A Noite n’O Lago da Lua

A opressão e a liberdade e os diferentes amores subjacentes à noite, em diálogo articulado por Rafael Rocca entre a poesia hesiódica e a poesia angolana de Ana Paula Tavares.

por Rafael Rocca

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Os temas elegidos para a poesia, considerando aqui a tradição ocidental propalada na Grécia antiga, foram retomados ao longo da história da literatura ocidental e retrabalhados conforme o sabor dos tempos. O amor, a guerra, a luta amorosa, o dia, o sol, o outro são alguns dos temas, motivos e assuntos que atravessam a literatura das formas mais díspares possíveis, ainda que se observe uma constância no pano de fundo do tratamento de alguns temas que, passem os séculos, parecem ser imorredouros. Um desses temas é o tema da noite. Desenvolvido com maior intensidade a partir da idade média, chegando a um de seus cumes no romantismo, o tema da noite foi referenciado e reverenciado, entre outros, pelos simbolistas franceses, primeiramente, tendo sido também objeto de poetas portugueses tais como Fernando Pessoa, Cesário Verde e Eugénio de Castro.

A literatura portuguesa foi uma grande influenciadora, através da língua e da colonização, embora dominadora, trágica e impositiva, da literatura de Angola. Além da dominação política, conforme nos informa Fanon, a imposição dessa língua nas escolas levou consigo a pretensão do domínio da língua portuguesa e de sua literatura sobre as manifestações locais. Tendo isso em vista, deve-se questionar, se pensarmos no assunto a ser brevemente exposto aqui, uma das origens do tratamento do tema da noite, não na literatura angolana propriamente dita, porém na literatura escrita a partir do signo da dominação portuguesa, talvez uma influência primeira na e, principalmente, imposta sobre a construção do imaginário literário das e dos poetas que escreveram em Angola. No entanto, e apesar disso, vale a importante menção à adaptação da literatura portuguesa ao contexto local de Angola como forma de resistência à total dominação do pensamento angolano pelo colonizador. O uso de termos e de expressões da língua dominada frente a construções linguísticas do dominador reflete uma atitude de resistência presente nos textos do colonizado.

Ana Paula Tavares, cujo livro O Lago da Lua é objeto do presente texto, tem em mente essa questão em sua escrita, ainda que não de forma predominante, como em outros autores, estes mais tendencialmente políticos no sentido de agentes de resistência. Vista de uma maneira geral, percebe-se não um afastamento dessa questão em sua obra, mas sim uma preocupação com a retomada de outros temas agora tratados de forma particular no imaginário poético que a autora constrói (por exemplo, a transformação da garota em mulher em Ritos de Passagem, e a libertação da sensualidade e da condição de mulher em O Lago da Lua e, de uma maneira geral, em toda a sua obra). Certamente, a retomada de alguns temas mais “clássicos”, por assim dizer, na poesia de Paula Tavares não afasta um posicionamento político subjacente àquela primeira camada textual, embora, no caso da poeta, ele seja tratado em diversas ocasiões de maneira indireta, principalmente ao falar sobre a condição do indivíduo e da coletividade angolana no contexto colonial no qual a escritora está inserida.

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Ana Paula Tavares

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A condição da mulher e a condição da libertação feminina, aqui com acentuado viés erótico, são dois temas que se destacam no livro O Lago da Lua. A condição de mulher, e não mais a de menina, conforme o poema de abertura do livro, “No lago branco da lua”, surge em diversos poemas se relacionando com a figura do Outro, notadamente a do homem (por exemplo, os poemas “O meu amado chega”, “Não conheço nada do país do meu amado”, “História de amor da princesa Ozoro”, entre outros). Ao mesmo tempo, a poeta afirma a mulher em si mesma através de sua preparação para a vida sexual madura, retratando-a em uma posição de dor, física e psicológica, perante a iminente entrega de seu corpo e de seus sentimentos a esse outro, na maioria das vezes inominado. A reprovação social consequente dessa mudança de atitude se torna uma preocupação para a mulher progressista devido ao medo de exclusão de seu meio social. Para a poeta, a libertação dessa mulher deve ocorrer, portanto, em um ambiente que propicie o abrigo e a proteção necessários para o extravasamento dos sentimentos íntimos. Segundo a persona poética, a noite oferece essa proteção necessária para a libertação total do ambiente opressor em que vive.

