Desejo e consciência moral
Recém-chegado a uma faculdade do interior dos EUA, um lugar sem novidades, o depressivo Abe Lucas, apesar de ter certo prestígio entre os colegas, é incapaz de circular pelo campus sem uma garrafinha de uísque a tiracolo. Rapidamente, a sua fragilidade desperta a paixão de Jill, uma de suas alunas mais brilhantes, embora ele não seja capaz, a princípio, de se interessar por ela, ou por sua atirada colega de departamento, Rita, ou sequer pela vida. O tesão — palavra que saída da boca de José me chamou a atenção — é um fósforo frio num corpo à beira do suicídio, compara, a propósito do protagonista de O homem irracional (2015), de Woody Allen. Mas eis que a desilusão de Lucas é prontamente curada por uma ideia. Ao escutar uma conversa num restaurante, o professor toma a decisão de matar o juiz que tiraria a guarda de uma mulher em processo de divórcio, pelo simples fato de o magistrado ser amigo de seu ex-marido. A exemplo do que acontece em Match point (2005), em que Allen faz de seu instrutor de tênis um alpinista social como Julien Sorel, de O vermelho e o negro (1830), aqui Lucas torna-se o seu Raskólnikov, o estudante de Direito que pretende fazer um favor ao mundo assassinando uma velha usurária, em Crime e castigo (1866). Se o castigo do jovem russo passa pelo remorso e por sua conversão religiosa sob a influência de Sónia, Lucas, ao contrário, sem demonstrar culpa, recupera o desejo pelas mulheres e pela vida. Matar restitui-lhe a vida, sintetiza José. Essa é a tacada de Allen. Há uma frase dita pelo narrador de Ravelstein (2000), de Saul Bellow, que poderia sintetizar o que se passa com Lucas: “Eu jamais esperaria que a morte fosse tão afrodisíaca”. Ainda que, lembra José, no romance de Bellow, o narrador se refira à excitação insurgente no próprio corpo que desfalece, ao passo que, no filme de Allen, trata-se do prazer derivado do assassinato. Será Jill, no entanto, a consciência moral que refreará o potencial afrodisíaco do crime. Angustiada, o seu desejo por Lucas arrefece, e ela exigirá que o amante se entregue. Essa implicação entre desejo e consciência moral é uma constante em romances proibidos, sendo, geralmente, o envolvimento entre professor e aluna um de seus lugares comuns narrativos. Durante a nossa conversa, José mencionou de forma bem-humorada que se os professores soubessem explorar a implicação mútua entre excitação e proibição, não recomendariam aos seus alunos obras literárias, em vez disso eles fariam, no início de seus cursos, uma lista de obras proibidas.
Que desejo é esse que um professor alimenta? Será que uma aluna presume que seu mentor será capaz de desvendar os segredos de seu corpo tão bem quanto ele é capaz de percorrer as páginas de um livro? Ou não estará em jogo, mais propriamente, uma relação de poder? Despir e montar um homem que você admira equivaleria a tirá-lo do pedestal, desmistificá-lo, assumir o controle sobre ele? Melhor dizendo, eu não desejo você, eu desejo ser você, depô-lo de seu reinado e assumir o trono. Mas, com isso, não haverá o risco de se destruir, justamente, o objeto de desejo? Que desejo pode despertar um rei deposto? Quanto mais se ele foi deposto pela aluna desejosa do rei, e não do mendigo — José e eu rimos com a sua analogia shakespeariana. Por um momento, sinto que meu amigo está tirando sarro de mim. Mas não. Ele acaba de se lembrar de uma divertida frase, uma imagem que serve como um contorno perfeito a essa ideia. Você saberá me dizer: não foi Fernando Pessoa quem afirmou que “não é possível comer um bolo sem ao mesmo tempo o perder”?
