por Jéssica Cristina Jardim
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Pobre Azevedo, sempre a cismar com a morte!
Joaquim de Paula Souza[1]
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“Algum pressentimento?”, perguntaria Jacy Monteiro[2] aos comovidos membros do Ginásio Brasileiro, em sua homenagem póstuma ao poeta Álvares de Azevedo, aludindo à constante melancolia percebida no poeta pouco antes de sua morte, em 25 de abril de 1852. Como amigo e biógrafo, como organizador de sua obra póstuma pela Editora Garnier, Monteiro não poderia evitar um discurso interessado, no melhor sentido, ao buscar sedimentar uma imagem coerente entre vida e obra ficcional para o jovem escritor, recentemente falecido, mesmo que ainda respeitando sua memória, de um ponto de vista moral. Fortemente amparado no mito romântico do gênio literário, esse discurso direta ou indiretamente ecoaria nas histórias da literatura brasileira, ora por afirmação ora por negação, mas sempre tocando o aspecto de um Azevedo sentimental, que penetrara intensamente as “fantasias do Faust, os sentimentos apaixonados de Werther”, o “cismar cético de Byron”.
Azevedo, construído pela narrativa biográfica, caminharia entre personas antagônicas, inicialmente como a criança de saúde frágil, o filho e irmão amoroso, o jovem estudante dedicado e cheio de talento, admirado por seus mestres, “bom amigo, caridoso, afável; às vezes porventura um tanto altivo”. Mas Monteiro não desassociaria o autor de Noite na Taverna das aventuras cheias de descentramento romântico, “por noites escuras e invernosas, ao redor de uma mesa, alumiados por um candeeiro, envoltos no fumo dos charutos ou dos cachimbos […] em palestras literárias, em disputas escolásticas, em fantasias extravagantes” e da virada para um espírito melancólico e pessimista, as primeiras visões da morte iminente, daquilo que em sua obra transpareceria como o “lado sórdido do ser humano, sua face demoníaca”, nas palavras de Karen Volobuef.[3]
Fogem ao escopo deste ensaio as discussões em torno da biografia como gênero textual, ou sobre seu caráter amplamente ficcional desde o século XIX. Importa-nos parcialmente a construção de Álvares de Azevedo como personagem, na historiografia literária, pela ênfase no tom, no temas e na estética sentimentais que o tornariam, pouco depois de sua morte, uma figura de destaque ainda no momento de formação de um sistema literário no Brasil. Interessa-nos, por outro lado, que a construção discursiva de Jacy Monteiro ampararia de tal modo a figura sentimental do jovem poeta, persona coerente de um escritor mal do século, ao ponto de ser possível, já na década de 1870, a publicação de um drama histórico no qual ele figura como protagonista. O poeta torna-se ele próprio um herói tipicamente romântico, embora com aspectos curiosamente dissonantes.
O drama Álvares de Azevedo ou Amores da mocidade,[4] publicado quase 20 anos depois da morte do poeta, por Joaquim de Paula Souza, é escrito explicitamente com base no discurso biográfico de Jacy Monteiro, além disso, contrariando o forte preceito comum ao oitocentos de que acontecimentos ainda recentes na história dificilmente seriam apropriados ao gênero épico. Mesmo os temas derivados do “drama da Independência de 1822”, para usar a expressão do crítico literário Joaquim Norberto,[5] seriam problemáticos aos enredos publicados entre as décadas de 1830 e 1870. No entanto, a proeminência do gênio de Azevedo dissolveria essas questões pelo ponto de vista da necessidade evidente de construção de um sistema literário nacional, muito embora sua qualidade e presença nele fossem continuamente questionadas nas décadas seguintes, por críticos e historiadores, oscilando entre a genialidade e o desleixo criativo. Em uma literatura ainda em vias de se formar, o autor do Macário, mesmo na morte, receberia a missão de edificar, juntamente com outros nomes, nossa ainda frágil plêiade literária.
A dramaturgia atuou de forma intensa na formação dos mitos e personagens literários e contribuiu de modo evidente com o fortalecimento da literatura brasileira, entendendo-se aqui que literatura e teatro ainda andavam de mãos dadas nesse período, do ponto de vista acadêmico e do ponto de vista criativo. Vistas muitas vezes como iniciação aos jovens autores, e de grande relevância para o esforço civilizatório do país, como enfatiza João Roberto Faria,[6] não foram raras as peças escritas e logo abandonadas pelos que se arvoravam em outros gêneros, como a poesia e o romance, vistos como gêneros de amadurecimento.
