Os “Spooks” de Coleman Silk
A conformidade com a realidade não é algo fácil de aferir. Ser ou não verdade não depende apenas do que aconteceu ou deixou de acontecer, mas, muitas vezes, da pureza de intenções. A presença ou ausência de má fé é igualmente um fator chave para avaliar a culpa. Coleman Silk, professor de Letras Clássicas de uma fictícia universidade do interior dos EUA, disse “spooks”, assombrações, referindo-se a dois alunos sempre ausentes de suas aulas. Já era a sexta semana quando a pergunta foi feita nos seguintes termos: “Alguém conhece essas pessoas? Eles existem mesmo ou será que são spooks?”. No mesmo dia, Coleman fica sabendo, através do Professor Decano da faculdade — cargo, aliás, a que ele próprio renunciara para que pudesse encerrar a carreira como pretendia, isto é, em sala de aula —, que foi acusado de racismo pelos dois ausentes. O antigo professor não podia imaginar que se tratasse de alunos pretos, e o termo ganhou um sentido pejorativo nos ouvidos de ambos. Como se não bastasse, uma jovem professora feminista, Delphine Roux, que, apesar de francesa, representa a austeridade com que a sociedade americana passara a tratar temas raciais e sexuais na segunda metade do século passado, põe mais lenha nessa fogueira. Não leva muito tempo para que as hesitações de Coleman, ao contratá-la, se justifiquem: ele rapidamente se torna o alvo predileto de seu puritanismo calculado. A ira de Roux chega ao ponto de fazê-la dirigir acusações anônimas ao colega mais velho, quando este, após perder sua esposa para um derrame, envolve-se com uma faxineira aparentemente analfabeta. A essa altura de nossa conversa, José ri do absurdo que é julgar a vida íntima de alguém, considera belo o envolvimento entre Coleman e Faunia Farley, que ultrapassa as fronteiras culturais e sociais, e, em seguida, apaga o próprio sorriso do rosto ao se lembrar das consequências, para o destino político daquele país, de um blowjob na Sala Oval da Casa Branca. Fosse no torrão natal de José, a maior parte da população ovacionaria a pulada de cerca do presidente, tanto faria que ele se chamasse Bill Clinton ou Itamar Franco.
A ironia trágica do romance está na marca que o próprio Coleman carrega em sua pele, por ter omitido sua origem negra quando se alistou na marinha americana, e por ter inventado uma ascendência judaica para si. Muitos colegas de José considerariam Coleman racista, alguém que escolheu ser branco (como a seda, Silk), que recusou o seu percentual de sangue negro. No entanto, pondera José, ele não pode ser punido por negar uma herança: Que tipo de preconceito é esse? Coleman cresceu antes dos movimentos pelos direitos civis, vendo seu pai ser preterido por empregadores devido à cor de sua pele. Rotulá-lo de racista é absolver o racismo institucional, como aquele que está presente nas universidades americanas dos meados do século XX, nas quais os professores negros são uma raridade exótica. Ele é, antes, um herói trágico. A tragédia, prossegue José, é sempre um relato prescrito, uma narrativa com desfecho anunciado, que, por mais que se faça, não se pode alterar. A história de Coleman, como a de Édipo ou das personagens de Eurípedes — autor que consta do programa do velho professor Silk —, estava escrita, e ele não escapará ao seu destino. Fundamentalmente individualista se considerado à luz de seu passado familiar — aquelas décadas que decidiu apagar de sua biografia –, Coleman não pode ser condenado por escolher a vida que quis levar e optar por ser julgado apenas pelas próprias capacidades. Mas isso se tornou impossível devido a um pequeno deslize lexical. Uma palavrinha de nada que acordou os moralistas espalhafatosos de plantão, loucos para acusar, deplorar e punir, enfatiza José, cada um querendo ser mais indignado do que o outro. Todos, agora, olhando para ele como a ovelha desgarrada do rebanho, fazendo piadas a seu respeito e usando-o como mau exemplo para seus filhos.
