Os professores são constantemente punidos. John Keating, de Sociedade dos poetas mortos, acaba demitido. Rainer, de A onda, é preso. De maneiras diferentes, esses docentes tão antagônicos entre si são também personagens ligadas a suicídios de alunos: Keating pela luminosidade; Rainer pela obscuridade. Infelizmente, essas não são coincidências: “o professor” (está escrito em diferentes alturas dos cadernos de José) “é a personagem mais trágica da modernidade”.
Keating faz par com outro professor excepcional, seja por sua constituição como personagem, seja pelo seu destino trágico. Trata-se de Dom Gregório. José diz ter perdido a conta de quantas vezes leu o conto do escritor espanhol Manuel Rivas e assistiu à adaptação para o cinema de seu conterrâneo José Luis Cuerda, A língua das mariposas (1999). Sempre que há piquetes no prédio da faculdade de Letras e uma estranha força coletiva tende a turvar as consciências com palavras de ordem, ele se lembra do final do filme, e se emociona; e por vezes passa um pouco mal. O pequeno Moncho é o menino tímido que, pelo contato com o professor, desabrocha, à maneira do que ocorre com o encabulado Todd Anderson, o aluno mais sensível de Sociedade dos poetas mortos. Tanto Moncho quanto Todd condensam a experiência de transição para a idade escolar. “Coragem para a luta” é, afinal, o conselho do pai de Sergio, no Ateneu.
O menino espanhol não consegue dormir na véspera do primeiro dia de aula. Seus pais e colegas alimentam terríveis expectativas, baseados nas experiências negativas que tiveram. Moncho teme apanhar do professor porque lhe parece que é disso que depende o aprendizado. Em sala de aula, o menino, como o gado no matadouro, está cego de medo. O novato é convidado a se apresentar aos colegas e o faz por seu apelido, Pardal. Diante dos risos da turma, seu constrangimento o leva a urinar nas calças e a fugir da escola em disparada. Só à noite ele será encontrado num bosque, ao redor da cidade.
Apesar de ter o dobro da idade de Moncho, Todd comporta-se como uma criança indefesa. As palavras teimam em não sair de sua boca e seu olhar reflete desespero. Ele prefere dizer que não escreveu o poema solicitado pelo Sr. Keating, a dizê-lo em voz alta. Mas a trajetória desses jovens sinaliza o poder transformador da educação — a força dos Josés. Dom Gregorio é outro desses lobos tresmalhados. E ele não bate. Ao contrário, o mestre fascina. Ele ensina a olhar para os segredos do mundo, e é especialmente a natureza que enfeitiça o pequeno Moncho, que relata maravilhado as novidades à sua família. Dom Gregorio transforma-se num mestre-amigo. Todd, por sua vez, germina como uma delicada planta diante do assombro dos colegas, pelas mãos do Sr. Keating, que cobrem seus olhos para que ele se esqueça de si. Para que não se lembre de onde está, dos olhares invasivos, e simplesmente deixe a própria voz irromper pela sala com sua poesia represada.
Essas trajetórias — “do pânico ao encantamento”, conforme escreve José — não são odes à escola, porque as escolas em que esses alunos estudam são “instituições totais” que justificam o terror de seus formandos. Essas trajetórias são, a bem ver, odes aos mestres. Mas essas duas histórias não teriam a força que têm se parassem por aí. Que Dom Gregório e Sr. Keating sejam homens de exceção não está em discussão. Passa-se toda uma vida e não se conhecem muitas pessoas, fora das telas, dos palcos ou das páginas dos livros, com sua altivez e integridade de caráter.
Keating será demitido, e a cena final é arrebatadora. O professor entra em sala durante a aula de literatura ministrada por seu substituto, o próprio diretor, para retirar seus pertences que ainda estão no gabinete ao fundo da sala. Os alunos anotam a lição como náufragos já sem esperança de salvação. O velho diretor retoma um dos capítulos cujas páginas foram arrancadas pelos alunos. A sensação de retrocesso é tangível. Eles estão conscientes de que experimentam o ocaso de suas formações. José não escreveu essa frase. Terá apenas pensado nela, olhando pela janela, para a rua, para o seu triste mundo. Keating atravessa a sala com o olhar melancólico. Os alunos, por sua vez, só têm olhos para seu ex-professor. Ele gira a maçaneta da porta. Será possivelmente o último contato que terão com o mestre. “Oh, Captain, my captain.” A abertura do poema de Walt Whitman é uma invocação a Abraham Lincoln, após o seu assassinato em 1865. Na boca de Todd, que no momento decisivo interrompe a aula e impede que o professor se vá, ela é arrebatadora. O tempo congela. Keating se volta para a turma. O diretor se exaspera, mas a sala está magnetizada pelo verso. “Oh, Captain, my captain”. Todd sobe na mesa e metade dos colegas faz o mesmo, ignorando as ordens desesperadas do diretor para que se sentem. A câmera os enquadra de baixo. Na soleira da porta, Keating, de olhos brilhando, e antes de partir, dirige-se uma última vez aos alunos: “Obrigado, meninos. Obrigado”. E basta.