O século XIX é um momento em que se torna explícita a necessidade de fortalecimento das ideias nacionais e é também quando se torna prioritário o projeto de formação de um sistema literário e teatral, como discurso ideológico e estético. Há todo um esforço de se elaborarem cronologias diretamente ligadas não apenas à literatura, mas à história nacional, por vezes, heróis-escritores envolvidos em importantes questões políticas. São famosas as peças históricas protagonizadas pelos Inconfidentes, mas também poetas: Tomás Antonio Gonzaga, nos dramas de Castro Alves[7] e Constantino Gomes de Souza;[8] Basílio da Gama, personagem secundário em O Jesuíta, de José de Alencar;[9] Alvarenga Peixoto, no drama de Francisco Pessoa de Barros. Ainda, Antonio José da Silva, de Gonçalves de Magalhães,[10] considerada obra inaugural do teatro romântico brasileiro. Álvares de Azevedo entraria nesse seleto grupo, apesar de suas diferenças marcantes: (1) sua atualidade histórica; (2) seu peculiar alheamento quanto à política nacional e até mesmo da literatura brasileira como conceito nacional; e (3) sua morte não violenta e não ligada a motivos políticos.
Ainda, nessa modalidade de gênero teatral, a peça histórica, cuja fábula se materializa tão somente pelas tomadas de ação interpessoais dos seus protagonistas, a falha inevitável do heroi e a sua subsequente queda representam mais do que a narrativa de enredos individuais, mas tocam a própria narrativa da história nacional, desde que essa é conduzida, para pensar em termos hegelianos,[11] por seus heróis. Heróis que por vezes emergem do enredo das ações bélicas, mas que em um país que se pensava enquanto decantação política e cultural, a figura do gênio, do escritor, poeta, intelectual, ganha intensas nuanças. É nesse sentido que a tópica romântica da morte do herói, neste caso, de um poeta, ligada em muito à fissura dos idealismos e à melancolia, em uma releitura positiva daquilo que se sintetizava na expressão do “mal do século”, adquiriu configuração especial no que diz respeito às peças históricas.
Buscando evitar o lirismo, como freio à ação dramática, Joaquim de Paula Souza, porém, traria como resultado em Álvares de Azevedo ou Amores da mocidade uma peça de três atos, especialmente retórica, como muitas de seu tempo, e estruturalmente dramática, centrada na construção de uma personagem modelo cujo caráter é solidamente sedimentado à vista do espectador. Exceto nos momentos em que sofre pelo amor perdido, Azevedo é quase um raisonneur das peças realistas, personagem que representa “o ponto de vista do autor sobre um determinado assunto ou, de maneira mais abrangente, o ponto de vista da sociedade”.[12] O poeta observa a decadência moral de sua época e de seus amigos mais próximos, lança conselhos e julgamentos, posiciona-se diante de um Rio de Janeiro que é perdição para os jovens, e aspira pela morte, como solução e afastamento do que é mundano:
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“Não seremos todos Prometeus? Fantasias? Imaginação, terás produzido bens ou males sobre a terra? Quanta esperança deixastes entrever ao jovem, para lhe dares depois o cadáver frio da realidade!”[13]
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De fato, ambos aspectos, dramáticos e líricos, entram em embate na peça. Esse caráter melancólico, de uma tristeza não motivada, serve de ponto de partida para a construção do Álvares de Azevedo, personagem dramática, mas se contrapõe a uma ação dramática tênue, pouco sustentada, a não ser do ponto de vista da demonstração contínua de uma personalidade moralizante, ideal para a narrativa histórica e biográfica do poeta, mas muito diversa da pessoa lírica do autor do Macário. O próprio autor de Amores da mocidade justificaria na construção dramática essa contradição: “para pintar Álvares de Azevedo, tal como me afigura ser, tinha de o fazer muito lírico, muito cheio de visões, e devaneios, amando a mulher com amor etéreo que teme descer à terra. Mas o drama requer ação, pelo que cortei as expansões que ainda mais faziam desfalecer o interesse dramático.”[14]
Joaquim de Paula Souza tomaria como ponto de partida para a ação dramática a misteriosa melancolia do poeta, entendendo-a como possível sintoma inicial de uma crise política que se irá gestando até quase final do século, com a Abolição da Escravatura e a decadência do Império, mas que são igualmente alheias a Azevedo, por excederem seu tempo histórico, já que o poeta viveu entre 1831 e 1852, e o drama só seria escrito na década de 1870. Para o dramaturgo, o poeta “representa bem a mocidade do Brasil, doentia, triste, aspirando morrer, pois prevê que sua liberdade está sendo coarctada”. Assim como ocorre com os poetas árcades ficcionalizados por Castro Alves, Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, um discurso político anacrônico dá corpo às suas intenções mais íntimas, e também Azevedo torna-se representante de um momento histórico que não lhe pertence, assentado na escrita de uma história futura.