O diagnóstico social de Nathan Zuckerman, o narrador imaginário deste e outros romances do autor, é cortante: “Nos Estados Unidos, foi o verão em que a náusea voltou, em que as piadas não paravam, em que as especulações e teorizações e hipérboles não cessavam, em que a obrigação moral de explicar aos filhos como é a vida adulta foi ab-rogada em nome da necessidade de conservar-lhes todas as ilusões a respeito do assunto, em que a pequenez das pessoas tornou-se esmagadora, em que uma espécie de demônio andava à solta por toda a nação e em que as pessoas, tanto as pró como as contra, se perguntavam: ´Por que somos tão malucos?´; em que homens e mulheres, quando acordavam de manhã, constatavam que, durante a noite, num estado de sono que os levara além do alcance da inveja e da repulsa, haviam sonhado com a desfaçatez de Bill Clinton.” O cargo de Coleman na universidade não resiste ao espírito de perseguição que tomou conta da cultura americana dos anos 1990. Na noite em que terminou de ler A marca humana (2000), de Philip Roth, José teve sonhos confusos, impossíveis de serem recuperados, envolvendo Monica Lewinsky, hoje uma ativista contra o cyberbullying, e o mega astro despigmentado, Michael Jackson.
David Kepesh e a tentação
O primeiro substantivo de Professor do desejo (2013), de Philip Roth, é “tentação”: “A tentação me vem de início na figura notável de Herbie…”. Eu proponho a José que selecionemos as nossas passagens prediletas no romance. Para mim, um jogo infantil como esse é condizente com as imitações e as simulações vocais que o exibicionista Herbie é capaz de fazer, por exemplo, de um sujeito defecando. Herbie é o diretor social, chefe de orquestra, crooner, cômico e mestre de cerimônias do Hungarian Royale Hotel, cujo proprietário é o pai do professor universitário de origem judaica David Kepesh. Kepesh exemplifica um procedimento comum às personagens de Roth. Ele as transforma num campo de batalha entre os instintos primitivos e o comportamento civilizado, José sentencia. Eu logo me recordo de uma cena em que uma ex-prostituta tcheca mostra deliberadamente a xoxota para Kepesh, o mesmo órgão com o qual ela teria consolado o jovem Kafka em sua Praga obscura. A primeira xoxota patrimônio da humanidade, considera José. Depois de nos divertirmos com outras passagens — afinal, esse é um romance feito para provocar risos —, fechamos em uma cada um; nada cômicas, no entanto.
A minha é um trecho da aula de apresentação que Kepesh escreve num café de Praga, onde ele está seguindo os passos de Kafka, devidamente acompanhado de Claire, que dorme no hotel. O mesmo café, aliás, onde ele acabou de pagar dois conhaques para duas prostitutas a algumas mesas de distância. Nos anos setenta, a maior parte das prostitutas de Praga era composta por secretárias e vendedoras de lojas que faziam esse nobiliárquico bico com a conivência do governo. Elas sorriem tentadoramente para Kepesh, que lhes retribui. Nessa aula imaginária, ele procura apresentar uma visão despoluída da literatura, desintoxicada de crítica literária, e aproximá-la da experiência pessoal, o que me agrada especialmente. Ele tratará de romances que revelem a história do desejo. E não há nada mais pessoal do que a história do desejo do professor. Kepesh refere-se às três maiores obras sobre o desejo proibido, Madame Bovary, Anna Kariênina e Morte em Veneza, seleção com a qual, de imediato, concordamos, sem enveredarmos pela chatice de encontrar defeitos nas listas dos outros. Vamos ao meu trecho:
“Permitam-me responder com um apelo do coração.
Adoro ensinar literatura. Raramente sinto-me tão feliz como quando estou aqui com minhas anotações, meus textos assinalados e pessoas como vocês. A meu ver, não há nada na vida comparável a uma sala de aula. Às vezes, quando conversamos – quando, por exemplo, um de vocês com uma só frase atinge em cheio o âmago do livro que está sendo estudado –, tenho vontade de gritar: ‘Queridos amigos, aproveitem bem este momento!’. Por quê? Porque, depois que saírem daqui, poucas vezes, se é que alguma vez, as pessoas falarão com vocês ou ouvirão vocês do modo como todos nós nos falamos e nos ouvimos aqui, nesta salinha iluminada e com tão poucos móveis. Também não é provável que vocês encontrem com facilidade outras oportunidades de falar sem constrangimento sobre o que foi mais importante para homens tão conscientes dos conflitos da vida quanto Tolstói, Mann e Flaubert. Duvido que saibam o quanto me emociona ouvi-los com ponderação e total seriedade sobre solidão, doença, saudade, perda, sofrimento, ilusão, esperança, paixão, amor, terror, corrupção, calamidade e morte… e me emociono porque vocês têm dezenove, vinte anos, a maioria vinda de lares confortáveis de classe média e sem ter vivido ainda experiências muito traumáticas — mas também porque, estranha e tristemente, essa talvez seja a última ocasião em que vocês refletirão de modo sério e sustentado sobre as forças inexoráveis que em algum momento terão de enfrentar, queiram ou não.”
