“José, professor” — Capítulo 5

Neste capítulo, o desejo ganha novos contornos psicológicos por meio das leituras de "O professor Jeremias" (1920), de Léo Vaz; "Amar, verbo intransitivo"(1927), de Mário de Andrade; e quatro narrativas de Clarice Lispector: "Perto do coração selvagem" (1944), “O crime do professor de matemática” (1960), “Os desastres de Sofia” (1964) e "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres" (1969).

“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”

E se não for verdade? Essa pergunta ecoa. Quantas das afirmações que fiz sobre Prachedes, Lucas, Klara, Sr. Shimada, Zola, Silk e Kepesch são realmente minhas? Chegando aqui, o leitor pensará que José não é de verdade, que ele é fruto de minha imaginação, um faz de conta que eu bolei para projetar minhas ideias no papel. Considerará que José é um estratagema que me exime de qualquer responsabilidade. Não o culpo por isso. O leitor bem sabe quão parca é a noção de realidade daqueles que se limitam ao mundo orgânico, embora esteja redondamente enganado se considerar que eu realmente seja um escritor criativo. Também não sei desenhar. Quem, senão o próprio José, faria o seu autorretrato póstero? Possuo a triste coerência de não ter acrescentado mais ninguém a este mundo. 

Tristemente, eu me recordo, a propósito de José, daquele professor de matemática que abandona o próprio cão quando é nomeado para dar aulas em uma outra cidade e, depois de ter se mudado, ao encontrar um outro cachorro morto na rua, faz o enterro dele como um ritual de despedida de José. Sim, no conto “O crime do professor de matemática” (1960), de Clarice Lispector, José é o nome que o professor de matemática deu ao seu verdadeiro cão, de quem ele se recorda, saudoso: “Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”. E com um propósito: “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu — como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei…”.

Clarice Lispector.

“É coisa que se ensine, o amor?”

José me veio com a seguinte frase: o verdadeiro professor do desejo é uma professora, soltando-a no ar como um corpo sem paraquedas. Do que ele estaria falando? Ponho-me a pensar, mas resvalo em quases, sem definição. Eu me refiro a Fräulein Elza, revela-me, a heroína de Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade. Que surpresa, aquela. Eu ia me recordando do romance, com a ajuda de meu amigo. Elza é contratada como governanta dos Sousa Costa, em cuja mansão ensina piano e alemão para os três filhos, incluindo as duas irmãs mais novas de Carlos, o adolescente de 16 anos e motivo real da contratação. Sua mãe, Dona Laura, desconhece, a princípio, que a sua disciplinadora e discreta funcionária é também responsável por um terceiro nível de instrução em sua casa. Caberá a ela a iniciação sexual do primogênito. José e eu conversamos rapidamente a respeito da acomodação da língua escrita à língua falada no romance, tal como prevê o projeto estético e, mais do que isso, a missão cultural de Mário, para além dos regionalismos anteriores, e falamos também do incômodo inicial daquela língua — a nossa, afinal. Incômodo que foi cedendo, página após página, à medida que avançamos na leitura. Evocamos ainda o narrador do romance, que, na esteira de Machado de Assis, problematiza a própria narrativa, expondo ao leitor, durante o ato criativo, o trabalho de criação. 

