O nó górdio de José
Como se pode imaginar, José nem sempre foi professor. É recomendável que voltemos no tempo. Quem não passou por um trauma de infância, que atire a primeira pedra. José não é uma pessoa traumatizada, não chega a tanto, mas sofreu alguns choques até aqui, e parte deles deve ter relação com os seus atuais padecimentos. Levá-lo a um terapeuta ajudaria, mas ele é teimoso. Embora não fosse o tipo repetidamente tiranizado pelos valentões da escola, José foi um menino gordo. Apesar de seu físico, José nadava bem e se classificou para a final de um torneio de natação com patrocínio de uma marca de sorvetes e cobertura de uma estação de rádio. Seus progenitores o deixaram na porta do vestiário do estádio e se dirigiram para a arquibancada. Era um dia ensolarado. Eles sabiam que o menino não era nenhum esportista e que acompanhá-lo era uma obrigação ocasional, uma tarefa que dificilmente se tornaria rotina. As proporções intimidadoras do lugar, o grande público e a presença da mídia geravam tensão. Os pais de José ouviam outros adultos gritando frases de incentivo a seus postulantes a atletas. Os pais de José se considerariam ridículos se tivessem a mesma atitude que os colegas de arquibancada. Enquanto isso, na intimidade do vestiário, naquele espaço mal reservado em que o pequeno José depende apenas de si para se trocar, seus guardiões não poderiam imaginar que os dedos rechonchudos do tímido rebento se atrapalhariam até o ponto de atar um formidável nó cego — dir-se-ia um nó górdio, que, ao contrário de José, Alexandre cortou, por não o poder desatar — na sunga de natação. E isso um momento antes que ele fosse anunciado pelos alto-falantes. A essa altura não havia mais o que fazer. Restou a José apostar que tudo ficaria bem. Foi subirem na plataforma de saltos, José e o nó, para que o menino entendesse que algo estava prestes a dar errado.
“Em suas marcas” — o comando ressoou como um mau presságio para o nosso nadador, pateticamente curvado sobre o totem de concreto. O tiro de largada, que, evidentemente, não é um tiro, mas que assim se convencionou chamar, lançou quase simultaneamente os oito concorrentes na água. Uma agitada espuma branca tomou conta do azul enquanto os meninos desapareciam, como num sonho feliz, das vistas de seus ansiosos parentes. A fluidez do corpo, envolvido pelo líquido, avançando rapidamente como uma flecha submersa, é das sensações prediletas de José. Não é raro que ele a evoque ao se deitar, e a faça perdurar para além dos dois ou três segundos que se levam até o corpo emergir, como uma estratégia para pegar no sono. Que pesadelo deve ter sido para aquela inexperiente criança a percepção de que, além da água e das inúmeras bolhas de ar que se formaram imediatamente após o mergulho, algo, digamos, palpável percorreu o seu corpo, mais precisamente da cintura até as canelas, durante esses segundos de êxtase subaquático. O nó cego teria o seu preço na vida de José. Visto do alto, se houvesse um drone captando a performance do nosso roliço nadador, e ele se pareceria com uma minhoca se retorcendo lateralmente, uma lombriga convulsionada procurando disfarçar com angustiantes braçadas a vã tentativa de repor a sunga ao seu devido lugar. O componente burlesco desse espalhafatoso nado é um tormento na imaginação de José, que, não podendo se ver, imagina-se, ainda hoje, passados mais de quarenta anos do ocorrido, com as adiposas nádegas à mostra, agitando-se para uma arquibancada boquiaberta até que os infindáveis cinquenta metros fossem finalmente vencidos. José ainda pode sentir o silêncio tumular que o esmagara contra o banco de trás da Caravan durante o caminho de volta para casa — a ausência de palavras é, por vezes, mais expressiva do que qualquer sentença. Talvez seja por isso que o nosso professor não entre em sala de aula sem, antes, fazer uma autoinspeção em frente ao espelho do banheiro. Talvez seja por esse motivo que ele tenha adquirido o mau hábito de checar a braguilha da calça diversas vezes ao longo das aulas. Talvez se deva a essa infeliz proeza o fato de José, apesar de professor, ter tanto medo do ridículo.

A dura casca da solidão
A infância de uma criança risonha marcada por uma felicidade com alguns tropeços não prenuncia, na biografia de José, o honesto pacto com a solidão em que se resume a sua fase adulta. Alegria cansa. Numa contabilidade rápida de sua adolescência, ela havia sido responsável por lhe roubar a doçura da voz, por lhe ensinar a ternura secreta pelo mundo, mais aquele sorriso duro, como se uma pedra sorrisse. Sua juventude pouco se distancia da fase adulta, a não ser por ter sido este o momento em que, finalmente, José garantiu o próprio sustento. Apesar da presença dos alunos, José arranha, pelo menos desde que entrou na universidade, a dura casca da solidão. Somados os prós e os contras, estamos diante de um homem disposto a morrer de velhice, não sem antes pegar um trem para a imaginária Macondo, soltar um arroto vulcânico à la Aureliano Buendía e terminar essa história em Comala, lugar onde a morte chega como uma música do passado, acompanhado de uma vez por todas aquelas vozes que nunca deveriam ter se calado.