Uma inquietante inversão de papéis
Relações duráveis entre professor e aluna perduram por se renovarem; são relações que se mantêm apesar do seu início. José está interessado em problematizar o tema. Não deve ser outro o motivo que o faz recorrer a um caso delicado: Notas sobre um escândalo (2006), de Richard Eyre, baseado no romance da escritora britânica Zoë Heller. Temos falado de professores e alunas. Presumo que José esteja interessado em inverter os papéis. Aqui, Sheba Hart é uma jovem professora de artes que se apaixona por Steven, um estudante de quinze anos. O que meu colega afirma sobre Hart enaltece o próprio filme: ela não cabe nas regras sociais. No entanto, não caber nas regras não significa que ela procure desrespeitá-las, mas que o seu caso é imprevisto. Hart é uma mãe dedicada de dois adolescentes, um deles com síndrome de Down, e uma esposa fiel. Ela entra numa escola com a intenção de ensinar, quando a indisciplina dos alunos rapidamente a desilude. Eles não respeitam a sua juventude e falta de pulso. A não ser por Steve, cujo interesse pelo desenho torna-se, pouco a pouco, uma compensação para ela, a escola não faz qualquer sentido. A cumplicidade entre professora e aluno evolui para um caso secreto que não demora para chegar ao conhecimento de Barbara, uma professora já em fim de carreira, autoritária e misteriosa, que surpreende o casal numa chocante cena de felação dentro da própria escola. A partir daí, a professora se tornará alvo da chantagem e, para a sua surpresa, do desejo de Barbara. Que Hart tenha cometido um crime ao manter relações sexuais com um garoto de quinze anos é uma evidência indiscutível. O que o filme nos dá o privilégio de conhecer, no entanto — uma exclusividade da narrativa literária, e não do Direito, advoga José —, são as suas circunstâncias íntimas, para além dos papéis sociais de seus actantes. Para o espectador, não se trata simplesmente de professora e aluno, cabendo àquela o controle da situação e a este a prerrogativa da ingenuidade. Aqui, estamos diante de uma inversão de papéis porque, a bem dizer, é justamente a professora quem age incautamente. Steve parece ter acumulado, ao longo de seus quinze anos, mais sagacidade do que ela, que tem o dobro de sua idade. O garoto conhece as artimanhas da sedução, usa a mentira a seu favor e, com isso, envolve a professora, cuja inocência e franqueza podem ser qualificadas de infantis. Ela pagará um preço alto por não se enquadrar em seu papel social, por não ser quem se espera que ela seja. “Até certo ponto”, digo a José, Steve me fez lembrar Claude, o jovem estudante com vocação para a escrita e a manipulação, de Dentro de casa (2013), de François Ozon.
O cerco camusiano de Bird
Até certo ponto me fez lembrar Meursault, retruca José, melancolicamente enjoado de Ozon, inclinando-se para uma personagem que, assim como Abe Lucas e Sheba Hart, caminha à sombra d´O estrangeiro (1942), de Camus. Trata-se de Bird, o apelido de um professor de língua inglesa sem qualquer vocação para o ensino. Ele dá aulas em um cursinho de Tóquio, no início dos anos cinquenta. Bird tem o mesmo DNA do clássico professor Botchan, de Natsume Soseki. Ele abandonara seus estudos de pós-graduação devido ao alcoolismo e, enquanto alimenta infantilmente o sonho de se aventurar pela África, sua sogra aguarda no hospital o nascimento de seu filho. À distância das dores do parto de sua esposa, que se prolonga por horas, Bird procura mapas da África em uma livraria, diverte-se em um parque de diversões e envolve-se numa briga com uma gangue de adolescentes que resolve persegui-lo. Ele é um sujeito inercial e escapista, avalia José. Se considerarmos as acusações que Meursault recebeu no tribunal, por não ter chorado no velório da mãe e por ter ido à praia e iniciado um namoro no dia seguinte ao enterro, Bird está inserido num cerco camusiano. Kenzaburo entrega a sua filiação para o leitor. José provavelmente se refere a uma passagem próxima à conclusão do romance, na qual Bird brinca com um ex-colega gay após ele refletir a respeito de sua orientação sexual: “Você até sabe o que dizem os existencialistas franceses, hein?”