos populares. Foi o fundador da Associação Histórica de Liechtenstein (Historische Verein für das Fürstentum Liechtenstein) e a presidiu até o ano de sua morte. Ao lado de Schädler, outro autor de uma série de poemas e hinos populares em Liechtenstein foi o padre Johann Baptist Büchel (1853-1923), que também se dedicou à escrita de narrativas de viagens e ao que hoje poderíamos compreender como relatos de história cultural sobre os castelos da região. Büchel foi cofundador da Associação Histórica de Liechtenstein, e sucedeu Schädler como presidente após a sua morte. Alguns de seus poemas foram musicados por Josef Gabriel Rheinberger.
O título de primeira mulher na cena literária de Liechtenstein certamente pertence a Hermione Rheinberger (1864-1932), autora de um romance histórico bastante prestigiado no país, Gutenberg-Schalun (1897), infelizmente ainda não traduzido ao português (alô, editores!). Rheinberger teve uma vida bastante conturbada e sua carreira foi interrompida muito cedo por motivos de saúde — a autora passou mais de 30 anos internada em hospitais psiquiátricos por algo que, segundo informações difusas que consegui localizar, seria um tipo de encefalite causada pelo vírus influenza. Ainda assim, compôs uma série de poemas populares e o romance que a colocam como figura da maior importância na cena literária de Liechtenstein da segunda metade do século XIX. Para que o leitor tenha uma noção do estilo de escrita de Rheinberger, eu convidei o Rafael Rocca, também autor aqui do Estado da Arte e tradutor do alemão, a fazer uma tradução dos primeiros parágrafos do romance Gutemberg-Schalun, pela primeira vez ao português segundo pude verificar. O Rafael muito gentilmente aceitou meu convite, e aqui vão os quatro primeiros parágrafos do romance para vocês terem algum contato com a autora:
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“Era o ano de 1308, na época do solstício de primavera; o céu se abobadava azul sobre o distrito de Churrätien. Lá embaixo, ao sopé da montanha Luziensteig onde o vale se alargava, havia um altivo burgo sobre uma colina íngreme entre Palazoles e Meilis.
A torre ascendia destemida aos céus e uma bandeira esvoaçava de uma alta sacada enquanto os diferentes edifícios do burgo, com suas ameias, sacadas ogivais e pequenas torres, emprestavam à fortaleza uma aparência bastante imponente. Heras proliferavam junto aos muros e trepavam em talos soltos até as janelas arqueadas. Carvalhos e abetos farfalhavam em torno do burgo muito fortificado e um anel de muros lhe servia de proteção e defesa em cercos.
Naquela época, o principal costume dos cavaleiros era sua atividade com as armas, e amiúde as trombetas da guerra ressoavam, anunciando o feudo, diante dos portões do burgo; até mesmo bispos e abades se cobriam de ferro e aço e saíam à luta para defender seu direito ou a expansão dos bens do claustro.
Na época em que começa nossa história, o Reno troava ainda selvagemente pelas profundezas pantanosas do vale; a seu capricho, ele se partia em filetes, e florestas de abetos estendiam-se em parte lúgubres até sua margem, pois somente os terrenos mais altos eram habitados.”
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Outra figura feminina relevante para a literatura de Liechtenstein da época é Marianne Maidorf, pseudônimo da alemã Maria Matthey (1871-?), que escreveu uma série de contos de fadas e, em 1908, reuniu diversas lendas de Liechtenstein em seu romance mais famoso, A Bruxa de Triesnerbeg (“Die Hexe von Triesnerberg”), sobre os casos de acusações de bruxaria que marcaram a história do país, como já comentei acima. Evidentemente, por se tratar de ficção e não de história, a autora toma uma série de licenças poéticas ao tratar desse período sombrio da história do país na construção de seu enredo.
