Algumas faces de Sre?ko Kosovel

Por Pedro Augusto Pinto, cinco poemas — e as várias faces — de Sre?ko Kosovel, socialista esloveno cujo diapasão poético abrangeu, em curtos 22 anos de vida, do paisagismo melancólico ao vanguardismo iconoclasta.

por Pedro Augusto Pinto

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Meu poema é explosão,

é despedaçamento bruto, desafinação.

Nada tem que ver convosco

que por vontade, ou providência de Deus,

sois estetas mortos, mariposas de museus.

O meu poema é meu rosto.

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Sre?ko Kosovel, Meu poema (Moja pesem)

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Se há verdade nestes versos do poeta Sre?ko Kosovel (1904-1926), a tarefa de enxergar as faces deste socialista esloveno, cujo diapasão poético abrangeu, em curtos 22 anos de vida, do paisagismo melancólico ao vanguardismo iconoclasta, revela-se difícil e ingrata. Falado por cerca de 2 milhões de pessoas, o idioma esloveno não consta entre os mais acessíveis nem divulgados do mundo. As criações literárias nele produzidas padecem do mesmíssimo mal que sofrem aquelas produzidas no Brasil, não obstante o número mais de cem vezes maior de falantes nativos do português em todo o planeta. Se o rosto do poeta são os seus poemas, o que se tem é uma face encoberta, carente de decifração.

À marginalidade linguística e cultural somam-se ainda as vicissitudes da vida de Kosovel, sobretudo sua morte precoce, ocasionada por uma meningite. Hoje este fator biográfico por certo lhe é vantajoso, servindo à sua romantização e até mesmo à não rara comparação com outro poeta igualmente inventivo e precoce, porém central e consagrado, que foi o francês Arthur Rimbaud. Em vida, porém, a curta existência de Kosovel e sua ainda mais curta produção implicaram na publicação de um único livro (abrangendo apenas a primeira de suas muitas faces poéticas) e, principalmente, no legado de um vasto conjunto de esboços e publicações dispersos em cadernos e revistas, resgatados efetivamente só cinquenta anos após a sua morte.

Kosovel, assim, pode ser inserido sem dificuldades no rol de visionários cuja vida foi precocemente ceifada, mas não a tempo de lhe impedir que legassem à humanidade a particularidade de seu grito — no seu caso, o grito caleidoscópico de uma mente abalada pelos horrores da 1ª Grande Guerra, pelo desastre dos tratados que lhe puseram fim e pelas primeiras atrocidades do fascismo italiano. A cidade de sua criação, Tomaj, então pertencente ao Império Austro-húngaro, não era distante de um dos mais mortíferos frontes da Guerra de 1914 — o fronte de Isonzo, paisagem presente no Adeus às armas de Ernest Hemingway —, como também não era de Trieste. Centro cultural da região, a cidade hoje pertencente à Itália era então um dos portos mais importantes do império austríaco e contava com uma ampla população eslovena, sendo, ademais, por muitos anos a residência de James Joyce. Em sua infância, Kosovel conviveria simultaneamente com um rico ambiente cultural, onde o esloveno, o alemão e o italiano se entrecruzavam, e com os rumores e cadáveres do que, para a época, era a mais bárbara e mortífera carnificina de que se já tivera notícia. Não por acaso, foi para afastar os filhos da guerra que o pai de Kosovel o mandou, junto com sua irmã, para terminar os estudos em Liubliana.