A título de comparação, lembro-me de que nós havíamos comentado, há não muito tempo, outro romance do mesmo período, o simpático O professor Jeremias (1920), de Léo Vaz, sugerido por um colega meu, o professor Daniel Reizinger Bonomo, que ensina literatura brasileira em Belo Horizonte. E a leitura de Amar, verbo intransitivo à luz desse outro texto, sete anos mais velho, colocava-os não a poucos anos, mas a um século de distância um do outro. Arrumado em capítulos muito curtos, o romance de Vaz é uma espécie de carta introduzida numa garrafa. O narrador, o professor Jeremias Pereira, da fictícia Ararucá, dirige-se ao seu filho, cujo paradeiro, ao lado da ex-mulher, ele desconhece. Escrito como uma amarga lição de realidade, o romance expõe com ironia o verniz que encobre o caráter burlesco da sociedade brasileira. Mas, para José, por mais machadianamente acre que Jeremias pareça ser, por mais que ele escreva seu livro com um risinho no rosto, essa é a ironia dos cândidos, carente de autoconsciência formal. Jeremias é uma personagem rica, que padece, no entanto, de um erro de perspectiva: ela seria inesquecível, se fosse explorada na terceira pessoa; se nós pudéssemos observá-la com relativo distanciamento por um outro narrador. Mário repunha aquela falta que José cirurgicamente identificava no escritor capivariense, com um romance, em sua época, muito menos lido do que o de Vaz e que, no entanto, se beneficiaria, ao contrário do anterior, da passagem do tempo. Mas, veja o leitor, sínteses são sempre sínteses. Se nada ficar de fora, não valem a pena. E muito ficará de fora a respeito daquela nossa conversa em que situávamos, anacronicamente, o romance de Vaz no século XIX, e que sequer foi lembrada. Foi então que enveredamos, José e eu, pelo tema de Amar, verbo intransitivo, o desejo — palavrinha inexistente no vocabulário do nosso desolado Jeremias. Fräulein, a senhorita, a professora ainda na flor da idade, pretende ensinar o amor — amar sem amor, portanto —, mas não contava com o amor, ele próprio, pregando-lhe uma peça. Essa afirmação de José soara, a princípio, algo enigmática para mim. Deixei-a decantar, com a esperança de que, aos poucos, ela pudesse se ajustar ao meu entendimento. 

O Professor Jeremias (1920), de Léo Vaz.

Ainda que se tratasse de situar, no romance de Mário, o binômio professor-aluno no centro da cena, havia diferenças básicas entre ele e alguns dos romances que havíamos lido. Trata-se de uma professora que seduz um aluno. José afirmava, enfatizando os gêneros. “Claramente, Fräulein não é Sheba Hart”, afirmei, propondo uma distinção que julguei necessária com a professora protagonista do inquietante Notes on a Scaldal (2006), e a respeito da qual José disparou: Hart é a professora aliciada; Elza, a aliciadora. É o sexo feminino, agora, o sexo forte no jogo amoroso. Temos que considerar que o autor mobiliza e aproxima personagens de lugares sociais distintos: Elza, com 35 anos, mora num quarto de pensão e planeja juntar dinheiro para voltar à Alemanha. Carlos, aos 16, é o primeiro herdeiro dos Sousa Costa, uma família da burguesia ascensional paulistana do início do século XX, em parte industrial – em parte agrária. Temos aí o alcance social da sedução. Mas há ainda uma outra diferença. Se esse jogo é incriminado pelo moralismo edificante, no romance de Mário é justamente essa mesma mentalidade moralizadora que patrocina a sedução. Em Amar… o desejo não desencaminha, pelo contrário, a presença de Fräulein o legitima, já que se trata de fazer de Carlos um homem. 

Por vezes — estou a fazer confissões — aglutino aqui trechos de conversas que se passaram em momentos distintos, embora não muito distantes. Digo isso agora, somente agora e propositadamente fora de hora, porque não deve interessar tanto esse apego à materialidade da escrita. A escrita tem seus truques. Ela oferece artifícios que suprimem sete dias, a semana que aguardamos para que eu relesse e retomasse com José a conversa sobre Amar, verbo intransitivo. Foi só então que fiquei realmente à vontade para comentar a frase de José, que apenas sete dias depois retomei: “Nesse sentido, de acordo com o que você disse, Fräulein se torna a verdadeira professora do desejo. Mas acho tão discutível esse papel de instrutora sexual de luxo. O que o pai quer é desvirginar o filho de um modo seguro, para evitar que o sexo abra caminho ao convívio com prostitutas, ao vício e às doenças. Ele alega isso à esposa, quando ela decide dispensar a governanta, percebendo que o filho andava muito assanhado. Mas talvez o pai tenha uma apreensão maior. Eu fiquei com a impressão de que ele receie (mas é um receio não declarado) que não aflore no menino, que mantém um convívio constante com as irmãs mais novas, o varão que ele espera para herdeiro. Que ele fique afeminado”. José concorda, a seu modo: é a tartufice de nossa burguesia jacobina sendo denunciada por Mário: Fräulein é, sem dúvida, uma ação homofóbica. 