. Para José, ele não estaria se referindo a Sartre, mas a Camus. Bird recebe, então, a notícia de que seu filho nasceu com uma terrível hérnia cerebral, e que, caso resista, tem toda a probabilidade de terminar seus dias de forma vegetativa. A sua expectativa, sistematicamente alimentada no decorrer de Uma questão pessoal (1964), de Kenzaburo Oe, é a de que o filho não resista, o que, considerando-se as circunstâncias, lhe trará algum alívio. Desolado, Bird procura consolo com uma ex-colega de faculdade, na companhia de quem se embebeda e em cuja cama passa a noite. Ao relatar o caso a ela, o pai dá o bebê por morto. Com a esposa e a sogra no hospital, e o filho, por ele referido como “o bebê monstro”, na UTI, Bird e Himiko iniciam um caso complexo, à base de uísque, sedativos e, especialmente, da habilidade da jovem em contornar a aversão que o ex-colega desenvolveu ao corpo feminino, relacionada ao nascimento do filho. O que talvez seja mais surpreendente nessa história, comenta José, é que tudo se passa como se a esposa de Bird não existisse. Ela continua no hospital, em um resguardo cego e demorado demais, ignorando o estado do filho e o paradeiro do marido. Será possível? O Lucas, de Allen, igualmente alcoólatra e impotente, recupera-se da perda do estímulo sexual a partir de um pensamento perverso: matar o juiz. O mesmo se dá com Bird, que, por sugestão da própria Himiko, reencontrará a virilidade desviando momentaneamente a atenção do órgão gerador de uma vida deformada. José simplesmente evitou dizer que Bird alcança um orgasmo violento e estonteante ao praticar o coito anal com Himiko. Em escalas diferentes, continua, é a transgressão moral que acende a fagulha do desejo, até que o sexo com ela se torne pacífico e regular. E não se dará o mesmo com Hart? O desejo de e por um aluno adolescente não lhe restituirá o prazer pela vida, arrefecido por um emprego desestimulante e uma vida familiar monótona?
Demitido do cursinho por ter vomitado em plena sala de aula, mareado pela ressaca da noite anterior, Bird vive uma vida fora do tempo e sem noção de moralidade. É o período em que Kruschev retomou os testes nucleares na Rússia, notícia que reabre uma ferida não cicatrizada na história do Japão, mas Bird traz a sensibilidade canalizada para o problema do bebê, afora a sua distração e egoísmo naturais. Bird é um homem para quem as coisas não têm peso. A vergonha, no entanto, é um sentimento do qual ele não poderá desviar. Esse sentimento o esmaga num círculo moral até o ponto de levá-lo a agir por impulso. Bird recusa a cirurgia do filho, tira-o do hospital e, seguindo a sugestão de Himiko, que, a essa altura, já sonha em viajar com ele para a África, decide entregá-lo a um amigo, um médico que faz abortos clandestinos. Mas para sequestrar o próprio filho do hospital, fora necessário dar um nome a ele. Para transportá-lo, fora preciso protegê-lo dos olhares curiosos das mães e das enfermeiras, cobrir sua cabeça deformada com um gorro, e acomodá-lo no cesto ao seu colo, em meio ao sacolejo provocado por Himiko ao volante. A indiferença desse pai, extenuado, cede lugar ao comprometimento. Ele toma consciência de que, desde a manhã em que o bebê nasceu, ele não parou de fugir do próprio filho.
“Você não se decepcionou com o final?”, pergunto a José. Geralmente uma pergunta desse tipo provoca em meu amigo uma reflexão dialética. Talvez por esse motivo eu tenha me espantado com a resposta: Sim, completamente. Kenzaburo perdeu a mão. Em duas ou três páginas — é a essa rapidez a que José se refere —, Bird assume as suas responsabilidades de pai, decide deixar de ser professor para se tornar guia turístico no Japão, livra-se de Himiko, volta para a esposa e, ainda por cima, descobre que o bebê se recupera bem da operação que ele tentara a todo custo evitar, revelando-se um notório erro de diagnóstico. Um happy end desses, somado à transformação de um indivíduo imoral num modelo de integridade, precisaria de dezenas de páginas de dissolução, afirma José, sem querer pesar a mão (a palavra “piegas” não sai de minha cabeça) ao se referir a certa falta de habilidade na condução do arremate do romance, e recorrendo a um conceito importante, que ele próprio parecia ter acabado de forjar: Nem sempre é necessário resolver uma narrativa, sentencia meu colega; o realismo de Kenzaburo requer uma lenta e gradual dissolução. Assim a vida.
Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi
Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.