O gás do riso
Estamos de volta ao homem adulto, que isto não é uma sessão de terapia. Um dos nós cegos no cotidiano de José, que ele não é capaz de desatar tampouco de cortar, é, na verdade, uma ideia fixa, a mania que seus conterrâneos têm de festejar. Por que nós festejamos tanto? José sai de férias. Eis nosso professor em uma bonita praia num dia de sol. Ele espera se reconectar à natureza e, quem sabe, consigo mesmo. Os pés descalços na areia, o vento quente alisando o peito descoberto, o mergulho refrescante, o sol beliscando a pele salgada, a visão de um coqueiro e o azul do mar. José economizou durante meses para que pudesse aproveitar os poucos dias que lhe restaram distante da cidade grande. Em alguns minutos, de volta ao providencial guarda-sol, ele cogita mudar de lugar. Ele está sozinho? Não sejamos indiscretos. Os vizinhos de guarda-sol trouxeram uma caixa de som portátil. É a época das caixas de som portáteis no difícil país de José. O estilo musical e o volume desagradam. Trouxeram também uma churrasqueira portátil. Suas risadas são bradadas aos quatro ventos. José muda de lugar. Horas depois, durante o passeio de escuna — José não pôde evitar a escuna —, a contemplação da paisagem concorre com o ritmo frenético da música, em desacordo com o embalo do barco. Um dos tripulantes, ao passar pelo contemplativo turista, mas sem olhar diretamente para ele, procura estimulá-lo: “vamos lá, animação!” Sem se levantar, o professor sorri discretamente. Quatro horas depois, na pousada em que ele está hospedado, a piscina foi tomada por uma aula de dança aquática e o caraoquê do andar térreo impede que José, já deitado em sua confortável cama, consiga pensar em qualquer outra coisa que não seja o refrão interminável da música que parece tocar sem parar. Finalmente nosso turista dorme, esgotado.
Há um estranho produto chamado “gás do riso”. Trata-se do óxido nitroso, uma substância com efeito anestésico que aumenta a tolerância à dor e tem, em muitos países, aplicabilidade médica. Um dos seus principais efeitos colaterais é o riso. Ao ser inalada, a substância de sabor agradavelmente doce atua no córtex cerebral, inibindo a ansiedade, o medo e a autocensura. Nos últimos anos tem aumentado o número de óbitos de jovens que passaram a consumir essa droga hilariante. Os danos cerebrais causados durante algumas semanas de inalação repetida dessa substância equivalem ao efeito do álcool sobre um alcoólatra ao longo de décadas. Proibidos no Reino Unido desde 2015, cilindros de óxido nitroso podem ser encontrados em lojas online sem restrição. Viciados literalmente morreram de rir. Uma overdose de riso. Mas se José desse algumas inaladas nesse milagroso gás, se ele fosse capaz de se impor um limite, não resta dúvida de que aproveitaria muito mais a sua viagem de férias.
Nós não temos tantos motivos para festejar. Quando José pensa em sua vida, na vida daqueles que o cercam, nas vidas noticiadas pelos jornais e, sobretudo, das personagens que habitam a sua vida, encontra quase só motivos para lamentar. Mas José é um espírito tristonho. Ele desconhece aquela vibração que nos faz sentir vivos e onipotentes. A festa nunca termina, José. O riso, tal como o praticamos obsessivamente, é uma invenção recente: a gargalhada em meio à desgraça. É um riso sem sentido e compensatório. Ao invés de chorar, rimos. E seguimos em frente, sem um horizonte em vista, de início com passadas vacilantes, depois apressadas, quase ansiosas, mas sempre rindo. Outras pessoas se aproximam de nós. Por que é que estão rindo, afinal? Não chegam a fazer essa pergunta, apenas seus olhares se entrecruzam por uma fração de segundos. Mas já a essa altura, sem saber por quê, sem manifestar aquele indício de hesitação em palavras, andam lado a lado, e o mais bonito, rindo igualmente de tudo, em alto e bom som. Matamos o verdadeiro riso, pensa José. O riso que rimos é outra coisa, ainda que o chamemos do mesmo modo. José é um homem fora de seu tempo. Não porque não sofra os males de sua época. José se aflige, tem medo. Mas ele reage mal. Desconhece o efeito de atração que um homem sorridente pode exercer sobre os demais, esse estilo leve e airoso que agrada tanto. José ficou para trás. Ele ainda tenta compreender o mundo em que vive. E sorri, sim, José sabe sorrir, mas como uma criança que sorri para si. O riso de José é singelo e natural. Um riso que não contamina e que, para falar a verdade, nem pega bem para um adulto.
