“José, professor” — Capítulo 12: O mestre desconsolado

No capítulo 12, passando pelo filme "Vermelho como o céu" (2006), do italiano Cristiano Bortone, e pelo conto “Paul Bereyter”, segunda das quatro narrativas longas de "Os emigrantes" (1992), de W. G. Sebald, José e o narrador refletem sobre as tristes imagens de dois mestres inovadores em contextos reacionários.

Na imaginária reunião de grandes professores alocados em instituições reacionárias, que os cadernos de José vão montando, as anotações que percorro destacam um docente discreto e sensível. Trata-se de Dom Giulio, do italianoVermelho como o céu (2006), de Cristiano Bortone. Ele é o responsável por fazer o pequeno Mirco, que perdera a visão após disparar acidentalmente a espingarda de seu pai, enxergar através das palavras e pelos demais sentidos. O professor subverte as normas rígidas de um internato genovês ao deixar um antigo gravador com o menino. Esse simples gesto abre caminho para que a educação seja uma experiência deslumbrante. O gravador é uma ferramenta para que Mirco se eduque a si mesmo, sob a supervisão e com o estímulo do professor. José costuma dizer, em suas aulas, com as naturais variações que as diferentes ocasiões inspiram, que se aprender não te leva ao assombro, não te deixa boquiaberto, se você não espicha o pescoço para frente como que para compreender melhor, se não sente um frenesi diante das coisas, é porque ou os caminhos que te foram oferecidos não levam a isso, ou porque você está se recusando a percorrê-los. Mas o Instituto Cassoni, o único voltado para deficientes visuais na Itália dos anos setenta, está longe de representar uma fonte de estímulo aos seus alunos. 

Incomodado com os métodos que a instituição pratica, o professor interpela Constantina, a faxineira que trabalha ali há mais de trinta anos: “para que serve esta escola?”. Surpresa, ela lhe devolve a pergunta. Então, ele pondera: “Nós ensinamos essas crianças a empalhar cadeiras, a nos obedecer. Nos gabamos de formar grandes tecelões, operadores de máquinas. Mas sabe o que fazemos, de verdade? Roubamos o que eles têm de melhor nessa idade. Seus sonhos”. Indignado, Dom Giulio passa a garantir aos alunos o direito à fantasia. Esse é um momento-chave do filme porque, diante de uma ponderação dessas, Constantina o incita a confrontar o diretor. E não será apenas ele. “Abaixo o Diretor do Instituto Cassoni”, é o que se lê em uma das placas da manifestação de trabalhadores e estudantes contra os métodos coercitivos da escola e a segregação que ela representa. O filme, baseado na história real do engenheiro Mirco Mencacci, consegue refletir, no microcosmo de um internato, a realidade social de um país. Mirco e seus colegas não voltarão a enxergar. Ainda assim, pela coragem de seu professor, conseguirão, ao menos, que o mundo os enxergue. Mas e Dom Giulio? O que acontecerá consigo? Esse jovem professor traz no olhar, além do carinho pelos pupilos, a mesma melancolia profunda de Dom Gregorio, John Keating e, como já sabemos, José — como uma certeza de que ele acabará só. É essa tragédia constitutiva do professor como personagem que tanto intriga o nosso professor real. Esse algo a mais que o habita.

Rosso come il cielo (2006) – Vermelho como o céu, de Cristiano Bortone.

Uma semana depois de completar setenta e quatro anos, numa noite de 30 de dezembro de 1984, um ex-professor alemão de escola primária dava cabo à própria vida. Começa assim “Paul Bereyter”, a segunda das quatro narrativas que compõem Os emigrantes (1992), do escritor alemão W. G. Sebald. Seu narrador investigativo, alter ego de Sebald, segue os passos de Paul Bereyter na tentativa de descobrir o que o teria levado a se deitar sobre os trilhos de uma ferrovia. Vasculhando documentos e álbuns de fotografia do professor, o narrador revela o seu traço mais característico, isto é, o compromisso com o passado: “Realmente me pareceu e ainda me parece que os mortos retornam ou que estamos por nos encontrar com eles”. Seu contato com o professor ocorre nos anos trinta, quando o narrador fora seu aluno da terceira série, na qual o ingresso em muito lembra a primeira experiência escolar do pequeno Moncho, de A língua das mariposas. Assim como Dom Gregório, Bereyter é acolhedor com o aluno recém-chegado. Em vez de dar ordens, prefere lhe dizer, para que a turma ouça, que justamente na véspera ele lhes havia contado a lenda do cervo saltador, e que a presença de Paul era a oportunidade de copiar no quadro-negro o desenho do seu suéter verde-escuro, estampado com o mesmo animalzinho. “A empatia entre professor e aluno”, anota José, “tão frequentemente vista com apreensão em diferentes contextos, é, na verdade, uma condição para o aprendizado duradouro”. É significativo que Bereyter jamais tenha subido ao púlpito, situado no canto oposto ao da porta de entrada da sala, o que o posicionaria num ângulo de visão superior e distanciado dos alunos. Em resposta a seu draconiano antecessor, que os castigava severamente e que mandara pintar as janelas da sala de aula até a meia altura para que as crianças não pudessem olhar para fora, Paul fez questão de raspar a tinta com uma lâmina. Sua intenção é arejar as mentes dos meninos com lições que, nessa fase, cobriam da tabuada às ciências naturais, da escrita em alemão, francês e latim à música e educação física. Apenas as aulas de religião não eram dadas por ele, o qual, a exemplo de Dom Gregorio, embora acreditasse em Deus, desprezava a Igreja Católica, os livros didáticos e, do mesmo modo que Holden, Kepesh e José, tinha horror à hipocrisia. Assim como Dom Gregorio, Bereyter dá lições práticas. Ele excursiona em grupo pelo campo para entender a fauna e a botânica, mas sobretudo para educar o olhar. É o que Paul chama de “aulas de observação”. Mas à meia distância dos alunos, não é difícil surpreender o professor distraído e distante, qual um mestre desconsolado.