Durante o século XX, diversos autores de Liechtenstein se destacaram na produção de poemas no dialeto germânico local. São certamente os casos de Ida Ospelt-Amann (1899-1996) e Edwin Nutt (1922-1991). Ida Ospelt-Amann começou a ler os seus poemas dialetais entre populações rurais do país em 1947, e os publicou em livro pela primeira vez em 1965, sob o título S’Loob-Bett. Desde então, acumulou outras publicações que lhe renderam grande notoriedade entre a população de Liechtenstein, que também a conhecia por algumas de suas participações em programas nacionais de rádio. Outros títulos de compilações de seus poemas incluem “S’ ischt Suusersunntig” e “Di aaltaräder”. Já na década de 1990, Ida gravou e publicou uma fita cassete declamando seus poemas dialetais. Foi bastante reconhecida em seu tempo, chegando mesmo a receber a medalha de Mérito da Cruz Dourada do Príncipe Franz Joseph II. Edwin Nutt, por sua vez, começou a carreira literária publicando um livro de poemas em alemão padrão em 1955. Mas a partir da década de 1980, se dedicou exclusivamente à produção poética dialetal; iniciou essa fase com a publicação de “Am Brunnen”, e publicou praticamente um livro por ano até a sua morte.
Nem só de produção dialetal é feita a literatura do século XX em Liechtenstein. Motivados pelo surgimento do Letrismo, uma vanguarda artística e literária parisiense iniciada pelo artista politécnico romeno Isidore Isou (nascido Isidor Goldenstein) em meados da década de 1940, diversos autores de Liechtenstein passam a reproduzir ideias e estéticas vanguardistas em sua poesia e, também, em outras artes no país. É o caso de Roberto Altmann (1942-), pintor e poeta nascido em Cuba, mas que se tornou cidadão de Liechtenstein há muitos anos e tem uma série de produções em poesia visual e sonora que já foram apresentadas em exposições em diversos países no mundo. Hans-Jörg Rheinberger (1946-), historiador da ciência especializado em biologia molecular, que chegou a dirigir o prestigiado Instituto Max Planck em Berlin, também produziu poemas motivados por esse movimento vanguardista do Letrismo parisiense. Evi Kliemand (1945-) também faz parte dessa geração, e a qualidade de seus trabalhos literários e artísticos é bastante reconhecida em Liechtenstein, onde a autora já recebeu uma série de prêmios e honrarias.
Em fins da década de 1970, o estabelecimento de um centro do PEN Club em Liechtenstein trouxe um novo fôlego à literatura nacional, que viu diversos escritores florescerem — e vários dos que já comentei aqui também se juntaram ao clube como membros. Ao leitor que não conhece, o PEN Club é uma espécie de ONG internacional que surgiu no Reino Unido durante a década de 1920; a sigla PEN, em inglês, significa Poetas, Ensaístas e Romancistas. Trata-se, grosso modo, de um clube de escritores e leitores. O Brasil tem um centro do PEN Club desde antes da Segunda Guerra Mundial — atualmente, o nosso centro é presidido por Ricardo Cravo Albin, de acordo com o site da instituição. Em Liechtenstein, o clube foi fundado em fins da década de 1970 por Robert Allgäuer e Manfred Schlapp e se tornou um dos mais relevantes centros letrados do país. Atualmente, é presidido por Mathias Ospelt, o escritor cujo conto “Em meio à neve” tive o prazer de traduzir e anexar a este ensaio.
Dentre os muitos autores dessa geração, podemos destacar as obras de Michael Donhauser (1956-), que inicialmente fez bastante sucesso com narrativas, mas com o passar do tempo decidiu se dedicar mais intensamente à poesia. Seu livro mais recente, publicado em 2016, é Waldwand. Eine Paraphrase. Além de Donhauser, podemos destacar Iren Nigg (1955-), autora que se dedica sobretudo a prosa lírica mais curta, tendo publicado obras em revistas literárias dos quatro países germanófonos da Europa. Em 2011, sua antologia de escritos Man wortet die Orte sich venceu o Prêmio de Literatura da União Europeia. Ainda lidando com autores nascidos na década de 1950, devo mencionar a obra de Jens Dittmar (1950-), que não só escreveu um trabalho de fôlego sobre a Lírica de Liechtenstein (Lyrik aus Liechtenstein), como também produziu uma série de projetos literários próprios, dentre os quais se destacam sua coletânea de contos Como se fosse um pedaço de papel (Als wär’s ein Stück Papier) e seu romance Qualquer um pode morrer (Sterben kann jeder).