A noite, porém, pode ser um símbolo multifacetado. Ao ler a poesia de Ana Paula Tavares, nota-se uma aproximação a uma concepção particular de noite, aquela tratada pela poesia grega, expressa pelo eu lírico ao longo dos poemas de O Lago da lua. Tal escolha se deve ao fato de a mitologia grega estar presente explicitamente em um dos poemas do livro, “O Japão”, em que a influência do pensamento mítico grego se revela através de referências a narrativas mitológicas:

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[…] onde se deitam os amantes no seu pequeno êxtase de vinho e sacrifício.

Eros fitando a bela senhora da morte com seu escudo de olhos e seu corpo desnudo

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A referência explícita a Eros, o deus do amor carnal e físico, permite pensar em uma aproximação aos estudos clássicos realizados por Paula Tavares. Dada tal proximidade, e não somente no trecho citado, da mitológica grega à poesia de Paula Tavares, em relação ao tema da noite, um diálogo pode ser estabelecido entre a concepção de Hesíodo, na Teogonia, em relação à deusa Nýx, ou seja, a personificação da noite, e a concepção de Paula Tavares do que a noite significa para as mulheres retratadas em seus poemas.

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La Nuit, William-Adolphe Bouguereau, 1883

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Para que tal diálogo entre a obra de Paula Tavares e o pensamento grego mítico seja feito, é necessária uma breve explanação acerca da narrativa, na literatura grega antiga que nos chegou pela escrita, relacionada à deusa da noite, Nýx. Uma das primeiras menções, recolhida a partir de fontes orais, encontra-se na obra Teogonia, de Hesíodo.

A narrativa do nascimento da Noite está na parte academicamente dividida dos “Deuses Primordiais”, entre os versos 116 e 153. Para os fins deste texto, transcrevo o momento exato do nascimento da Noite, aqui em tradução de J. A. A. Torrano:

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……124………………………. Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.

…………………………………..Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,

…………………………………..gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.

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Relata-se aqui a interpretação cosmogônica do nascimento da Noite a partir de Caos, momento em que ainda não havia uma forma dada ao plano terrestre e o dia e a noite eram necessários para o equilíbrio buscado pela ordem mítica grega. O fato de a Noite nascer do caos é revelador para a interpretação dos poemas de Paula Tavares, em que o conceito de ordo ab chaos se faz premente na afirmação feminina pela poeta. A Noite, além disso, gerou o Éter, ou seja, o espírito das coisas, e o Dia.

Porém, relevantes são também os filhos que a Noite gerou durante seu estabelecimento na criação do mundo e dos seres posteriores. Hesíodo, novamente, dá-nos a lista filial e os conceitos concebidos pela ação da noite na cosmogonia mítica:

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……211……………………….Noite pariu hediondo Lote, Sorte negra

…………………………………..e Morte, pariu Sono e pariu a grei dos Sonhos.

…………………………………..A seguir Escárnio e Miséria cheia de dor.

…………………………………..Com nenhum conúbio divina pariu-os Noite trevosa.