A guerra, porém, havia de persegui-lo, e não apenas na memória de seus horrores. O faria também nas profundas marcas que deixou no sudeste europeu, impactado pelo colapso dos grandes impérios que dominavam a região bem como pela influência que o nacionalismo exerceria sobre suas mentes e sobre seu mapa. Como pontua o historiador britânico Eric Hobsbawm em seu Nações e nacionalismos, o aparentemente avançado princípio da autodeterminação dos povos, propalado pelo presidente norte-americano Woodrow Wilson nas negociações de Versalhes, teve como consequência a aplicação, não raro violenta, da ideia abstrata de Estado-nação sobre territórios secularmente dominados por impérios supranacionais, e habitados por povos dos mais distintos idiomas, culturas e religiões. No caso de Kosovel, o poeta veria o seu Carso natal — região que englobava tanto Trieste quanto o vilarejo de Tomaj — ser alvo da disputa entre o recém-criado Reino dos Sérbios, Croatas e Eslovenos e o expansionismo italiano, açulado pela insatisfação com os ganhos territoriais que obtivera na Primeira Guerra. O contencioso desaguaria no tratado de Rapallo de 1920, em que o reino eslavo seria constrangido a entregar todo o território, então já ocupado, para uma Itália prestes a testemunhar a ascensão de Mussolini. Se ainda antes da Marcha sobre Roma os esforços de repressão à língua e à cultura eslovena já se fizeram sentir na região, depois dela, então, se tornariam sistemáticos, culminando na proibição, em 1927, do uso em público do idioma eslavo.

As nefastas consequências do nacionalismo e a frustração generalizada com suas promessas se fundiriam, na mente do poeta, com a percepção de um mundo em rápida transformação. Tal amálgama se traduziu em uma busca poética pelo seu próprio tempo, sintetizada na adoção de um projeto, a seu ver, capaz de fazer frente aos desafios políticos, técnicos e estéticos de uma Europa dilacerada pela guerra de 1914: o socialismo e, junto com ele, o construtivismo. Como muitos de seus contemporâneos — havemos certamente de nos lembrar de Maiakóvski —, Kosovel enxergava na via socialista mais do que a perspectiva da revolução social: via nela a perspectiva da criação de um novo ser humano, livre dos delírios que haviam levado a Europa à guerra e das chagas que se acumulavam em uma sociedade ética e esteticamente agonizante, conforme atestado pela ascensão do fascismo na Itália e, uma década depois, do nazismo na Alemanha. Com sua morte precoce, Kosovel deixaria um testemunho das angústias e anseios de um período em que encontramos, para nossa infelicidade, não poucas correspondências com os dias de hoje.

As traduções que aqui apresentamos representam uma modesta tentativa de trazer, ao leitor de língua portuguesa, uma pequena amostragem das diversas faces deste grande poeta, praticamente desconhecido no Brasil e, ao que nos consta, nunca antes traduzido para o português. É de se pensar se os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, em suas incansáveis pesquisas sobre a “poesia de invenção”, não chegaram a se deparar com a sua obra em algum momento, e é de se lastimar que em sua espantosa versatilidade não o tenham traduzido. Não obstante a vasta gama de assuntos e recursos formais que encontramos na poesia do esloveno — o construtivismo é apenas uma de suas faces —, mesmo em suas primeiras obras, dedicadas à composição introspectiva e sombria das paisagens de sua terra, nota-se uma singular maestria no uso de colagens e justaposições de cenas e elementos locais — técnica que indubitavelmente repercutirá em suas criações mais ousadas e modernas, facilitando-lhe a tarefa de expressar a vida por si só disruptiva, discreta, estranhada, da sociedade mecanizada e de massas.

Conhecendo o esloveno apenas muito superficialmente, as traduções que apresentamos se valeram de um conhecimento profundo em uma língua prima, o russo, o que traz naturalmente consigo o risco dos falsos cognatos, que ocasionalmente talvez não tenhamos conseguido contornar. Do mesmo modo, valemo-nos também da edição em língua inglesa The Golden Boat: Selected Poems of Sre?ko Kosovel, onde constam traduções bastante literais dos versos do poeta esloveno, elaboradas por Bert Pribac e David Brooks. A estes dois recursos, soma-se ainda uma prática razoável na tradução de poesia, inspirada na teoria transcriativa do já mencionado Haroldo de Campos. Nesta publicação, selecionamos alguns poemas pertencentes à primeira fase de Kosovel, onde dominam a sombria paisagem do Carso e a introspecção. Outras faces do poeta virão em outras publicações. Sem dúvida, Sre?ko Kosovel segue no aguardo de uma tradução brasileira devidamente embasada em um conhecimento profundo tanto do idioma esloveno quanto de sua obra. Até lá, porém, esperamos que esta tentativa sirva ao menos para apresentá-lo ao leitor brasileiro, e até mesmo, quem sabe, instigá-lo ao estudo consequente de sua língua e de seus textos.

