por Vanessa Silva Almeida
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No ano de 2016, a editora da Universidade de Oxford publicava Homer, de autoria da professora e pesquisadora Barbara Graziosi. Conforme a autora menciona em seus agradecimentos, o livro foi escrito enquanto ela coordenava um projeto de pesquisa sobre poesia antiga, que permitiu aos pesquisadores e a ela própria investigar como os leitores imaginavam os poetas gregos e romanos através dos séculos. Ainda de acordo com a autora, a gestação do livro foi bastante longa, mas o livro em si, curto. De fato, o livro é breve, mas em sua brevidade, se constitui como uma primorosa introdução à leitura dos dois grandes e irrepreensíveis poemas Ilíada e Odisseia, do mais antigo dos poetas, Homero. E se para o público (leigo ou especialista) de língua inglesa, a obra fornece uma abordagem clara, sucinta e informativa do tema proposto, tanto mais para o público de língua portuguesa, que em 2020 foi agraciado com Homero, a edição brasileira publicada pela Editora Mn?ma, que inaugura sua Coleção Estudos Clássicos.
A escolha da obra por parte da Mn?ma não poderia ter sido mais acertada. Primeiro porque em se tratando de estudos clássicos, é mais que conveniente que se comece por Homero, modelo por excelência dos clássicos; segundo porque o livro de Barbara Graziosi, por ser claro, direto, de fácil apreensão, pode efetivamente auxiliar os leitores interessados nos poemas homéricos que buscam um apoio acessível para sua leitura. E terceiro porque apesar de os estudos clássicos terem crescido bastante no Brasil, ainda carecemos de obras introdutórias e atualizadas na área, de modo que esta edição atende muito bem esta necessidade no país.
A obra é especialmente voltada para os leitores não especializados, não levando em consideração apenas uma análise poética e técnica da Ilíada e da Odisseia, mas, dentro de um contexto histórico muito bem fundamentado, apresenta o modo como os dois épicos foram lidos e formaram leitores ao longo desses mais de dois mil anos. Homero conta com a acurada tradução de Marcelo Musa Cavallari — tradutor de outro título da Mn?ma em parceria com a Ateliê Editorial, Os Evangelhos: Uma Tradução — e de Maria Fernanda Lapa Cavallari. O prefácio, intitulado “Homero de Graziosi: uma Introdução Exemplar” é escrito por Teodoro Rennó Assunção, renomado professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com vasto conhecimento na área de Letras Clássicas, especialmente no que diz respeito à poesia homérica. Um dos pontos altos que destaco neste prefácio é o fato de o autor ter apresentado, logo no início, a importância do ensino e da pesquisa na construção do conhecimento, relacionando a brilhante carreira da autora com o resultado da publicação. Outro destaque no prefácio é a preocupação que o autor teve em apresentar aos leitores brasileiros a autora Barbara Graziosi e sua trajetória acadêmica como aluna, pesquisadora e professora, bem como mencionar seus trabalhos anteriores ao Homero. Isso não só apresenta a autora do livro, mas dá ao leitor a segurança de que a obra foi produzida com o cuidado e o esforço de uma especialista renomada, com profundo conhecimento do assunto. O prefácio segue ao longo de oito páginas muito bem escritas comentando cada parte do livro e relacionando-as com o rico material bibliográfico utilizado por Graziosi.
Homero está dividido em três partes precedidas de uma introdução na qual a autora insere de imediato o leitor da Ilíada e da Odisseia numa longa tradição, que vai desde Petrarca, passa pela Renascença, pelo século XIX, e chega até os nossos dias. Ainda na introdução, considerando a posição do leitor, Graziosi estabelece seus objetivos: o primeiro é facilitar a compreensão dos épicos homéricos fornecendo um guia para as principais questões literárias, históricas, culturais e arqueológicas que permeiam os estudos sobre os poemas de Homero; o segundo é demonstrar o modo como os leitores do aedo grego se inserem em uma vasta comunidade de outros leitores, e mesmo de não leitores que, por não saberem grego, não o puderam conhecer de forma direta, como é o caso de Petrarca e Dante, por exemplo.
A primeira parte do livro, intitulada “O Poeta” se subdivide em quatro capítulos nos quais Graziosi retoma as discussões sobre o modo como os gregos antigos viam Homero, a começar pela interpretação do próprio nome grego Hóm?ros (que tanto pode significar “cego”, como também “refém” — e ambos os significados podem condizer com que se levanta sobre o poeta), e pela sua possível cidade natal (sete cidades podem ser consideradas). Com isso, a autora indica que não é possível afirmar com exatidão qualquer coisa sobre Homero a partir de pistas textuais, ainda que elas sejam muito importantes.