Terminada a minha leitura, permanecemos quietos, meus olhos fixos em algum desenho do tapete, com a vontade de reler Morte em Veneza, abandonado há tanto tempo, como um velho amigo numa prateleira. Recomponho-me. A cabeça de José está inclinada para cima, os olhos em algum ponto do teto, ignoro por quais pensamentos turvados. Segundos ou minutos depois, ele passa à leitura de um trecho contrastante com o meu, pelo teor e pela extensão:
“Não haverá um momento na vida em que a gente se rende ao dever, dá boas-vindas ao dever como antes já se rendeu ao prazer, à paixão, à aventura — um momento em que o dever é o prazer, em vez de o prazer ser um dever?”
José termina de ler e não faz qualquer comentário. Fica claro para mim quão central é essa indagação na trilogia rothiana do desejo, como perfeita síntese da transição do juvenil impulso erótico para a dignidade melancólica que preferimos chamar de amadurecimento.
O trabalho da citação
Cabe-me dizer a você, que persiste em não largar esse compêndio, que ler os livros de José é uma vantagem e tanto porque ele quase sempre os grifa e faz anotações à margem das páginas. São frases curtas, exclamações e divertidas carinhas. Leia sempre com um lápis à mão, é o conselho que ele me dá. Recomendação que logo depois retificou: …a não ser que você esteja com um livro da biblioteca. Nesse caso, compre um bloquinho de autoadesivos. Desconfio que esse conselho seja um pretexto para que José não empreste os seus livros.
Pelo motivo que for, a depender do primeiro dono, ler um livro com as pegadas de leitura deixadas pelo leitor anterior pode ser desastroso, um desvio irritante, e por isso faço o possível para evitar as edições grifadas, dos sebos e das bibliotecas. Mas, se esse leitor for José, confesso já ter cometido o crime de ter trocado alguns de seus livros sem lhe pedir permissão. Um novo em folha por aquele surradinho, pecaminosamente indicioso de sua presença biográfica. Confesso que cometi alguns pequenos delitos. Não é esse o caso, infelizmente, de O Seio (1977) — em que David Kepesch surge na obra de Roth —, pelo simples fato de José ter lido o exemplar da biblioteca da faculdade. Nessa curiosa novela, um professor de literatura, que ao longo de anos ensinara Kafka, Gogol e Swift, de repente e sem que isso aplaque os seus impulsos libidinais, se vê transformado num enorme seio de setenta quilos! E não preciso dizer mais.
Em contrapartida, eu trouxe comigo de sua casa a edição de O animal agonizante (2001), também de Roth. Com ela em mãos, eu gostaria de fazer pelo leitor o que essa edição fez por mim, isto é, reproduzir os trechos grifados por José, ou seja, elevar o sublinhado ao seu próximo estágio, a citação. Sei que estou correndo o risco de pagar caro por essa indiscrição, mas o que mais posso fazer para diminuir a minha culpa senão dividi-la? Agora, relendo essas passagens com cuidado, percebo que elas recontam esse curto romance por alguns de seus pontos mais altos. Cento e trinta páginas em uma, é uma boa síntese? Se nós subtraíssemos essas passagens de O animal agonizante, ele seria um romance bem pior. Colocando as citações em sequência, questiono se releio o livro pelas lentes de José ou se leio José pelas lentes do livro. Pouparei o leitor dos meus devaneios tolos. Também não o amolarei com comentários, tampouco pretendo reuni-las em grupos, mas, se o fizesse, tenho a impressão de que teria razoavelmente pronta uma aula a respeito desse romance. Uma aula antologizada por José ou, mesmo, assumindo as palavras de Antoine Compagnon, segundo o qual “o livro lido não é realmente um objeto distinto de mim mesmo”, uma aula que traria um pedacinho de José. N´O trabalho da citação (1979), o crítico francês considera que “o grifo corresponde a uma entoação, a um acento, a uma outra pontuação que não corresponde ao código comum”. Um livro grifado por José é, em certo sentido, um livro reescrito por ele. Reescrito com uma seleção de frases enfatizadas quando colocadas em destaque por ele e, agora, isoladas por mim. Daí, ao ler os trechos que terei a ousadia de citar, faço-o como se ouvisse José, como se houvesse uma sutil transferência de autoria entre Roth e ele — como se, afinal, o grifo e a rubrica constituíssem o primeiro estágio de sua própria escrita.