O centro financeiro de Liechtenstein em seu aspecto político e social, assim como a dinastia principesca tornam-se os temas literários de maior interesse de Stefan Sprenger, autor nascido na Suíça em 1962. Sprenger é bastante conhecido como comentarista político no país, e seus romances lidam diretamente com questões políticas nacionais. Suas obras mais recentes também tendem a utilizar o dialeto local enquanto recurso estético. Além de prosa de ficção, também publica textos dramáticos e ensaios.
Outro autor de bastante destaque nascido na década de 1960 é Mathias Ospelt (1963-), já mencionado neste artigo algumas vezes. Ospelt é um artista de cabaret, colunista, tradutor, libretista e escritor de narrativas de muito sucesso na cena literária de Liechtenstein. Neto da poeta dialetal Ida Ospelt-Amann, já mencionada acima, Mathias Ospelt escreve de tudo um pouco, sobretudo sob encomenda, segundo o próprio autor. Em entrevista concedida ao Literatursalon, uma das melhores fontes sobre a vida literária de Liechtenstein — de onde retirei a quase totalidade das informações deste texto — Ospelt menciona que compõe suas histórias a caminho do trabalho, enquanto atravessa a floresta em uma caminhada de 25 minutos. Depois de um tempo, se achar que a história ainda é boa, as escreve seja para o cabaret, seja como libreto ou como conto. Sua escrita não é nada experimental; ela é focada na recepção do público, como é de se esperar para um autor que escreve muito para o palco. Ospelt também publica textos de história cultural sobre Liechtenstein, seja sobre a produção de vinhos no país ou sobre o Cabaret de Liechtenstein, ao qual é muito ligado. Ospelt também fundou, com alguns amigos, o teatro/cabaret Schlösslekeller, que virou uma espécie de berço para uma nova geração literária nacional.
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Há, evidentemente, muitos outros autores que poderiam ser mencionados aqui e foram deixados fora deste ensaio que é apenas uma brevíssima apresentação da história e literatura de Liechtenstein ao público brasileiro. É certamente o caso de Patrick Boltshauser (1972-), talvez o autor de maior sucesso no meio teatral de Liechtenstein atualmente, com peças premiadas na Alemanha, Áustria e Suíça, além de um romance, Rapids, traduzido ao inglês. Outro desses nomes seria o de Maurus Federspiel (1974-), jornalista que publicou em 2013 o romance Feind, que obteve algum sucesso pela forma como retrata os pesadelos. Mirjam Beijer-Studer (1976-) também tem feito sucesso com a sua saga Gebundene Herzen (Corações Emaranhados), de fantasia romântica sobre vampiros. Há ainda Armin Öhri (1978-), que transforma matérias históricas em narrativas de suspense, um gênero pouco praticado na região. Öhri obteve um considerável sucesso editorial, tendo vencido em 2014 o Prêmio de Literatura da União Europeia. Alguns de seus livros já foram traduzidos ao espanhol, italiano, albanês e croata — mas ainda não ao português (novamente, alô, editores!).
Existe realmente um sem-número de autores e obras que eu poderia listar aqui. Esse número é particularmente significativo quando lembramos que a população de Liechtenstein não chega a 40.000 habitantes. Trata-se de um meio literário bastante vivo e agitado, muito respeitado por sua população e que conta com uma série de iniciativas governamentais para a sua manutenção. Isso não é de se surpreender, já que o Príncipe-Regente de Liechtenstein é dono de uma das maiores coleções privadas de arte no mundo. É impressionante o quanto uma cultura pode florescer ou minguar a depender da iniciativa de seus governantes.