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Assim Hesíodo lista, na divisão acadêmica “Os filhos da Noite” (versos 211 a 232), as entidades que foram geradas por ela: o Lote (ou seja, a parte devida a cada coisa), a Sorte negra (o destino implacável), a Morte (metáfora recorrente da morte como a escuridão e, por extensão, a noite), o Sono (Hýpnos, em grego, também um deus), a grei dos Sonhos (ou seja, as mensagens divinas enviadas por meio de Hýpnos para a transmitir advertências aos mortais e aos outros deuses), Escárnio (a traição, o desprezo e a indiferença), a Miséria (que, como na falta de luz que produz a escuridão, decorre da falta de algo), além da Noite trevosa (a noite inquieta, sem estrelas e sem luz, ou seja, sem esperança). Hesíodo atribui, portanto, à Noite um papel de geradora de alguns males, porém também da justa divisão (o Lote), que, mais tarde, irá se transformar no conceito de moira (em grego, “parte”) e de justiça distributiva.    No entanto, a concepção hesiódica da Noite sofreu alterações conforme a sociedade grega desenvolvia seu pensamento. Pierre Grimal, em seu dicionário de mitologia, recolhe essas transformações e sintetiza em um verbete os diversos atributos concedidos à Noite:

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Ela própria concebe dois elementos, o Éter e o Dia, e toda uma série de abstracções: Moro (a Sorte), as Ceres, Hipno (o Sono), os Sonhos, Momo (o Sarcasmo), a Angústia, as Meras, Némesis, Apaté (o Engano), Filotes (a Ternura), Geras (a Velhice), Éris (a Discórdia) e, finalmente, as Hespérides, que são as filhas do Entardecer.

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Pela compilação das narrativas posteriores a Hesíodo, e a Homero, percebemos que a Noite encarnou tanto aspectos negativos (tal como a Angústia de noite irrequieta) quanto positivos (a Ternura), além da Velhice, símbolo da passagem do tempo e da brevidade e limitação da vida (conceito próprio aos mortais). As diferentes qualidades da Noite regerão seu uso nos textos literários que invoquem ou que retratem a divindade noturna.

Paula Tavares inicia seu livro O Lago da Lua com o poema “No lago branco da lua”, em que descreve a situação da passagem de garota a mulher com a chegada da primeira menstruação. A Noite já se encontra presente como um pano de fundo a esse rito de passagem: o contraste quase barroco entre a lua, a claridade da situação provocada por essa passagem, e a inserção dessa lua, um ponto claro, na noite escura, subjetivando e sugerindo formas em penumbra, incluindo a mancha escura do sangue. No poema seguinte, “Ex-voto”, o eu lírico explicita a sede (sensual) que sente: seu “corpo de rapariga” será a oferenda ao mundo adulto, à sexualidade então latente, o corpo oferecido e adornado para o amor físico. A passagem completa à sensualidade, com a respectiva introdução da Noite, será dada no poema “Canto de nascimento”. Nele, o eu lírico reafirma o fogo (a sede sensual) dos poemas anteriores, que pode indicar um fio vermelho entre os poemas com a preparação dos sentidos para a recepção da cerimônia da carne. Ainda há dia (“o dia parou sua lenta marcha/de mergulhar na noite”), prolongado, um como que interromper do tempo, apesar do contraste com o crepúsculo que se aproxima. Mais adiante, a noite cai e, com ela, vem a libertação: “Uma mulher oferece à noite/o silêncio aberto/de um grito”; esse grito silencioso, evidenciado no poema “Aquela mulher que rasga a noite”, não é sempre, no entanto, de dor e de angústia: são “os pássaros/que lhe povoam a garganta”, a imagem das asas aqui se voltando à liberdade que pode ser conquistada em detrimento da estreiteza própria aos ritos de passagem. Por isso, a poeta oferece ao eu lírico a Noite como libertação, ou seja, a personificação da Sorte e do destino, bem como a proteção da cobertura do escuro, em que se turvam os contornos e o incógnito pode ganhar mais espaço para se manifestar.

A Noite como libertação, fruto do Lote e da divisão justa entre as partes, oferecerá ao sujeito poético a possibilidade de extravasamento de seus sentimentos. Dessa maneira, “chegou a noite/onde habito devagar/sou a máscara/Mwana Pwo em traje de festa”: a máscara possui aqui dupla significação. Ela representa, no ideário angolano, a elegância e a graciosidade da mulher, os atributos da menina, porém representa também a proteção da ocultação da identidade para o refreamento do sofrimento. Novamente, o escuro da noite protege a mulher, que pode encontrar nela as asas necessárias para a libertação da sensualidade (“de noite todos temos asas”), pois “nada acontece antes da noite” (p. 93).