“Você percebe que, apesar do decoro, da meticulosidade, do estilo cuidadosamente refinado — ou por causa disso tudo —, ela tem consciência de si própria. Ela vem à primeira aula com uma jaqueta abotoada por cima da blusa, porém cinco minutos depois do início da aula não está mais de jaqueta. Quando volto a olhar para ela, já vestiu a jaqueta outra vez. De modo que você compreende que a moça tem consciência de seu poder, mas não sabe direito usá-lo, o que fazer com ele, não sabe nem mesmo até que ponto quer todo esse poder.
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Bom, tenho uma regra há uns quinze anos que jamais violo. Nunca me aproximo das alunas em caráter particular enquanto elas não fazem o exame final e recebem a nota, quando então para elas já não estou mais oficialmente in loco parentis. (…) Não entro em contato com elas para não cair nas mãos daquelas pessoas na universidade que, se pudessem, dariam um jeito de criar sérios obstáculos ao meu prazer de viver.
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Terminado o exame final, lançadas as notas, dou uma festa no meu apartamento para os alunos. (…) No curso de Crítica Prática, costuma haver cerca de vinte alunos, por vezes até vinte e cinco, de modo que ao todo são quinze, dezesseis garotas e cinco ou seis rapazes, dos quais dois ou três são heterossexuais. Às dez da noite, metade desse grupo já foi embora. Normalmente, ficam um rapaz hétero, talvez um rapaz gay e cerca de nove garotas. As que ficam são sempre as mais cultas, mais inteligentes e mais animadas da turma. (…) No decorrer da festa, de repente se dão conta de que sou um ser humano.
(…)
É bom ela ser cubana, é bom a avó dela ser isso e o avô aquilo, é bom eu saber tocar piano e ter um manuscrito de Kafka, mas tudo isso não passa de um desvio no caminho que vamos acabar seguindo. Faz parte do encantamento, imagino; porém, se essa parte não fosse necessária, eu gostaria muito mais. Em matéria de encantamento, o sexo por si só já basta. Será que os homens acham as mulheres tão encantadoras quando o sexo é omitido? Será que alguém, qualquer que seja o sexo, acha alguém encantador se não houver nada de sexual entre eles? Tem alguém que encanta você sem ser por isso? Não tem.
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Como tudo que dá prazer, você entende, a coisa tem um lado desagradável.
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Foi assim que teve início de verdade seu domínio sobre mim.
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É como jogar beisebol com um grupo de rapazes de vinte e poucos anos. Você não se sente jovem por estar jogando com eles. Você nota a diferença a cada segundo do jogo. Mas pelo menos você não está sentado, de fora, assistindo.
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Naquele tempo, as relações amorosas entre professores e alunos causavam espanto não apenas por constituírem uma novidade, mas também por ocorrerem abertamente, e elas causaram muitos divórcios, além do meu. O poeta era um homem que não possuía os talentos que os outros têm quando se trata de defender seus interesses no mundo. Todo o seu egoísmo era canalizado para a linguagem.
(…)
Ser professor dessas garotas teve um efeito pedagógico sobre mim.
(…)
A vida em família é infantil, hoje mais do que nunca, quando o ethos é criado acima de tudo pelas crianças. É pior ainda quando não há filhos. Porque aí o adulto infantil substitui a criança. A vida em casal e a vida em família ressaltam o lado infantil de todas as pessoas envolvidas.
(…)
Ataquei a golpes de martelo a vida doméstica e aqueles que a protegem.
(…)
O horror. Lá estava ele. Todo o horror naquela cabeça. A cabeça de Consuela. Beijei-a. Que mais eu podia fazer? O veneno da quimioterapia. Tudo que ele fizera em seu corpo. Tudo que fizera em sua cabeça. Trinta e dois anos de idade, e acha que está exilada de tudo, vivendo cada coisa pela última vez. Mas e se não for verdade? E se…
Pronto! O telefone! Pode ser…! Que horas? São duas da madrugada. Com licença!”