Como os amigos sabem, dentre as minhas muitas incapacidades destaca-se o meu desconhecimento de alemão. Por não ter condições de ler muitos desses autores no original, tive que basear a escrita deste ensaio em relatos de terceiros, em textos que por vezes consultei em formato de livro, por vezes em formato eletrônico. Para a história de Liechtenstein, me baseei sobretudo em duas fontes: o livreto Encontro com um Estado pequeno (“Encounter with a small state”), gentilmente me enviado pela embaixada, e o livro de David Beattie, Liechtenstein: A Modern History, de 2012. Já para as informações sobre os autores e o desenvolvimento de uma literatura nacional em Liechtenstein (conceito que é sempre um problema, e quem conhece o meu trabalho acadêmico sabe o quanto reclamo da ideia de uma “formação” na literatura brasileira), o site do Salão Literário de Liechtenstein (literatursalon.li) foi a fonte mais completa e confiável de que pude me valer. Infelizmente, as fontes sobre a história literária de Liechtenstein são praticamente inexistentes em qualquer língua que não o alemão. Foi também por isso que decidi, sem ser especialista na área, e admitindo conhecer muito pouco sobre o tema, escrever este texto em português. Ao menos assim, o leitor germanófilo pode ter um acesso mais fácil a esses autores que, de outra forma, talvez não conhecesse. Espero que este texto possa motivar leitores a buscarem essas obras e, também, editores e tradutores a trazerem os autores de Liechtenstein ao público leitor brasileiro. Como minha pequena contribuição, apresento a vocês este conto de Mathias Ospelt, “Em meio à neve”, que infelizmente tive que traduzir indiretamente a partir do inglês “Deep in the snow” (a versão inglesa foi levada a cabo pela professora Sevinc Turkkan, especializada em literatura comparada, e publicada na antologia editada por Aleksandar Hemon, Best European Fiction 2010, que reúne contos de autores de todos os países europeus). Todos os méritos do texto competem ao autor; a mim cabem os engasgos e tropeços. Ao leitor, o prazer da leitura, feita ainda mais agradável pela gentil contribuição de Omar Salomão, que produziu duas imagens para ilustrar esta tradução, sendo uma delas um mapa que certamente ajudará o leitor a se localizar durante a narrativa.
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Em meio à neve[*]
Mathias Ospelt
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“Ainda está longe?”, perguntou Günther para o seu amigo Wachter. Como não obteve nenhuma resposta durante o que julgou ser tempo suficiente para que o outro respondesse, ele gritou novamente para o seu companheiro, que repisava a neve com seus pés à sua frente sob o céu ainda azulado de uma noite gélida. Sob o cachecol que cobria sua boca, Wachter murmurou qualquer coisa que provavelmente significava “não”. Pensando bem, talvez a interpretação mais provável devesse ser “como é que eu vou saber?!”.
Wachter não sabia absolutamente nada. Ainda assim, ele sempre surgia com as melhores ideias. Um exemplo: enquanto ele insistia que o baile de máscaras iria acontecer em Triesenberg, os outros tinham certeza de que as comemorações da terça-feira gorda estavam na verdade ocorrendo em Unterland[**]. Mas de alguma forma, como sempre, ele conseguiu convencer todo mundo; quando finalmente chegaram no suposto lugar do evento após pegarem uma série de caronas no meio do caminho, um deles leu o pedaço de folha A4 preso na porta de entrada do bar que dizia que o estabelecimento estava “fechado por motivos de estar fechado”. Wachter simplesmente balançou os ombros e disse que ele não tinha como adivinhar aquilo. Não era como se eles divulgassem isso nos jornais da tevê. E com esse pronunciamento, ele escapou de todas as reprimendas que poderiam lhe ter sido feitas. Ele perguntou para seus amigos “O que que é? Vocês acham que eu sei de tudo?”. Esse era o jeitão do Wachter.
Ainda assim ele estava sempre preparado para sugerir alguma coisa nova. Se os outros tivessem sete boas ideias para se divertir no fim de semana, Wachter imediatamente, como um reloginho, oferecia uma oitava ideia: ele já chegava dizendo “Ouvi falar que…”; ou “Dizem que…”; ou “Em não sei qual cidade, parece que eles têm um…” E na maior parte das vezes ele conseguia o que queria: toda a valiosa noite de sábado de seus amigos era posta em risco para seguir o plano do Wachter.