Com um galho de sucupira
Na universidade, semestre novo, vida nova. Mas não é assim. José encontra colegas com um mesmo ar cansado. Não foi um, não foram dois. José teve a impressão de que a maioria deles estava exausta. Será que eles foram para a praia, andaram de escuna e se hospedaram em pousadas com caraoquê e dança aquática? Burnout é o termo em inglês para esgotamento, normalmente referido como uma síndrome relacionada ao trabalho. É comum que um professor sofra de estresse. Mas em seu caso, não é o trabalho em si, e sim aquilo que o impede de trabalhar o que realmente drena as suas energias. Essa distinção é importante para se entender o seu drama. Um professor prostrado no final do dia é, geralmente, um profissional empatado, impossibilitado de exercer a sua profissão, que não é a de bedel, fiscal ou censor. Passar o dia falando com as paredes e repreendendo crianças, ou adultos com mentalidade de crianças, infantiliza o caráter e embota o raciocínio. Por outro lado, gastar parte do tempo útil preenchendo formulários e redigindo relatórios automatiza o raciocínio e estimula a burocracia. José foge da papelocracia — palavra saborosamente obsoleta em tempos digitais —, esforça-se para desgrudar o queixo do peito e afirmar para si mesmo que homens não reagem como gado. José não é bovino, mas os longos braços de um ministério que paira como uma nuvem gorda e cinza sobre ele e os seus colegas pressiona suas cabeças para baixo com pesadas mãos de ferro. Marchem! E eles avançam em fila indiana, venda nos olhos e um mugido melancolicamente orgulhoso rumo ao precipício. Não se pense que não haja prazer envolvido nessa prática submissa. Sabemos o quão sofisticada é a capacidade de gozar o sofrimento físico ou mental. Sadismo de uns, masoquismo de outros. Há ainda as doenças emocionais, a angústia dilacerante e os distúrbios psíquicos, males que são capazes de levar indivíduos a buscar na dor física um desvio à dor psíquica. É o que explica a automutilação, sujeitos que se cortam, queimam-se, golpeiam o próprio corpo seja com os punhos, seja, quem sabe até, com um galho de sucupira. Esse é, no entanto, um prazer secreto, o gozo proveniente do martírio é sempre disfarçado de um discurso vitimista e de menoscabo da tarefa. Maldito ministério. Das razões secretas de seus acarpetados gabinetes saem os ditames de uma nova ordem educacional, instruções que se contradizem a cada gestão, como prescrições medicinais que se desmentem para salvar a vida de um doente acamado ou um apostolado para a redenção da alma. José não aceita, não é excêntrico a ponto de abaixar a cabeça. Considera que esse é um estratagema para mantê-lo à distância dos livros. José é teimoso, e só de pirraça afirma preferir os romances aos formulários. Vem de família esse seu gosto pela subversão. José passou a ser visto com maus olhos por alguns colegas que afirmam sofrer de burnout. Esse aí não trabalha, considera o colega estafado, sempre correndo, sem tempo e atrasado. Bem se vê que José vem arruinando a sua reputação para não se tornar um homem sem sentido.

O humor judeu e a condição de professor
José não é do tipo que se ofende com facilidade. Na verdade, ele é muito bem-humorado. E persistirá com as suas leituras apesar dos pesares. O humor de José tem as suas peculiaridades, bem sabemos. Um traço característico seu é o que se costuma identificar como sendo próprio do espirituosismo judeu. O que tem a ver o humor judeu com a condição do professor? O humor judeu não deve ser confundido com piadas sobre judeus, quase sempre de mau gosto e formuladas por não judeus. O humor judeu serviu e serve como resistência às pequenas perseguições cotidianas. O seu traço mais sagaz é a autoderrisão, que só se atinge com inteligência, indulgência e ternura.
Um judeu encontra num café um de seus amigos lendo Der Stümer, um jornal violentamente antissemita. “Como você pode ler um horror desses?”, ele lhe pergunta, indignado. Ao que o amigo responde: “Quando eu leio um jornal judeu, só encontro notícias tristes e catástrofes. Por todo lado antissemitismo, perseguições; portas que se fecham aos judeus que querem deixar o país. Nestes jornais, pelo contrário, eu descubro que nós dominamos o mundo, que temos em nossas mãos os bancos, as finanças, a imprensa. É reconfortante!” Eis uma anedota da qual se ri para não chorar.
Quando penso em José, não me causa estranheza que ele não se canse da realidade. O que verdadeiramente me espanta é que a realidade não se canse dele.