Ágata e o Panóptico
O panóptico surgiu como um modelo de prisão que permite a supervisão constante dos presos por um número mínimo de guardas. Sua característica principal é a torre alta situada no centro da planta, em torno da qual são erguidos os edifícios, em formato de anel. No alto da torre situa-se o observatório, com janelas pequenas ou vidros escuros, ao passo que as celas em volta são vazadas pela luz. Desse modo, o observador pode ver sem ser visto. O panóptico estimula o autocontrole porque os presos têm sempre a sensação de serem observados, ainda que possa não haver ninguém na torre. Qualquer semelhança com as incontáveis câmeras de segurança que vigiam as nossas cidades não parece ser mera coincidência. O Grande Irmão deixou de ser a distopia de um escritor inglês de meados do século passado para se tornar uma figura onipresente em nossas vidas.
José e eu entramos nesse assunto porque a sua vizinha instalou, logo acima da porta de seu apartamento, uma estranha lâmpada que emite uma luz lilás. No início, ele reparou, mas não comentou. Semanas depois, ela o encontrou de passagem na escada do prédio. Foi com uma euforia suspeita que a simpática vizinha começou a lhe contar a respeito de sua nova aquisição, a “Ágata”. José fez cara de desentendido: Ágata? Ela manteve o ritmo arrastado da fala e, com os olhinhos brilhando, esclareceu: “Agatha Christie”. A vizinha de José batizou aquela lâmpada lilás com o nome da grande escritora britânica de romances policiais. Imediatamente ocorreu a ele que aquilo não era bem uma lâmpada, mas uma câmera. Surpreso com a descoberta, José não soube sorrir. A sua vizinha tem mania de segurança e acha que uma câmera apontada para as portas de ambos os apartamentos, que não faz mais do que filmá-los diariamente entrando e saindo de suas casas, pode lhes trazer algum conforto. Ele está seguro de que não é suspeito de nada, mas, enquanto a esperada visita de um delinquente não acontece em seu edifício, será José o alvo. Ele e suas sacolas de supermercado, sua mala com livros, e sua escassez de visitas, além de mim, é claro. José não está na Prisão Modelo, construída segundo o esquema arquitetural de Jeremy Bentham, o criador do panóptico. Mas mesmo que a sua vizinha não passe o dia todo em casa ou fique plantada em frente a um monitor, ela já induziu inapelavelmente o internado, ou melhor, José, a um estado de permanente visibilidade. O propósito de Bentham foi atingido. O panóptico se chama Ágata — e agora José sabe que ela está sempre vigiando. Sua vizinha pode dormir sossegada.
“Coragem para a luta”
Foi Ágata que nos empurrou na direção de três romances com um mesmo tema. Em O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, o internato e a figura de seu diretor Aristarco são a representação crítica de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, e da escolaridade do período. Em Manhã submersa (1954), de Virgílio Ferreira, segundo romance de uma trilogia que não se concluiu, o internato é o seminário do Fundão, num Portugal ultracatólico. Em A cidade e os cachorros (1963), o primeiro romance de Mario Vargas Llosa, o Leoncio Prado é uma escola de cadetes em Lima.
Há, em diferentes graus, uma experiência traumática por trás dessas três grandes narrativas. Basta dizer que Pompeia estudou no colégio Abílio, a última palavra em matéria de pedagogia no 2º. Reinado, e onde estudaram nomes célebres como Castro Alves e Rui Barbosa. Aos 14 anos, Llosa viveu como interno por dois anos no Colégio Militar Leoncio Prado, em cujo pátio, anos depois, seu romance foi queimado por ser considerado um retrato cruel e abjeto dessa instituição. O livro é considerado um dos motivos para a triste derrota sofrida por Llosa no segundo turno das eleições presidenciais no Peru, em 1990, para Alberto Fujimori, que governou como ditador. Aos 12 anos, Virgílio Ferreira ingressa no seminário do Fundão, de onde sairia após seis anos. Formado em Letras, em Coimbra, foi professor secundário além de escritor por toda a vida. José não tem inclinação para leituras biográficas, mas essas histórias despertam a sua sensibilidade para o choque que seus autores tiveram ao ingressar em internatos.
