Uma atitude reprovável
Às vezes, quando entra na sala de aula, José apoia, de passagem, a mão no ombro de algum aluno. É uma atitude reprovável? Ele nunca pensou que pudesse ser, mas nos dias de hoje todo gesto é passível de condenação. O exame da moral alheia é um passatempo irresistível, e sua exposição pública, uma consequência imediata. Ainda assim, José não imaginava como algo tão banal pudesse ser repreensível. Se o fizer numa reunião, com um colega, receberá um sorriso como recompensa. Mas em se tratando de um professor e um aluno, todo cuidado é pouco. José já foi aluno e acolheu gestos semelhantes como um presente. Esse aperitivo de calor humano vindo de um professor quase sempre produziu em si, em seguida ao ar de surpresa, uma profunda gratidão. É assim com os seus alunos que foram sorteados pelo acaso de receberem, por alguns décimos de segundo, o toque de sua mão sobre o ombro. Depois ele repara que o mesmo aluno parece prestar mais atenção à aula, embora essa possa ser uma impressão sugestionada. A verdade é que alguns deles até se oferecem para ler o texto que irão analisar ou tomam coragem para esclarecer uma ou outra dúvida no final da aula. Esse inofensivo toque tem o poder de despertá-los, de tirá-los das sombras da invisibilidade coletiva. José sempre viu com bons olhos essa sutil troca de atenções, embora nunca tenha refletido, como agora, a seu respeito. Entre rapazes e garotas, ele nunca escolhe o alvo. Às vezes nem sabe quem é o dito ou a dita cuja; apenas caminha pela sala e o braço direito se estica como um galho que pende com o próprio peso na direção do primeiro ombro que encontra no caminho. É um breve apoio, com a duração de um passo, enquanto ele caminha. José só evita o gesto quando se trata de um ombro nu, porque não quer que o levem a mal. Mas eis o problema. Isso pode ser mal interpretado.
O professor Adalberto Prachedes passou por algo similar. O título da peça de Chico Carvalho é o mais inusitado, Pequena ladainha anti-dramática para a reunião de emergência dos catedráticos do Instituto Feitosa Bulhões, a excelência do ensino em mais de cinco décadas de funcionamento (2018). José está bem acomodado na terceira fileira de uma pequena sala de teatro. No palco à sua frente, Prachedes é convocado para uma reunião de emergência pelo corpo administrativo de seu respeitado instituto de ensino, então notificado pela Secretaria de Ensino do Município por comportamento inadequado de um docente em sala de aula. A aluna Ludmilla Stefanno acusa-o formalmente de ter tamborilado os dedos em suas costas durante uma inspeção de rotina pela sala enquanto os alunos realizavam uma prova semestral. É verdade que não ocorreria a José repetir o gesto de Prachedes, seja porque essas três pancadinhas leves e quase simultâneas das gemas dos dedos só lhe parecem fazer sentido quando amparadas por um objeto sólido, como uma mesa ou as teclas de um piano, seja porque, por outro lado, o tamborilar dos dedos nas costas de alguém pode provocar arrepio, o que seria uma reação imprevista para o autor do ato. Afora esses senões, muito relativos e de ordem subjetiva, José considera inócua a atitude do professor Prachedes. O corpo administrativo do Instituto Feitosa Bulhões é composto apenas por mulheres. Dra. Neusa, a diretora, Dona Soraia, a secretária pedagógica, e Dona Eneida, a auxiliar administrativa. Em torno de uma mesa retangular, as três sabatinam o surpreso professor com a banalidade de um ato que ele alega não se lembrar de ter cometido. A essa altura, José, acomodado, ou melhor, incomodado em sua poltrona, sente-se como o bancário Joseph K. sendo acordado, no dia do seu trigésimo aniversário, por dois inspetores de justiça, sem entender qual foi o crime que cometeu. José esfrega as mãos nervosamente. Com os joelhos colados um ao outro e o dorso inclinado para frente, ele está enovelado pelas malhas que sufocam Prachedes. As três mulheres são graves e protocolares, mas de uma seriedade cômica para quem não vive a história. Elas não têm dúvidas sobre a veracidade da denúncia; seu interesse recai sobre o motivo que teria levado o professor a consumar tal atitude e em fazê-lo assinar um pedido formal de retratação pública. Acuado, o réu não tem armas para se defender diante da auditagem moral a que é submetido. A sua culpa é, de antemão, um dado. Ela já lhe foi imputada. E então coagem Prachedes, títere em suas habilidosas mãos — mãos que não brincam em serviço —, a assinar um texto já redigido, em que ele se desculpa publicamente. Mãos que o convencem a se arrepender do que não fez.
José deixa o teatro considerando ser mais precavido a partir de agora.
Prachedes ou Praxedes vem do grego, significa “aquele que trabalha muito”. Adalberto carrega como raiz “berth”, do alemão, “ilustre”, e o prefixo “Adal”, “nobre”. Quanta retidão de caráter! Sem ironia, José preferiria não estar na pele de Prachedes. Mas como qualquer professor, ele não está imune a isso, e Prachedes não está sozinho. Ele é a personagem-alvo de uma paranoia comum em nossos dias. Uma paranoia que envolve, justamente, a figura do professor.