Nesta noite em particular, Wachter e Günther tinham saído sozinhos. Eles estavam indo para o Ruggell. Bem no meio das planícies. Na região norte do país. Um novo bar tinha sido aberto no “Ochsen”, anunciou Wachter. Um bar sem camisa. Praticamente sem calças também. Günther se convenceu imediatamente. A ideia de um bar-sem-camisa-e-quase-sem-calças fez com que ele esquecesse de todas as suas preocupações com as ideias brilhantes de Wachter. Assim, a dupla começou sua jornada de ônibus de Oberland para Ruggell com as maiores expectativas e muito entusiasmo. Eles desceram em Schaan, uma das paradas da rota do ônibus, e tomaram umas cervejas; quando eles finalmente conseguiram chegar em Ruggell, no entanto, o bartender tinha acabado de trancar a porta do bar. Eram 11 horas. Horário de fechar. Chega. Pra fora! E, além disso, ninguém lá dentro estava pelado. Agora, eles teriam que se arrastar até Nendeln. Mas eles não eram um pouco jovens demais para esse tipo de coisa? Günther e Wachter riram.
Nendeln. Como essa dupla de ainda-menores-de-idade conseguiria chegar em Nendeln a partir de Ruggell depois das 11 da noite em um sábado de inverno? A rota típica poderia muito bem ter sido uma simples caminhada na rodovia; ou eles ainda poderiam ter pedido carona na estrada para encurtar a caminhada. Se eles conseguissem chegar a Bendern, a pior parte da viagem já teria sido deixada para trás — é sempre possível achar um caminho para Nendeln a partir de Bendern. Wachter teve uma ideia melhor, é claro. Seu lema era: sempre existe um atalho. Ele não estava nem um pouco feliz com a ideia de que, em primeiro lugar, eles teriam que tomar uma rota longa e indireta, que envolvia caminhar uma certa distância para chegar à estrada, onde então caminhariam em uma volta de noventa graus, só para depois ainda caminharem mais ou menos a mesma distância outra vez até chegarem ao destino. Tinha que haver um atalho. Uma linha reta é sempre a menor distância entre dois pontos. Ele havia aprendido isso na escola. Aquilo que estava entre os dois pontos de sua rota nessa noite em particular, que calhava de ser a cadeia de montanhas chamada Eschnerberg, não tinha qualquer importância de acordo com as aulas de geometria que ele teve na escola.
“Vamos caminhar pela floresta e então tomar a melhor rua que a gente achar rumo a Gamprin, e de lá a gente segue pelo bosque até Eschen e abracadabra, estaremos em Nendeln.” “Abracadabra”. Parecia uma boa ideia. Wachter gostava de falar desse jeito — isso o ajudava a conseguir o que queria. Sim, “Abracadabra” e eles estariam em Nendeln. Eles estariam cercados por mulheres, e poderiam ver todas as suas “abras” e “cadabras” de pertinho. E assim, eles partiram. Eles saíram da rua principal, pularam as grades e atravessaram uns campos cobertos de neve. Começou a nevar novamente. Eles caminhavam. A nevasca aumentou. Eles caminhavam. E caminhavam. Enquanto nevava. E nevava. E eles caminhavam. E caminhavam.
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Eles estavam caminhando por duas horas. Günther sabia disso porque tinha olhado seu relógio na hora em que começaram. Ele estava curioso para ver quanto tempo a caminhada ia durar. Ele queria poder contar detalhadamente essa aventura para os seus amigos depois. Mas quanto mais eles andavam, menos impressionante a história parecia.
“Nós não deveríamos já ter chegado em Gamprin há um tempo?” gritou Günther. Wachter agiu como se não o tivesse ouvido. Como se a pergunta não fosse para ele. Como se ele, Wachter, estivesse caminhando na neve simplesmente por causa de Günther. Como se não fosse exclusivamente por conta dele que eles estavam agora no meio daquela paisagem fria; como se ele, Wachter, se pudesse, preferiria estar agora feliz, em casa, assistindo TV. Eles seguiram caminhando pela neve, que ficava sempre mais profunda, e em meio ao vento cada vez mais forte. A caminhada foi ficando mais e mais difícil, e eles começaram a se sentir cada vez mais desconfortáveis. O álcool que tinham bebido durante a noite já tinha abandonado seu corpo havia muito tempo. Cada passo arrastado deixava claro que aquilo já não era uma diversão. Além disso, todos os bares já estariam fechados quando eles eventualmente chegassem a Nendeln. Todos os desejos de Günther tinham sido abatidos. Ele só queria voltar para casa. Estar na sua cama. Dormindo.