Estúdio de Mário de Andrade. Foto de Herman Graeser, 1945. Crédito: Acervo IPHAN-SP.

Mas eis que meu colega adianta o passo na direção que mais nos interessava, com uma pergunta retórica que movimenta a reflexão e o próprio romance: “É coisa que se ensine, o amor?”. “O narrador acredita que não”, respondo. Mas ela crê que sim, José relativiza. Essa diferença entre os pontos de vista do narrador e de sua protagonista sobre o tema central do romance é o que o torna complexo. Segundo José, Elza jamais contesta, ela antes reforça o patriarcalismo dos Sousa Costa. “Não estamos diante de uma heroína feminista, evidentemente”, gracejo. Intimamente, prossegue José, ela traz convicções racistas e alimenta sonhos burgueses. Os heróis de Mário não primam por suas virtudes, como sabemos. Mas ela é uma heroína em sua complexidade e autonomia como personagem. O interessante é que, em que pese a presença da teoria psicanalítica no romance, ela não a circunscreve completamente, não explica a personagem. Há algo em Elza que escapa ao narrador. Esse leitmotiv distingue completamente o romance de Mário dos lugares-comuns do gênero. Ascendemos aqui a um outro patamar literário. E isso se dá, me parece, quando o feitiço se volta contra o feiticeiro. “Quando Fräulein”, procuro compreender, “sente que ela, Elza, também ama”. Quando se evidencia no romance, reafirma José, justamente a transitividade e a reciprocidade do amor.

Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mário de Andrade.

A dor humilde de existir

José me diz, exercitando o seu modo misterioso de anunciar uma ideia, que foi preciso que se passassem quatro décadas para que Amar, verbo intransitivo (1927) fosse reescrito. Aprende-se a viver?, ele me pergunta. Não respondo, evidentemente. A indagação que está por trás do romance de Mário de Andrade é similar a essa: Ensina-se a amar? Existe-se existindo, responde José. A jovem professora Lóri, no entanto, é da estirpe dos que se indagam e avançam arriscadamente dentro de si na tentativa de compreender o seu descompasso com o mundo. Eis o perigo. O seu corpo a corpo com a vida tem em Ulisses, um professor universitário de Filosofia, um ponto de fuga. Ela, professora de português no primário, está presa à franqueza do colega mais experiente, apegada à sua virilidade calma. Mais do que isso, ela se alimenta do desejo de se sentir desejada pelo professor, ensina José. Lóri sabe como é estar viva através da dor; Ulisses é a promessa de se viver através do prazer. Ela não quer que a vida lhe escorra por entre os dedos, mas, espiral abaixo por um torvelinho de sensações, a partir de que ponto a sua imersão em si significará ter ido longe demais? Para Lóri, que vive numa espécie de pasmo essencial, que experimenta o esplendor do mundo na posição de quem nascesse a cada dia, aprender a viver é um processo que a obriga a encontrar os limites para a ferocidade de seu novo amor pelas coisas e pelas pessoas; um modo de não se deixar consumir pelo estado de graça ao qual se alçou. José explica que Lóri é tão repleta de si mesma que qualquer aprendizado implica uma mutilação. Nesse processo, o que faz Ulisses? Ao prepará-la para andar com as próprias pernas e ao ensiná-la a abandonar o pudor de ter um corpo, o professor perde a tranquilidade de mestre face à sua discípula. Agora ele é simplesmente um homem enleado por uma mulher. Ao assisti-la, em sua busca pelo mundo, Ulisses deixa de assumir o controle, e os papéis se invertem; é ele, agora, quem desconhece a verdade; é ele — José deixa cair o rosto, os olhos permanecem fechados enquanto ele diz sua última frase — quem experimenta a dor humilde de existir. Ficamos em silêncio. Sem dizer mais nada, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) nos observava disfarçadamente sobre a mesa.

Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969), de Clarice Lispector.