José se sente sufocado. Se o foco da peça de Chico Carvalho recaísse sobre Ludmilla, e não sobre o corpo administrativo do Instituto Feitosa Bulhões, ela seria bem representada como Carol, a universitária histérica e aplicada em Oleanna (1994), de David Mamet. Ao se sentir frustrada com a nota recebida em sua avaliação, a estudante surpreende John em seu gabinete. Ela repete ao professor que não entende as discussões realizadas durante as aulas, tampouco as ideias centrais de seu livro. Após certo descaso inicial, alimentado pela pressa de chegar a um compromisso em sua casa, o professor passa a lhe dar atenção, com a justificativa de ter se identificado com ela, e realiza um gesto condenável: ele apoia a mão em seu ombro. Em Oleanna, as personagens falam sem parar, interrompem-se mutuamente e são interrompidas a todo momento pelo telefone. Como resultado, elas são incapazes de se comunicar. Justamente o telefone, que surgiu para facilitar a comunicação, é o seu fator impeditivo. No encontro seguinte, a estudante informará ao confuso docente a sua decisão de acusá-lo de assédio sexual. Carol pode não ter a sagacidade de alguns de seus colegas para o pensamento filosófico, mas o seu oportunismo para enredar o professor nas malhas do politicamente correto é surpreendente. Enquanto John perde o controle na tela da pequena TV situada a poucos metros de nosso espectador, José repassa mentalmente as suas reuniões com alunas e alunos que receberam notas baixas em seus cursos, avaliando o risco que correu. De 1994 para cá, muitas trincheiras foram abertas nas universidades. Por vezes, elas são cavadas tão fundo que os combatentes se tornam incapazes de ver ou mesmo ouvir o que se passa para além das barricadas. José ouviu histórias similares às de John pelos corredores da faculdade, sem dar muito ouvidos a elas. Agora, diante do colega acuado, ele não se surpreenderia se, nos dias de hoje, a oportunista Carol fosse enaltecida como uma heroína.
“David Lurie é um esnobe”, José anota em seu caderno. Quem leu Desonra (1999), de J. M. Coetzee, deve se lembrar de que Lurie é um homem em frangalhos. Ele é demitido da Universidade Técnica da Cidade do Cabo depois que uma aluna, Melanie Isaacs, o acusara de abuso sexual. José considera que o crime de Lurie é um dado mais evidente nos dias de hoje do que no final do século passado, quando o romance foi publicado: a ausência de luta corporal não significa consentimento. Uma jovem pode ficar chocada com a ousadia de um professor, que não é simplesmente um homem trinta anos mais velho do que ela, mas também uma referência intelectual para si, e, uma vez que ela esteja enleada, desnorteada, ser incapaz de uma reação contundente. É obrigação dele, pondera José, perceber a perplexidade dela, os muitos sinais de resistência, que são anteriores ao corpo inerte em seus braços ou aos lábios cerrados durante um beijo. O silêncio de Melanie ou o olhar desviando na direção contrária ao de Lurie deveriam bastar. Para José, o problema não é o fato de Melanie ser mais nova do que a própria filha de Lurie, nem pode ser a paixão ou a atração entre um professor e uma universitária — que ambos, humanos antes de tudo, estão sujeitos a isso —, mas justamente a ausência de passionalidade, a falta de atenção, zelo e, eis o ponto, desejo. José não aceita que se discuta o tema segundo o critério do consentimento. Ela consentiu ou não consentiu? Eis a dúvida cruel dos delegados e juízes diante de acusações de abuso sexual. No lugar disso, deveriam se perguntar se ela tomou algum tipo de iniciativa, por exemplo. A seu ver, o consentimento não basta para se escapar à acusação de abuso. “Só o desejo mútuo legitima o sexo”, é o que José anota à margem de uma das páginas de sua edição.
Mas ele tampouco simpatiza com o estilo de Coetzee. Alguns anos depois de ter feito essa leitura, a eleição do sul-africano para o prêmio Nobel de Literatura fez José menear a cabeça em sinal de reprovação. Se disséssemos ao meu colega, no entanto, que ele é tão econômico quanto Coetzee e que, quando o assunto é sentimental, a sua incomunicabilidade é desastrosa, ele certamente se chatearia. Por vezes, é irritante nos enxergarmos nos outros. Ao ler a notícia de que a Academia sueca havia premiado Peter Handke, um José descrente no mundo e no senso de justiça dos homens, que de cegos teriam se tornado loucos, passou a considerar plausível a obra de Coetzee. O mundo dá voltas, ele me diz com um sorriso penitente. Todas as relações humanas em Desonra são tensas, desarmônicas e, decerto, são aquelas permeadas pelo conflito racial pós-apartheid as que tendem a perturbar o seu leitor. A partir da mudança de Lurie para a fazenda onde sua filha, Lucy, vive sozinha, a violência social passa a ser o novo fator disruptivo do romance. Mas sem deixar de estar chocado com o que se sucederá com Lucy e David, José foi fisgado pelo momento inicial da narrativa, aquele deslize que define o destino profissional e humano de Lurie. O professor se assume culpado e deixa a Cidade do Cabo, embora se recuse a pedir desculpas publicamente, contrariando seus pares, que, uma vez no papel de juízes, o conduzem à humilhação. Lurie não se dobra, ele rejeita o enquadramento das câmeras, não admite o julgamento dos moralistas de sofá — aqueles que, por temerem a realidade, tratam-na de uma distância segura —, muito menos aceita ter a sua vida privada convertida em um degradante espetáculo público. José espera jamais ser julgado pelos “seus pares”. Chamem os torturadores de uma vez, ao menos eles me pouparão de sua hipocrisia, é o que afirma ao retomarmos o texto. Há uma frase de José que define a sua resistência ao mundo em que vive: a situação é absurda a tal ponto que a sua exoneração é mais digna do que a retratação. É muito difícil passar ileso pelas desgraças que se sucedem ao longo de uma vida tão sombria. José só não quer admitir que leu um bom romance.
Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi
Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.