As pistas são analisadas no decorrer dos capítulos 2 e 3, que levam em consideração tanto pistas textuais, como materiais, começando pelas discussões sobre as características formais do texto, as fórmulas, os símiles, o metro (hexâmetro) e, principalmente, o modo como as análises comparativas que Milman Parry (1902-1935) e Albert Lord (1912-1991) fizeram sobre a tradição épica oral da antiga Iugoslávia contribuíram para revolucionar os estudos sobre a poesia homérica, revolução esta fundamental para alimentar a famigerada Questão Homérica, especialmente no que tange à corrente dos analistas. Outro ponto importante, este levantado no capítulo 3, é o destaque dado pela autora para a famosa pesquisa arqueológica de Heinrich Schiliemann (1822-1890), que, desejando desde a infância provar que Troia era uma cidade real, escavou a região de Hisarlik, na Turquia, e descobriu uma cidadela que em tudo lembrava a Troia homérica. Outras descobertas foram feitas por Schiliemann, como aquelas em Micenas e Tirinto, na Grécia, que atestam a existência de civilizações impressionantes no decurso do segundo milênio a. C. Apesar de essas descobertas arqueológicas terem sido recebidas friamente por parte dos pesquisadores contemporâneos, é inegável que elas abriram definitivamente novos rumos para os estudos dos poemas homéricos. Foi graças às escavações de Schiliemann que tabuinhas de Linear B foram encontradas nos sítios no entorno de Micenas. Mais tarde, nos anos de 1950, elas viriam a ser decifradas com expectativas na poesia homérica, mas sobre ela não revelou quase nada.
Barbara Graziosi relaciona com muita facilidade e clareza os eventos históricos e os poemas. Ela nos leva a reflexão sobre como as descobertas arqueológicas foram importantes, por exemplo, para presumir uma data de composição dos dois épicos. A partir do conjunto de pistas tanto textuais como materiais é possível afirmar que a composição da Ilíada e da Odisseia ocorreu por volta do século VIII (antes disso é difícil sustentar, pois é conhecida a “Idade das Trevas” que antecedeu ao ano 800 a. C., não sendo provável o florescimento nem a sobrevivência de manifestações artísticas nesse período) e não depois do séc. VI a. C. (muitos vasos e cerâmicas do século VI retratam cenas da Ilíada e da Odisseia, não sendo possível sua composição posterior a isso). É um ponto forte do livro de Graziosi o estabelecimento dessas relações para que o leitor possa se situar mais claramente no emaranhado contexto histórico que ronda os épicos homéricos.
Graziosi finaliza a primeira parte do seu livro tratando de uma importante questão para os estudos de narratologia dos poemas: a voz do narrador. Se por um lado há pouquíssimas evidências da existência de Homero, por outro, o narrador é ouvido em alto e bom som, caracterizando a narrativa como o resultado da junção da voz do poeta com a voz da Musa, de modo que após o proêmio (v. 1- 7) não é mais possível separar uma voz da outra, exceto nos momentos em que o poeta se perde na relação com a deusa, como no caso do famoso catálogo das naus, no canto II, quando ele pede novamente pelo auxílio divino. Destaco aqui o modo muito bem articulado como a autora analisa esta relação do poeta e a Musa dentro da narrativa: para Graziosi a invocação do poeta (mortal) à deusa (imortal) marca a superioridade do divino sobre o humano, do conhecimento sobre a ignorância, da visão sobre a audição, e nessa relação o poeta se coloca junto à sua plateia quando pede a ajuda divina, mas logo se junta às Musas, passando a participar de sua visão e revelando à plateia aquilo que as Musas, por sua vez, o revelam.
Outro destaque que faço neste capítulo é o modo como a autora diferencia a Ilíada e a Odisseia do ponto de vista do poeta e da narrativa. É notório para o leitor de ambas as obras que a primeira é mais objetiva que a segunda, e que esta possui inúmeros elementos metapoéticos, isto é, a poesia ou o que diz respeito à poesia dentro da própria poesia. Fêmio e Demódoco representam a figura do aedo, e o próprio Odisseu ocupa esse papel no intervalo dos cantos IX a XII, de modo que é possível realizar uma reflexão sobre a poesia e o respeitado trabalho do aedo.
A segunda parte de Homero está dividida em três capítulos dedicados à Ilíada, e tratam de três pilares do poema, a saber: a ira de Aquiles, a guerra de Troia e a tragédia de Heitor. A grande ênfase de Graziosi tanto aqui quanto na última parte é a morte, ideia da qual ela se utiliza brilhantemente para inserir o leitor de seu livro definitivamente no mundo homérico. Mas longe de saturá-lo de referências bibliográficas sobre o assunto — e elas abundam — Graziosi apresenta sucinta e claramente questões complexas que, pela sua extensão, dariam matéria para teses e mais teses. Quando trata da ira de Aquiles, a autora a discute como o tema central do poema permite ao poeta contar eventos cruciais para a vitória grega. Dá destaque especial à condição de Aquiles e à atuação de Tétis em sua relação com o filho e com Zeus, relembrando o mito e levando o leitor a concluir que a ira de Aquiles, que precipitará a morte do herói, está relacionada diretamente com Zeus, pois sua morte garante, de certo modo, a perpetuação do Crônida no poder, uma vez que Aquiles, se tivesse nascido de sua relação com Tétis — que não aconteceu — seria o destronador de Zeus. Graziosi então mostra que Aquiles pede uma compensação pela sua vida breve, e esta é a razão de Zeus aceitar o glorificar. O ápice de sua ira, no entanto, ocorre quando Heitor mata seu melhor amigo Pátroclo. É a morte que continua ditando a regra do poema, e já acomete o coração de Aquiles, ainda que ele esteja vivo. Nada o saciará enquanto ele não se vingar de Heitor. Graziosi mostra que sua sede é tanta que o ultraje ao cadáver do Priâmida nada mais é do que a reação imediata desse desespero. Aquiles já está morto, e isso o leva a devolver o cadáver de Heitor ao velho Príamo, lembrando de seu pai, Peleu, que sofrerá tragédia semelhante em relação a sua morte.