“Hey! Wachter!”, Gunther gritou. “Vamos voltar. A gente não pode continuar assim!” Novamente, nenhuma mudança de rumo. A noite já era inóspita, mas a tempestade de neve violenta tinha tornado essa situação insuportável. Günther já não conseguia enxergar nada — olhar para a noite ao seu redor era como olhar para uma televisão sintonizada em um canal sem sinal. Não havia nada: nenhuma estrada, nenhuma luz, nenhuma casa. Os flocos de neve eram como pequenos fogos de artifício — eles brilhavam e saltavam diante de seus olhos. Ele só não se sentia inteiramente cego por insistentemente focar sua atenção nas pegadas de Wachter, que seguia à sua frente, distanciando-se cada vez mais. Ele tinha que andar mais rápido. As pegadas estavam sendo apagadas pela neve quase instantaneamente agora. Günther tentava não o perder de vista.
Então, de repente, o vento e a neve pararam. Günther, que estava lutando contra a noite em sua caminhada quase horizontal, ergueu-se novamente. Suas pernas tremeram enquanto ele tentava recuperar o equilíbrio. Em meio a uma fissura nas nuvens, ele viu o céu estrelado daquela noite e reconheceu o que seu pai certa vez disse ser a cordilheira Kreuzberge. Mas agora ela estava em uma direção completamente errada. Ela deveria estar do lado Noroeste, na Suíça. Mas eles estavam caminhando para o Sudeste.
“Wachter! Olha ali!”. Mas ele não conseguia mais ver Wachter. A fissura entre as nuvens havia se fechado, o vento começou a aumentar novamente e a neve voltou a ter a intensidade de antes. Günther havia perdido o seu guia. “Merda!”, ele gritou. “Ei! Wachter! Cadê você?” Seu amigo continuou mudo e fora de seu campo de visão. Günther queria chorar. Mas e se Wachter aparecesse bem naquela hora e o visse perdendo o controle?
Ele lutou contra a neve por cinco horas, sem praticamente nenhum progresso. A cada passo, ele afundava mais em meio à neve, que rapidamente chegou aos seus joelhos. Ele suava. Estava completamente molhado agora. Ele estava assustado. Era o fim. Mas nada de desistir, ele dizia para si mesmo. Ele se forçou a seguir adiante. E, no meio-tempo, ele rezava a todos os santos de que podia se lembrar de suas aulas de catecismo. Ele implorava que lhe ajudassem. Nunca mais, ele prometeu, ele dormiria durante a missa de domingo, cometeria luxúrias em sua cama, pensaria em mulheres peladas e em suas “abras” e “cadabras”. Nada de cerveja. Nada de palavrões. Nada de roubar motos. Ele seguiria uma vida santa. Mas nada disso ajudou. A exaustão e a fraqueza o cobriram como um manto de chumbo. Seu último pensamento consciente foi “Eu já rezei para São Martinho?”, quando caiu na neve e desmaiou.
Quando Günther acordou ao meio-dia, ele estava curvado sob a varanda de um celeiro em Gampriner Feld. Ele se sentia congelado, mas capaz de se mover. Ele estava com muita sede, mas fora isso se sentia mais ou menos bem. Nenhum sinal de Wachter. Günther se levantou, olhou em volta, e caminhou para o ponto de ônibus mais próximo, cambaleando. Ele tomou o próximo ônibus para casa.
Quando ele se encontrou com Wachter alguns dias depois, tudo o que ele perguntou foi onde ele havia se metido. Ele tinha perdido uma boa. Nendeln tinha sido demais.
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Notas:
[*] Tradução de Caio Cesar Esteves de Souza
[**] O enredo do conto se passa sobretudo em Unterland (literalmente, Terras Baixas), mas é iniciado em Oberland (Terras elevadas), duas regiões administrativas de Liechtenstein. Confira no mapa.
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