O diálogo estabelecido com o mito grego da Noite que vem se construindo nas camadas dos poemas é ainda mais intensamente vivido em seu aspecto negativo. Como na Grécia, a noite também é o momento em que os crimes, em sentido amplo, passam despercebidos devido àquela mesma proteção que a noite dá à libertação. Para o eu lírico de O Lago da Lua, a noite também se transforma em objeto de angústia e de dor, de solidão e de desespero. Transcrevo aqui o poema “Mukai (3)”:

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Mukai (3)

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(Mulher à noite)

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Um soluço quieto

desce

a lentíssima garganta

(rói-lhe as entranhas

um novo pedaço de vida)

os cordões do tempo

atravessam-lhe as pernas

e fazem a ligação terra.

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Estranha árvore de filhos

uns mortos e tantos por morrer

que de corpo ao alto

navega de tristeza

…..as horas.

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A indicação de abertura do poema após seu título em língua africana, uma didascália entre parênteses “(Mulher à noite)”, estabelece desde já o cenário, o espaço e o tom do restante do poema. A noite, para essa mulher, assim como a Noite para a mitologia grega, é uma das fontes de sofrimento que derivam da reflexão. O “soluço” carrega em si, semanticamente, toda a carga valorativa da deusa Nýx: de Angústia, de apaté, de Miséria cheia de dor. Os filhos, para o eu lírico, são o fruto dessa dor; a incerteza, outro fruto (amargo, como o título da coletânea de poemas, Amargos como os frutos) da reflexão noturna, da possibilidade de sobrevivência dos filhos (na noite) evoca, como no outro poema acima, o prolongamento da percepção do tempo, pois que a pessoa está “navegando de tristeza” as horas lentas. O sentimento é aflitivo, sufocante, difícil de ser compreendido, ou seja: “desce/a lentíssima garganta”. Com o mesmo teor, o poema seguinte, Mukai (4), reafirma o soluçar transformado em grito desesperado: “Um grito espeta-se faca/na garganta da noite”. O suportar do sofrer e o aguentar da dor transformam o eu lírico em uma heroína através das provações da vida; o título dado aos quatro poemas (“Mukai”, heroína, em pashtun, nome de origem paquistanesa presente em África) evidencia essa situação do eu lírico.

Na narrativa mítica grega, a Noite era uma das primeiras criações do mundo, o início de um princípio de ordem a partir do caos existente anteriormente. A noite, por ser escura e, por isso, misteriosa possibilita múltiplas percepções: nela se revelam na mente dos seres a angústia, a ruína, o sarcasmo, a justiça distributiva, o Lote, mas também o descanso, a ternura e a sexualidade, especialmente aquela associada a Eros, deus do amor erótico.

Para Ana Paula Tavares, a noite representa uma dualidade entre a iluminação ofuscada da lua, luz que sugere mais que explicita, refletindo nos sentimentos a mesma aparência umbrosa e indefinida; representa, também, o amor sensual, ainda que acompanhado de insegurança e medo, possibilitado pela proteção dada pela escuridão da noite, assim como a libertação e a afirmação da mulher em relação ao seu corpo no sentido erótico (Eros). No entanto, essa noite angolana também se relaciona àquela concepção grega de noite que se afirma através da dor e do sofrimento, aqui o da mulher, da Angústia, do Sarcasmo, da justiça e da injustiça. Com esse paralelo e esse arco literário, Ana Paula Tavares procura, em sua obra poética, lançar um pouco de luz dentro dessa noite interminável que é a opressão e o universo femininos.

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Natten, Peter Nicolai Arbo, 1887

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Leitura complementar e referência

HESÍODO. Teogonia. Trad. JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2012.

TAVARES, Ana Paula. O Lago da Lua. In: Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

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