Nesses três romances de formação, é difícil não aderir ao sofrimento de seus jovens protagonistas, vigiados e aflitos pelo embate com o meio e pela disputa com os colegas. José atenta especialmente ao pequeno Sérgio, do romance brasileiro, ao jovem português António Borralho, e aos, pelo menos quatro, protagonistas peruanos, Ricardo Arana (o “Escravo”), Alberto (o menino rico), Jaguar (o pequeno delinquente) e Jiboia (o narrador comentarista). Nas três narrativas, a educação se traduz como adestramento dos adolescentes, um modo de torná-los aquilo que Foucault chamou de “corpos dóceis”. Aprender a duras penas. Ao longo dos anos, esses meninos são submetidos a toda sorte de assédio moral e perturbação física, quando não sexual. O objetivo maior desses internatos é criar uma sociedade obediente. O estudo que Foucault realizou das unidades prisionais, em Vigiar e punir (1975), é uma sociologia adaptada para se pensar essas instituições. O exemplar que José possui deste livro, com dezenas de adesivos coloridos e anotações em pelo menos um terço das páginas, é um documento de seu convívio com o tema.
Em Manhã submersa, há vezes em que os meninos acordam no meio da noite com um homem de batina preta, em pé e ao lado de sua cama, olhando fixamente para si. O padre é uma assombração que os perseguirá mesmo depois do seminário. N´O Ateneu, lê-se: “Acima de Aristarco — Deus! Deus tão somente: abaixo de Deus — Aristarco”. O temido diretor construiu portas em lugares insuspeitos, como na sala de estudos. Portas que nunca são abertas, até que um dia o dirigente da escola resolve aparecer por uma delas, de supetão, para flagrar os alunos. Quando chego e quando saio do apartamento de José, quando ele entra e quando sai, pelo motivo que for e com quem for, Ágata está sempre de olho. Mas ao contrário desses meninos, o abalo inicial é a única lembrança realmente dolorosa que José traz de suas poucas mudanças de escola. Ele sabe que, aos quatro ou cinco anos, emagreceu muito em uma delas, como emagreceu quando, muitos anos depois, passou a dar aulas (durante três longas semanas) numa escola da alta burguesia paulistana. Ele ainda é capaz de sentir aquele desamparo, a sensação de ser observado o tempo todo, dependente apenas de si mesmo. Mas não era propriamente a escola a culpada, era a mudança de sua “estufa de carinho” que representava o lar para aquele recinto artificial que o faria órfão e homem. Era a transição definitiva do ambiente doméstico, familiar, seguro, para o espaço público, compartilhado, onde ele era um número, e um número que mudava ano após ano. José só se lembra de um deles, o cinco. Foi a primeira vez que o numeraram. Ele deveria estar atento e responder em voz alta para não irritar o professor. Para não ser notado. Presente. Com o decorrer dos anos, aqui. José nunca superou a ansiedade de que era acometido na hora da chamada. Tempos depois, ela passou a molestá-lo nos aeroportos e nas filas de banco, da polícia federal, dos laboratórios médicos ou de qualquer lanchonete, onde quer que ele estivesse segurando uma senha. Na escola, aprendeu a agir com discrição e em conformidade com os estranhos e as novas regras. “´Vais encontrar o mundo`, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” O pai de José teria dito isso e saído para o escritório, sem olhar para trás. Sua mãe, se pudesse, o levaria até a sala de aula e se certificaria de que tudo correria bem. O amor tem maneiras diferentes de se expressar.
Instituições Totais
Esses três romances conferem centralidade a lugares que, embora sejam chamados de colégios ou escolas, funcionam como mosteiros, quartéis, prisões ou hospitais psiquiátricos. Pautadas numa hierarquia rígida, essas instituições afastam os estudantes do convívio social público, regulam o seu comportamento e descaracterizam a sua individualidade. Não seria exagero caracterizar o Ateneu, o seminário do Fundão e o Leôncio Prado por aquilo que o sociólogo canadense Erving Goffman caracterizou como total institutions — instituições totais —, em seu estudo seminal, Asylums (1961), livro que se encontra profusamente anotado na biblioteca de José.
A abertura do romance de Pompeia ainda ressoa alto em meu colega. Ele repete as suas palavras olhando para baixo: “mundo”, “coragem”, “luta”. Era uma ameaça. Essas leituras reavivaram aquela angústia antiga. José não foi interno, e os entrelaçamentos brutais do Leoncio Prado passam ao largo de sua experiência como aluno, mas ele é um leitor abalado, ainda preso às ruínas de angústia e desconsolo que esses livros despejaram sobre si.
Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi
Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.