Die Ausgewanderten: Vier Lange Erzahlungen (1992) – Os Emigrantes, de W. G. Sebald. 

Para Lucy Landau, que cuidara do enterro de Paul no cemitério local, e a quem o narrador inicia uma série de visitas, o antigo professor, “praticamente devorado pela solidão interior, era o mais solícito e divertido companheiro”. As investigações do narrador dão resultado. Ficamos sabendo que, já no início de sua carreira, Paul vê a bela e independente Helen Hollaender, cujas fotos revelam um afeto correspondido, ser deportada com a mãe para o campo de concentração de Theresienstadt, na República Tcheca. Em setembro de 1935, ainda se adaptando ao seu primeiro emprego regular, o vocacionado professor é impedido de dar aulas “por motivo de prescrições legais que ele conhecia”. Muda-se, então, para a França, onde, constrangido com a própria condição, dá aulas particulares em Besançon e na Basileia. A permanência de um professor alemão na França às vésperas da 2ª. Guerra só poderia ser uma medida de curta duração. Paul retorna à Alemanha e, numa atitude vista por madame Landau como “uma aberração”, alista-se e é readmitido como professor. 

Em seus cadernos de anotações, estudados atentamente pelo narrador, Paul revela grande interesse por escritores que se haviam suicidado. Com a visão cada vez mais fraca, o professor passa os dias em arquivos e toma notas a respeito dos assassinatos de judeus na bela Gunzenhausen, em 1934. Em uma das anotações, mostra-se horrorizado com a notícia capciosa de que, ao longo de semanas, os colegiais da pequena cidade na Baviera passaram “a se servir gratuitamente”, isto é, a saquear as lojas arruinadas dos judeus mortos. “Essa passagem”, é José quem anota, “tira o fôlego de Bereyter porque coloca justamente os estudantes, que estão em posição de aprendizado, como beneficiários da pilhagem e dos homicídios de seus conterrâneos. Ela os situa como legatários do Terceiro Reich”. Mais do que a escola em si, a sua época como um todo é uma panela de pressão sobre o professor.

O narrador lembra-se, então, das tantas vezes em que o jovem professor desenhara no quadro-negro “estações de trem, trilhos, guaritas, armazéns e sinais”, que os alunos tinham que reproduzir com precisão em seus cadernos escolares. Desde pequeno, a ferrovia exercera um verdadeiro fascínio sobre ele. Paul contara a madame Landau que, durante as férias, ele passava horas observando “os trens rolarem do continente para a ilha, da ilha para o continente”. Numa ocasião, ao ver o sobrinho chegar da estação de trem novamente atrasado para o almoço, sua tia comentou, irrefletidamente, que um dia ele ainda iria acabar na ferrovia.

Imagem reproduzida no conto “Paul Bereyter”, de Os Emigrantes, de W. G. Sebald.

No caderno que venho consultando, em duas páginas, frente e verso, José tece comentários rápidos sobre uma série de filmes. Parte desse material permanece indecifrável. Entre o que fui capaz de transcrever está Ser e ter (2002), de Nicolas Philibert, que meu colega qualifica como “um documentário terno” e cujo ofício do professor, Georges Lopez, nome destacado no centro de um retângulo desenhado em negrito, ele considera um “ato de amor”. A respeito de Dentro da casa (2013), de François Ozon, há apenas duas palavras, “perturbador” e “voyeurismo”. O título Entre os muros da escola (2008), de Laurent Cantet, é reproduzido sem qualquer indicação. Solto, à margem esquerda da página, José anotou O substituto (2012), de Tony Kaye, também sem comentar. No canto superior esquerdo da folha, ele desenha um círculo com uma linha sinuosa no centro. Concluo, com o passar do tempo e certa carga imaginativa, que se trate do corpo e da tromba de um elefante, o que pode ser uma referência a Elefante (2003), de Gus Van Sant, já que logo abaixo do desenho há a palavra, de difícil discernimento, “Columbia”, que pode ser, por sua vez, uma referência ao massacre de Columbine, no qual o filme foi inspirado. Essa é a única hipótese que me ocorre. Há duas palavras alinhadas verticalmente a respeito de Adeus, meninos (1987), de Louis Malle. A primeira dou por ilegível. A segunda é, possivelmente, uma expressão em francês, provavelmente “petit chanteur”. Na página de trás, “M.Z” poderá ser a abreviação para Monsieur Lazhar (2011), de Philippe Falardeau, ilustrado com uma cruz, com que José deve ter indicado o motivo pelo qual o professor substituiu a antiga professora. Novamente, é difícil ter certezas.

Capa de um dos cadernos italianos, Il Fiorino, de José.

Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi

Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.

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