Paralelamente à tragédia de Aquiles e de Heitor, Graziosi também destaca a preocupação do poeta em revelar a tragedia dos troianos, de modo geral, e das mulheres, em particular, como fica claro no lamento de Andrômaca no fim do poema.
Finalmente, na terceira e última parte de Homero, Graziosi dedica três capítulos à Odisseia, nos quais fala da figura de Odisseu como “o homem de muitas guinadas”, sobre as mulheres e os monstros e, por último, sobre a descida ao Hades. É interessante que a abordagem da autora ainda enfatiza a morte, mas de uma forma completamente diferente, e até oposta a que fez na análise da Ilíada, pois Odisseu não precisa escolher entre a fama e a morte. Ele as obterá em vida através de seu nóstos (retorno). Odisseu como homem é a matéria da Odisseia. Ele representa o engenho, a busca do conhecimento, e sua característica principal é a métis (astúcia). Graziosi estabelece uma diferença interessante quando fala do modo como podemos enxergar a Odisseia: poema de retorno ou de sobrevivência? Se considerarmos o primeiro aspecto, há um grande aprendizado no fato de o herói ansiar e sofrer coisas indizíveis para retornar a casa, à esposa e ao filho. Ele recusa a imortalidade oferecida por Calipso, e isso nos leva a refletir sobre o que é ser homem, o que é ser humano e todas as limitações que implicam nisso. Por outro lado, se considerarmos o segundo aspecto, há menos aprendizado, mas há mais fruição.
Sendo então a Odisseia um poema de retorno ou de sobrevivência, é interessante observar que as mulheres ganham um espaço especial no poema. Odisseu quer retornar ao lar, e no centro do lar está a esposa; quer sobreviver, e precisa fugir das mulheres (Calipso e Circe), ou ser ajudado por elas (Nausícaa). As mulheres se envolvem com os lavores, com a costura, a tecelagem, a tapeçaria. Graziosi destaca de modo especial o assunto das roupas, e da importância que elas têm no universo das mulheres tanto como status quanto como fruto de seus habilidosos trabalhos manuais.
O último capítulo da terceira parte é sobre a descida de Odisseu ao Hades. A autora estabelece inúmeras relações entre histórias semelhantes de outros personagens da mitologia grega, bem como de outras literaturas, como é o caso do personagem Enkídu, que desce ao mundo dos mortos e depois conta a Gilgamesh. Mas o destaque que dou para este capítulo é o modo como Graziosi apresenta para os leitores modernos a repercussão dessa temática da descida ao submundo na literatura do ocidente. Menciona Dante, o que ao meu modo de ver é muito importante, pois o florentino, apesar de provavelmente nunca ter lido Homero, coloca-o como o poeta sovrano (poeta soberano), e em um dos círculos do inferno encontra-se com Odisseu, que lhe conta como morreu após ter saído novamente de Ítaca. A autora destaca que este mito é muito tardio, que Dante pode ter inventado, o que mostra que a tradição literária está completamente interligada, e que ser leitor de Dante é também, ainda que indiretamente, ser também leitor de Homero, pois os leitores do bardo grego fazem parte de uma longa tradição de leitura, como mencionei no início desta resenha.
Em suma, o Homero, de Barbara Graziosi é um livro indispensável para o leitor que quer ir além de uma leitura superficial da Ilíada e da Odisseia, mas não quer arriscar comentários complexos de modo a prejudicar sua compreensão. É um livro que serve tanto ao professor que prepara um curso de introdução à poesia homérica, quanto ao leitor não especializado que quer ter uma visão mais abrangente do valor dos épicos homéricos na literatura. Resta parabenizar a Editora Mn?ma pela excelente e necessária publicação, bem como pela iniciativa de revitalizar o mercado editorial brasileiro com edições enxutas, atualizadas e, acima de tudo, clássicas.
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GRAZIOSI, Barbara
Homero
Tradução de Marcelo Musa Cavallari e Maria Fernanda Lapa Cavallari. ]
Editora Mn?ma, 2020
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