José tem plena consciência de quão essencial é esse silêncio. “É gritante a nossa incapacidade para o silêncio”, ele escreve em uma das páginas de seu caderno. Não há aprendizado sem ele, o momento em que as coisas assentam e suas decorrências se elaboram tacitamente. Keating e Gregorio sabem disso. Eles não gastam as palavras, tampouco as desperdiçam, justamente porque não fogem aos assuntos essenciais. Não são distrativos, desatentos, não as usam como cortina de fumaça. E não são seres verborrágicos como costumam ser os professores que dissipam ideias para não as levar a cabo. Esse falatório todo em sala de aula sempre desamparou José porque, segundo ele, o impedia de pensar suficientemente a respeito do que fora dito. E talvez seja esse, em parte, o objetivo de tanta tagarelice — impedir de pensar. O que Keating e Gregorio dizem, ao contrário, tem a sua permanência. Ao dizer, eles parecem nos ouvir. As suas poucas e precisas palavras conferem corporeidade às coisas. Mas o mundo não será generoso com eles.
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A Espanha vive o prenúncio da Guerra Civil. Embora sejam republicanos, os pais de Moncho temem ser desmascarados na presença do exército. Motivados por concidadãos franquistas que compõem uma plateia excitada pelo medo, eles gritam vitupérios contra os próprios vizinhos e amigos, então transportados na caçamba de um caminhão do exército. Surpreendentemente, o pequeno Moncho está cego de raiva. Incentivado pela mãe e com o discernimento toldado pela ira coletiva, ele corre com um grupo de crianças atrás do caminhão. Então atira uma pedra na direção de Dom Gregorio, que, também levado como preso político, observa-o sem reação. Contudo, o que escapa da boca de Moncho, em sequência a “ateu” e “comunista”, são, para a surpresa do próprio garoto, as lições do querido mestre, “tilonorrinco”, “trompa espiral”… Ao se ouvir, ele se cala, para de correr. Seu olhar, agora, transmite apenas melancolia. Com esta imagem congelada, como se Cuerda fotografasse, em preto e branco, o exato momento em que Moncho toma consciência de quem ele realmente é, o filme se encerra. A respeito desse momento, José escreve: “Em ambos os contextos, social e político, apesar da demissão de Keating e da prisão de Dom Gregorio, o que Cuerda e Weir enfatizam, na justa medida do apelo dramático, é a força transformadora da educação sobre a força degeneradora da opressão”.
Num dos cadernos de José encontram-se paralelos entre A língua das mariposas (1999), de Cuerda, e Machuca (2004), de Andrés Wood. A releitura dessas anotações deixa claro que, para José, Wood se deixou inspirar pelo filme de Cuerda, o que em nada compromete a sua autonomia. Mas A língua das mariposas reencena, por sua vez, trechos memoráveis de um “filme semeador”, segundo a feliz expressão de José. Trata-se de Pai, patrão (1977), de Vittorio e Paolo Taviani. Eis a sua inesquecível abertura: “Este é Gavino Ledda, 35 anos. Até os 18, pastor e analfabeto. Hoje linguista e autor de um livro de sucesso; de um livro que conta a sua vida. É neste livro que este filme se inspira com liberdade. A história se inicia em uma escola primária de uma cidade da Sardenha, onde Gavino frequenta a primeira série. Numa manhã de novembro, o pai irrompe pela escola”. Enquanto ouvimos a voz do narrador, assistimos a Gavino, bem trajado, desbastar, com o auxílio de um facão, os galhos de um longo graveto. Liso como um bastão, ele o entrega, à entrada da escola, para o ator que fará o papel de seu pai: “Ele também usava isto”, diz o narrador, Gavino. O pai, então, interrompe a lição sem pedir licença à professora e, com um tom autoritário, assevera que está ali para pegar o seu filho, para que o garoto vigie o rebanho de ovelhas enquanto ele estiver fora. Esse é apenas o começo dessa história. Um começo que, para muitos, representa o seu final. O pequeno Gavino se levanta e tenta, com os pés, disfarçar a urina que escorre por sua perna até o assoalho de madeira. A professora resiste. O pai insiste. O menino vai até ela, que o abraça e procura confortá-lo. Ao final, ela está desolada.