A segunda diferença estaria em seu problemático alinhamento com um discurso nacional. De fato, o crítico Antonio Candido[15] lembraria o posicionamento antinacionalista de Álvares de Azevedo, para o qual literatura brasileira e portuguesa estariam constituídas como uma só, não havendo motivos para percebê-las em separado. A identidade nacional, agenda quase obrigatória do romantismo, encontrava uma curva em Azevedo, destoando anacronicamente de seu tempo. O próprio escritor iria em mão oposta aos temas típicos da “cor local” em suas obras. No momento em que se torna personagem central de um drama histórico, contudo, tais conflitos seriam apagados em prol de sua construção como poeta brasileiro integrado a esse mesmo discurso nacionalista do qual não participava. Sua evidente qualidade literária talvez fosse uma moeda de troca mais valiosa do que tais contradições intelectuais, horizontalizando sua atualidade histórica.
No teatro oitocentista brasileiro, especialmente nas peças históricas, há uma tópica sempre recorrente, relativa à inevitabilidade de falha das ações heroicas, em um contexto marcado por anacronismos históricos, sociais e políticos, dentro do entendimento de que materializar essas metas pertence aos tempos futuros, e nunca ao presente. É claro, dentro das reflexões do épico na literatura, a noção de acontecimento em muito supera as forças dos seres individuais, cujo mérito está mais em desafiar a pulsão dos acontecimentos do que em vencê-los efetivamente. Isso significa, em termos gerais, que as possibilidades de ação dos heróis históricos são cerceadas pelos limites das conjunturas históricas, mas principalmente que o presente nunca é modificável.
Transformado em heroi dramático tipicamente romântico por seu temperamento situado entre dois extremos sentimentais, melancólico e expansivo, Álvares de Azevedo marcaria mais uma diferença com os heróis românticos brasileiros, por sua morte não violenta e não motivada por questões políticas. Por um lado, seria muito atraente ao romantismo teatral a figura de um escritor vitimado aos 21 anos, como que cumprindo uma predestinação poética, mencionada frequentemente como premunição. Por outro lado, do ponto de vista do nacionalismo, como base para a construção dos heróis dramáticos, o fato de a morte do escritor não ter sido derivada de sua participação em algum movimento político poderia impor limitações históricas e narrativas.
Em Amores da Mocidade, Álvares de Azevedo é aproximado a um modelo de heroísmo com o qual não se encaixa, e por isso seu discurso soa deslocado em meio a ações dramáticas que não se sustentam, nem mesmo do ponto de vista biográfico. “Soldado da democracia” sem o ser, infeliz no amor, diante da previsão de uma vida curta e tolhida no auge da juventude e em meio à impossibilidade de agir, restam a Azevedo, personagem dramática, a melancolia e a morte.
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Notas:
[1] SOUZA, Joaquim de Paula. Álvares de Azevedo ou Amores da mocidade: drama em 3 atos. São Paulo: Tipografia do Correio Paulistano, 1870.
[2] MONTEIRO, Jacy. Discurso biográfico do Bacharel M. A. Álvares de Azevedo. In: Obras de Manuel Antonio Álvares de Azevedo. Tomo Primeiro (Poesia). Rio de Janeiro: Garnier, 1862.
[3] VOLOBUEF, Karen. Álvares de Azevedo e a ambiguidade da orgia. Organon (UFRGS), p. 113-131, 2005.
[4] SOUZA, J.P. (op.cit.).
[5] NORBERTO, Joaquim. Brasileiros célebres. In Revista popular, São Paulo, 1860, n.5.
[6] FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001.
[7] ALVES, Castro. Gonzaga ou A revolução de Minas. In: Teatro Completo. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[8] TAVARES, Constantino do Amaral. Gonzaga, drama histórico em três atos. Rio de Janeiro: Tip. de F. A. de Souza, 1869.
[9] ALENCAR, José de. O Jesuíta. Rio de Janeiro: Garnier, 1875.
[10] MAGALHÃES, Gonçalves de. Antonio José ou O poeta e a inquisição: tragédia. Rio de Janeiro: Tip. Imparcial de F. de Paula Brito, 1839.
[11] HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética. Vol.IV. São Paulo: Edusp, 2014, p.106 e 109.
[12] GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela A. de. Dicionário do Teatro Brasileiro: Temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2006.
[13] SOUZA, J.P. (op.cit.).
[14] SOUZA, J.P. (op.cit.).
[15] CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2006.
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