Sinto como se as afirmações de José contornassem o semblante triste de Elza, a instrutora de Mário, sobre o de Ulisses, o professor de Clarice. José recorda uma cena de Perto do coração selvagem (1944), romance no qual também cabe ao professor, desta vez, de Joana, ser o seu abrigo e ensiná-la a viver. Na passagem descrita por José, Joana observa seu pai conversando com um amigo que recebera para o jantar. Ele se lembra de uma antiga paixão. Você se lembra do nome dela?  É claro que não, é o que diz a minha cabeça balançando negativamente. Ela se chama Elza, José afirma com um sorriso iluminado. Tanto nome para dar e ela foi escolher justo esse? E depois vem a descrição de Elza como “cheia de poder”. Ora, você não notou? Esta é Fräulein! O meu espanto não foi pequeno. Agora, com o primeiro romance de Clarice em mãos, leio atentamente a descrição nas palavras do pai de Joana: “…cheia de poder. Tão rápida e áspera nas conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez em que falamos chamei-a bruta! Imagine… Ela riu, depois ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela faria de noite. Porque parecia impossível que ela dormisse. Não, ela não se entregava nunca”. De fato, é inevitável entrever Carlos espantado com o germanismo de sua tutora, desejoso de seu corpo, que o excitava e ao mesmo tempo se esquivava dele; é Carlos devaneando com Elza, instalada no quarto de hóspedes de sua casa. Com uma liberdade de dar vertigens, José afirmara que Clarice Lispector reescrevera Amar, verbo intransitivo (1927). 

Perto do Coração Selvagem (1944), de Clarice Lispector.

Como a linguagem apreende o mundo

Há muitos modos de definir a literatura. Eis um deles, que acabo de esboçar: “Quando se trata de Clarice Lispector, Philip Roth pode esperar”. Mas é meu colega quem dispara: Resuma um texto literário; a literatura é o que ficou de fora. Segundo essa receita, narrativas repletas de ação, capazes de engordar resumos, seriam menos literárias do que textos com enredos parcos e incapazes de exprimi-los — como os de Clarice Lispector, por exemplo. Definições são sempre boas para uns e ruins para outros. Uma outra, a última desta leva, também cunhada por José, é que a literatura, em sua essência, repousa sobre uma falha ontológica. Apesar da sua evocação sísmica, não vejo como aplicá-la tranquilamente a uma narrativa como Os miseráveis, de Victor Hugo; no entanto, essa é uma definição que cai como uma luva para um conto como “Os desastres de Sofia” (1964), em que o que importa é, a exemplo do que ocorre em boa parte da obra de Clarice, o modo como uma consciência apreende o mundo. Mas basta começar a ler, a se colocar frente a frente com o inesperado das imagens, para reformular essa definição: o que importa é o modo como a linguagem apreende o mundo. E será de uma diabrura de Sofia que nascerá, diante da surpresa do mestre, a escritora — uma escritora que, assim como Clarice, seguindo o exemplo da menina, alterará as morais das histórias — e nascerá a mulher — que experimentará, num êxtase, ou num martírio, o risco de viver sem máscaras. Sofia é uma menina de nove anos, uma pequena Joana em plena construção da identidade através da atração e do confronto com seu professor. Acompanhamos os mecanismos da paixão segundo Sofia, despertada pelo contato com seu formador, que não é o charmoso Ulisses, mas um deslocado lente do primário. A macabeana frustração desse homem é uma tentação para a sua aluna mais rebelde; o que a atrai nele, o que alimenta em si o seu amorzinho de leão, que vai crescendo aos poucos, é a piedade, a possibilidade de salvá-lo. O universo de Clarice é o do jardim botânico visitado por Ana, em “Amor” — uma paisagem anímica, a um só tempo monstruosa e suave. Joana, Lóri, Ana e Sofia são mulheres de um lirismo disforme, de uma liquidez infantil que não se cristaliza. A narradora, aqui e no resto da obra, rememora o passado procurando conferir-lhe um sentido, como uma feiticeira que, tentando dizer o indizível, diz, a bem dizer, a própria indizibilidade. E ela caminha até a beira do precipício — viver errado a atrai —, como se ali, olhos nos olhos do professor, pudesse encontrar a fonte, a chave mestra. Ou fim de tudo.

Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi

Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.

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