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As anotações dos cadernos de José são, nesse ponto, um tanto confusas. Tentarei, com alguma dose de liberdade, traduzir sintaticamente, e numa tabela (por que não?), o emaranhado que torna o esquema entre Machuca e A língua das mariposas pouco discernível. José me perdoaria por isso, mas, estou certo, não sem certa ironia.
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FILME | A LÍNGUA DAS MARIPOSAS (1999) | MACHUCA (2004) |
DIRETOR | José Luis Cuerda | Andrés Wood |
PAÍS | Espanha | Chile |
CONTEXTO POLÍTICO | Vila rural da Galícia — antecedentes da Guerra Civil Espanhola de 1936 (ascensão do Gal. Franco) | Santiago — Golpe Militar de 73 (ascensão do Gal. Pinochet) |
PERSPECTIVA | Do pequeno Moncho, filho de um alfaiate republicano e uma dona de casa que teme a Deus e a perseguição política. Recém-ingresso na escola, ele rapidamente transita do temor ao encantamento, ao se deparar com Don Gregorio, um professor que não se enquadra no estereótipo de autoritário e punitivo, imagem esta que gerava pesadelos no menino. Ao contrário, o mestre é afetuoso e sonhador. Ele é capaz de alimentar nos estudantes o gosto pela aventura do conhecimento. O que realmente faz a diferença para Moncho é o convívio com o professor, que extrapola a sala de aula. Don Gregorio, um idealista libertário de vocação anarquista, aproxima-se naturalmente dos republicanos e será preso pelo novo regime. | De Gonzalo Infante, pré-adolescente da elite de Santiago e estudante do renomado colégio bilíngue Saint Patrick. É ele quem passa pela verdadeira (trans)formação através do contato com um novo colega, Pedro Machuca, de origem indígena e vindo da periferia. Esse convívio, motivado pelas bolsas de estudo que o diretor, Padre McEnroe, oferece para garotos de baixa renda, seguindo o exemplo da política social de Salvador Allende, possibilita que Gonzalo enxergue para além dos privilégios de classe e de etnia, tão desesperadamente defendidos por sua mãe, e que, na contramão dos ensinamentos aprendidos na escola, estariam para ser cristalizados pela ditadura insurgente. A família de Machuca e seu bairro são varridos do mapa pela ditadura de Pinochet. |
TOM | Lírico com alcance sociopolítico | Sociopolítico com traços líricos |
CENAS (I) | Um fazendeiro autoritário e conservador invade a sala de aula de Don Gregorio para questionar seus métodos. Ele exige que o professor bata em seu filho para que o menino aprenda a fazer cálculos. Como forma de suborná-lo, ordena que sua empregada deixe dois frangos mortos sobre a sua mesa — justamente para ele, a quem animais não são mercadoria. Em outro momento, um padre questiona Don Gregorio sobre o fato de Moncho ter perdido o interesse pela religião depois de ter entrado na escola. A educação libertária representa um nítido incômodo aos tradicionais donos do poder. | Em um debate aberto na paróquia da escola, a maior parte dos pais dos alunos se insurge contra a nova política adotada pelo Padre McEnroe. Um deles o acusa de ser culpado por conscientizar seus filhos. Outro alega que as crianças pobres não fizeram por merecer a mesma educação que seus filhos recebem. A mãe de Gonzalo, por sua vez, afirma não ver sentido em misturar classes sociais. A educação inclusiva gera um nítido incômodo na classe favorecida. |
CENAS (II) | Na cena final, Moncho está cego de raiva. O xingamento ensandecido do menino, atirando pedras na direção do mestre enquanto este é levado na caçamba de um caminhão militar junto a outros presos políticos (“Ateu, comunista, tilonorrinco, trompa espiral…”) é uma cena que atinge o estatuto de clássica. Ele se ouve, para de correr e fica a olhar para Don Gregorio, que some de vista. Seus pais, cegos de medo, vituperam contra os presos, traindo-se a si mesmos para salvar a própria pele, mas há um estalo em Moncho, um indício de sua definitiva transformação. | Cego de raiva quando sua bicicleta é furtada por Pedro e sua prima, Gonzalo corre atrás deles e os chama de “pés-rapados”, contrariando sua amizade. Já no final, amedrontado, a resposta que dá ao soldado franquista que o confunde com um habitante da favela deixa o amigo Pedro paralisado: “Eu não sou daqui. Eu vivo do outro lado do rio”. Ao ouvir a reprimenda do soldado, “Não minta para mim”, ele então responde: “Olhe para mim”. Gonzalo e Pedro trocam olhares melancólicos. Eles não se verão mais. O mais rico foge envergonhado enquanto pedala, chorando, a sua bicicleta. |
FRASES | “O lobo nunca dormirá na mesma cama com o cordeiro.” | “Qual é a ideia de misturar peras com maçãs?” |
TEMA | O abismo de mentalidade. | O abismo de classe. |
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