A palavra “spoiler” vem do inglês “to spoil,” que significa “estragar.” Assim, a seleção acima pode ter arruinado a experiência de quem preferiria descobrir a trama desse romance pelas mãos de Roth, e não pelas de José. Eu sempre fiquei admirado com o aviso presente em algumas comunidades sociais, afirmando que o conteúdo que se lerá a seguir contém spoilers. Ele é similar ao que se encontra nas embalagens dos alimentos: “contém glúten”. Há leitores que realmente não podem com spoilers. Diferentemente dos celíacos, eles não são acometidos por fortes dores abdominais, mas a frustração que sentem é devastadora. Se eu não tomei o mesmo cuidado com a experiência do outro, é porque presumo que nenhum dos meus leitores tenha — ou talvez porque eu esteja sugerindo que não tenham — esse impedimento. Pois a história de Kepesch e Consuela está aí, do começo ao fim, com o perdão do spoiler. O que me intriga é que, muito provavelmente, os spoilerfóbicos não deixem, por exemplo, de ver fotos de uma determinada praia onde pretendem relaxar no feriado, ou do quarto de pousada que gostariam de alugar, ou da pessoa, no aplicativo de encontros, que desejam conhecer. Essas fotos não contêm spoilers? Nem elas, nem as citações de José. Assim como a foto de uma paisagem não é capaz de substituir a experiência de estar nela, o resumo de um livro jamais poderá substituir a sua leitura. A literatura, a bem ver, é o que não está lá. Ao contrário de arruinar uma experiência, esses trechos são as fotos que o turista-leitor carrega em sua bagagem, os pontos de luz que reativam a sua memória, a espinha dorsal de um animal que, reparando melhor, não agoniza realmente, mas revive pelas mãos de José.
“O Lado B do Hobsbawn”
Em nossas conversas sobre Roth, lembro-me de José ter ponderado seriamente sobre uma suposta misoginia disfarçada de adoração no romancista. Mas eu não poderia reproduzir a sua argumentação repleta de circunvoluções. Passada essa fase, José procurou conferir um sentido maior aos seus romances. O que retive foi mais ou menos o seguinte: É provável que o próprio Roth não tivesse consciência de conjunto dessa trilogia centrada em David Kepesch desde o início. O que te pareceu? Permaneci calado. Para mim, continuou, o Roth é um cronista das transformações culturais dos últimos cem anos; ele está contando a história da segunda metade do século XX pelas grandes mudanças no comportamento sexual que ocorreram no período. Acho formidável e balanço a cabeça afirmativamente. No entanto, eu tenho um incômodo com Kepesch. “Ele planeja as interações para que pareçam encontros despretensiosos. No fundo, eu sei que não deveria haver problemas maiores nisso, mas ele tem um plano de ataque. Ele é calculista demais para mim. Os jogos emocionais de Kepesch passam pelo sexo, evidentemente, mas a sua finalidade está relacionada, na verdade, com o próprio ego, à sensação de controle e poder sobre os sentimentos de Consuela. Eu o considero um manipulador.” José me ouve com um discreto sorriso: ele é sim, sem dúvida, um manipulador. E daí? O que mais ele pode fazer para respirar em meio a rapazes e moças com trinta, quarenta anos a menos que ele? Você o acha tão forte assim para evitar isso? Você não tem empatia por ele? Você o quer numa cadeira de rodas ou num altar passando o sermão? “Não é bem isso”, eu balbucio. A juventude e a beleza, por outro lado, não são manipuladores dos sentimentos e do desejo dele? “Pensando bem”, digo. O flerte amoroso não é inteiramente um jogo de manipulação do desejo do outro? “Sem dúvida”. Por mais difícil que seja, é um exercício intelectual necessário enxergar os relacionamentos humanos como interações entre seres falíveis. É preciso encará-los sem hipocrisia moral. “O que seria o meu caso”, volto a dizer, como autopenitência. Mas então José faz uma ressalva: Na verdade, a mentalidade do Roth é erotocêntrica. Ele não é capaz de interpretar as relações sociais sem ver o sexo como o seu aspecto central. Isso limita a perspectiva dos seus romances. “Esses nossos encontros, por exemplo, no seu apartamento, não despertariam o interesse dele.” Desconfio que não. A leitura desses romances em sequência gera a sensação de um reducionismo sexual. “É exatamente a reserva que eu faço a ele. Mas eu desconfio que você não escolheu realmente interpretar o Roth por esse ângulo, escolheu?” Se uma interpretação não te leva adiante, procure outra. A crítica deve nos conceder asas, não correntes. Para mim, é mais sedutor pensar que essa trilogia é a versão erótica da Era dos extremos (1994). E foi como se a frase seguinte saísse do nada, uma frase cujo eco ainda persiste: O Roth, José pontificou, é o lado B do Hobsbawm.
Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi
Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.