Dia vinte e quatro de outubro de dois mil e dezoito. José faz anotações em um de seus cadernos — hábito que jamais abandonou —, a apenas quatro dias do segundo turno de uma das mais angustiantes eleições presidenciais de seu difícil país. Nota-se, pelo tom que ele emprega, que escrever é uma tábua de salvação. Outro professor escreve na lousa “AUTOKRATIE”. O entediante Sr. Wieland ficou com as aulas sobre anarquia. Rainer, a contragosto, falará sobre autocracia. Trata-se de um projeto de uma semana, a duração do filme dirigido por Dennis Gansel, cujos capítulos se estendem de segunda a sábado. Apesar da empatia pelo docente, rever o nazismo é um lugar-comum desanimador para a maioria dos alunos de Rainer. Eles ganham um intervalo de dez minutos. Assim que retornam, o professor coloca em prática uma nova ideia. Agora, ele é o líder de um grupo e deve ser chamado por Herr (“Senhor”) seguido pelo sobrenome: Herr Wenger. Os alunos devem se sentar corretamente nas carteiras, dar respostas curtas e diretas, e se levantar antes de falar. Aos poucos, após um breve estranhamento, o discurso enérgico torna-se cativante. Exceção aberta às amigas Mona e Karo, todos estão empolgados. Unidos, sentem-se invencíveis. “Disciplina é poder”. Os jovens contam a experiência aos pais, que, no entanto, torcem o nariz para o relato. Para dirimir as diferenças entre si, os estudantes adotam camisas brancas como uniforme e passam a agir colaborativamente. O grupo escolhe um nome, cria um logotipo, constrói uma página na internet e adota uma saudação. Terá José sentido a mesma faísca elétrica que me queimou quando assisti ao eletrizante A Onda (2008), de Dennis Gansel? Suas anotações não transparecem isso.
Em vez do braço estendido para frente, os jovens cumprimentam-se, mesmo fora da sala de aula, replicando o desenho de uma onda, que termina com o braço esticado perpendicularmente ao corpo. O movimento ganha vida, seus componentes desenvolvem o sentimento de superioridade com relação a quem está de fora, protegem-se uns aos outros e passam a receber cada vez mais interessados. Enquanto isso, Tim, o aluno carente de atenção, não mede esforços para ser aceito. Ele oferece um pacote de maconha para alguns colegas, arrisca-se ao pichar o símbolo do grupo no alto da torre da prefeitura, e saca uma arma, comprada na internet, para o membro de uma gang de anarquistas. Tim rapidamente passa a agir como um fanático que vê no Sr. Wenger e n´A Onda o sentido de sua vida. Mas Karo se recusa a usar o uniforme e procura alertar Marco, seu namorado e jogador de polo aquático, para o perigo insurgente daquelas atitudes. Karo e Mona são as únicas que percebem a onda de cegueira coletiva que se originou. Desde o início das aulas, elas não aceitam o experimento pedagógico proposto por aquele que passou a ser chamado de Sr. Wenger. Enquanto assisto ao filme, vou identificando, em meus atuais alunos, Mona, Karo e Tim.
Herr Wenger lembra, com as mesmas dez letrinhas divididas em quatro e seis, a nauseante saudação nazista Heil Hitler. O filme de Gansel baseia-se num experimento real de um professor de história, realizado numa high school californiana dos anos sessenta. Em 1981, Todd Strasser publica o romance The Wave e, no mesmo ano, sai nos EUA o filme homônimo feito para TV, com direção de Alex Grasshoff. O objetivo desse experimento era alertar para a ameaça fascista em sociedades democráticas. (José faz anotações em seu caderno a respeito do filme a apenas quatro dias do segundo turno das eleições presidenciais de seu difícil país. Ele fez questão de sublinhar a data.) Rainer vê no jornal o logotipo do movimento, pichado no alto da torre da prefeitura, e repreende a turma. “Isso está indo longe demais.”
Quinto dia: jogo de polo aquático. O lado direito da arquibancada está reservado ao grupo. Um dos integrantes veta a entrada de torcedores não-uniformizados. Karo e Mona lançam panfletos sobre a torcida — “Parem a Onda”. Nada parece seguir a ordem natural. Dois jogadores se agridem no fundo da piscina. As torcidas se enfrentam na arquibancada. A partida é interrompida. Rainer e sua esposa se desentendem: ela o acusa de manipulador; ele a chama de invejosa. É preciso que Marco atinja o rosto de Karo durante uma discussão para que ele finalmente desperte de sua apatia e vá até a casa de Rainer: “Esse negócio me transformou”, “Isso tem que acabar”. Essas frases ecoam fora da sala de projeção, enquanto José escreve, agora.