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Sre?ko Kosovel

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Outubro (Oktober)

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Úmidos, jardins resplandecem

no ouro da noite. Escurecem

os galpões marrons, cobertos de palha.

Do vento vespertino, descem

gotas de chuva sobre o chão.

Quietude, tristeza em meio ao coração.

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Frutas colhidas, latadas vazias,

onde a última folha inda queima,

andorinhas que voam sobre as torres,

na negra distância, um gorjeio teima.

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Tudo mudo, tudo morto

na noite melancólica, e em seu ouro.

Campos sombrios e, no peito, compresso,

do verde do céu — vê-se um reflexo.

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À noite, nós (Nocoj smo)

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À noite, nós ouvimos o vento

e não dormimos de todo,

quietos, conversamos sobre tudo

o que há de estranho e pavoroso.

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Como deve ser quando, no mar,

barcos, navios vão a pique

e quão frias, quão horríveis são

as ondas marinhas, terríveis.

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À noite, nós ouvimos o vento

e não dormimos nada de nada,

pensamos no quão belo seria

nadar com o vento além da enseada.

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A fria manhã reluziu

(dos navios, sabe Deus o paradeiro),

mas nós fomos ao jardim, e colhemos

um fruto vermelho sob as macieiras.

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Uma viagem (Potovanje)

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Aqui e ali. Uma curta viagem.

Uma árvore, um poste. Um morro. Um sobrado.

Frio — qual tristeza. Quais quietas miragens.

Tu partes. Batimento duro e pesado.

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Uma estação. Restaurante. E folhas

cobrem as mesas sob a castanheira.

E aquela moça. Está quieta e só.

Um olhar. Folhas. Impressão passageira.

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Estrangeiro: como o outono e esta estranha

fria, fugaz. Entre nós, é verão.

Folhas que voam. Adiante, a montanha.

Um túnel: seu olhar na escuridão.

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Noite sob a duna vermelha (Ve?er pod rde?o sipino)

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Cortinas azuis, de treva espessa,

despregaram-se do céu, tremulantes;

num instante, aquietaram-se os pinheiros,

como, num campo, detém-se um viajante.

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Atrás do morro, a vila escureceu,

e as íngremes estradas renasceram;

junto à duna, o barranco tem cheiro

de terra. Quieta, a torre sobre o outeiro.

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Obscuras silhuetas, passos surdos,

ceifeiros cruzam a estrada enlameada;

o gado, pesado, bebe de um poço,

se volta a ouvir a surda passada.

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Álamos sussurram, pendem as copas,

entre azuis almofadas, brilha a estrela;

os ceifeiros e o gado se dissolvem,

na espessa nuvem a lua se revela.

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O Carso é todo brando — qual soluço —

da capela, luz e som a flutuar;

um instante e, partido, como um rosto,

o deserto rochoso se cala ao luar.

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Estas palavras todas (Vse te besede)

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Estas palavras todas deveriam

ter o aroma de um mar de pinheiros,

qual estrela da manhã, que se apagasse

na aurora por detrás do outeiro.

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Porém é noite ainda, ainda é noite

e ainda tenho que acendê-las

para ficarmos nesta casa cinza,

no Carso, para ficarmos nela.

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Envolto em negro manto, eu as dirijo

ao vento, que se debate contra

a janela; minha mãe, porém, se levanta

pensa um pouco, e nada encontra…

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Já eu sou livre como o vento

e meu sono sequer se aproxima.

Ando quieto pelas ruas do Carso

que a noite me ilumina.

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Kosovel

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