Percorro com os olhos as lombadas dos livros na estante ao meu lado. O enterro do diabo, diz uma delas. No mesmo dia, recebo um e-mail de um colega, professor da Universidade de Roma: “Neste momento, aliás, acho que qualquer perspectiva de deixar o Brasil deve ser levada em conta (e não é que a Itália esteja numa situação política muito diferente)”. Ainda encontro tempo para assistir, antes de dormir, ao documentário ficcional Ele está de volta (2015), baseado no livro homônimo do escritor alemão Timur Vermes, de 2012. Hitler acorda de um sono de mais de meio século na Berlim dos anos 2000, com a mesma aparência e mentalidade. Sem suspeitarem de que se trata do verdadeiro líder do Terceiro Reich, as pessoas o tomam por um comediante e seus discursos inflamados fazem enorme sucesso num programa de televisão. Em meio a selfies e rompantes de entusiasmo coletivo, as estarrecedoras entrevistas que o Füher faz com alemães de carne e osso fornecem elementos mais do que suficientes para que se identifique a permanência de suas ideias atualmente. A exemplo do que aconteceu com outros messias de ontem e de hoje, no início não o levaram a sério, riram do monstro; quando a ameaça se tornou palpável, já era tarde.
Último dia do experimento. Sábado, 12h. Centenas de camisas brancas lotam o auditório da escola para ouvir o pronunciamento do Sr. Wenger sobre o destino d´A Onda. O professor ordena que as portas sejam trancadas. Tim, agora seu segurança particular, parece ter finalmente se encontrado no mundo. O professor caminha até o palco com a câmera focalizando-o de costas. Ao fundo da imagem, centenas de camisas brancas, em pé, como um único ser, fazem a saudação ao seu guia. Há um sentimento de orgulho generalizado, visível nos sorrisos e na postura altiva dos estudantes. O professor lê trechos das redações dos alunos a respeito de sua experiência durante aquela semana: “A Onda deu significado às nossas vidas”. São frases conhecidas, similares àquelas que foram ditas há quase um século na Alemanha hitlerista e na Itália fascista: “Juntos podemos fazer qualquer coisa”, “Juntos podemos reescrever a história”. Fascismo vem de fasces, palavra latina que designa um feixe de varas amarradas. Esse símbolo romano foi adotado por Mussolini para estimular a ideia, tão disseminada em outros contextos, de que a união faz a força. É um modo positivo de descrever o que, na realidade, é melhor descrito pelo assim chamado “efeito manada”. Mas há um porém: “Qualquer um que se opuser vai ser levado pela Onda”. As varas que estão fora do feixe não serão toleradas: “Tragam o traidor”, o professor vocifera, enquanto Marco é carregado por outros camisas brancas até o centro do palco. A plateia acompanha a cena, apreensiva. Marco sente-se traído pelo professor. Mas é este quem grita “O que vamos fazer com o traidor?”, atribuindo a decisão a um dos alunos que carregou o colega. Atônito, o jovem dá um passo atrás. A situação parece estar fora de controle. Olho novamente para a estante ao meu lado. Estamos em 2008. Crônica de uma morte anunciada, diz a lombada bem ao lado da anterior. É quando, para o alívio de Marco, o professor finalmente retira a máscara e desmonta a cena com uma pergunta: “E você o mataria se eu mandasse?”. “É isso que fazem na ditadura.” “Entenderam o que aconteceu aqui?”
Atordoados e estranhamente decepcionados com a performance, os estudantes voltarão para as suas casas, tirarão as camisas brancas e terão muito em que pensar. Dependerá do pensamento crítico transformar essa terrível vivência em experiência. Do contrário, eles repetirão seus erros. Mas as portas ainda estão trancadas e há um aluno que não se conforma. Para ele, A Onda ainda está viva. Não preciso me voltar novamente para a estante para saber o título do próximo livro de García Márquez — cem anos é muito tempo para nos sentirmos sós. José talvez apenas suspeitasse dos mais de quarenta milhões de cidadãos em seu difícil país que, de modo mais ou menos consciente, daí a pouco manifestariam pensar como Tim. Mas José não recriminaria o rapaz. “O Senhor mentiu para nós”, ele pranteia, com a arma na mão. Afinal, A Onda era a sua vida. Posso imaginar o meu colega largando o seu caderno sobre o sofá e caminhando em direção ao quarto. Não se vê o seu rosto. Melhor nem tentar. No caderno de José, aberto sobre a almofada, entre anotações e uma folha rasgada, na página da direita destaca-se uma pergunta final:
Acompanhe a série de ensaios de Caio Gagliardi
Nesta série de ensaios literários, Gagliardi se propõe a traçar o retrato humorístico do professor como uma das personagens mais trágicas da modernidade.