por Christian Edward Cyril Lynch
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A história da Revolução Francesa e de Napoleão Bonaparte já foi contada milhares de vezes. Há, porém, na vasta bibliografia, um curioso livro publicado em 1827, na esteira dos vários que se seguiram à morte do imperador em seu exílio na Ilha de Santa Helena: La legende du faux Bonaparte (A lenda do falso Bonaparte). Seu autor, Louis-César Phare, teve seus quinze minutos de fama em 1834 em uma polêmica travada nas páginas da Revue des Deux Mondes, na qual defendia as teses de Saint-Simon contra o liberalismo econômico de Jean-Baptiste Say. Redescoberto na Biblioteca Nacional da França, o livrinho foi republicado há pouco tempo, porque contém um fato inédito sobre a biografia do imperador francês, que vale a pena divulgar ao público brasileiro.
Em O falso Bonaparte, Phare começa descrevendo as condições que levariam Napoleão ao poder. Ele escreve que, ao longo da década de 1780, havia uma sensação difusa no país de que o regime político falira; que as diversas facções políticas, compostas por dinastias familiares que se perpetuavam no poder, ao invés de atender ao bem comum, haviam reduzido a política a uma competição oligárquica por pensões, cargos e privilégios. Convocado por novas lideranças, o povo francês já farto explodiu afinal em 1789 em protestos pelas principais cidades do país, reivindicando sua soberania e exigindo um novo sistema político mais democrático e representativo, sem o predomínio das velhas raposas da aristocracia de Versalhes. Incapaz de responder às demandas, habituado às velhas práticas, a monarquia logo perdeu o controle do processo político. Surgiu uma vanguarda revolucionária na esteira da tomada da Bastilha, que acreditava na necessidade de métodos radicais de fazer justiça e purgar a classe política de seus vícios. Os chamados jacobinos instituíram tribunais revolucionários, cujos juízes recorriam a toda a espécie de expediente para condenar os velhos oligarcas à morte através de processos de rito sumário e sem apelo. Uma das primeiras cabeças a rolarem, por determinação da convenção jacobina, foi a da rainha Maria Antonieta, como principal responsável pela incapacidade administrativa que fizera do governo da França um joguete nas mãos dos aristocratas. Seguiram-se depois as cabeças de vários antigos ministros de Estado e mesmo de membros da Convenção, todos vitimados pela guilhotina da justiça de exceção criada pelos juízes jacobinos.
Como se sabe, a revolução mergulhou a França durante anos em um torvelinho de instabilidade política e completa insegurança a respeito do futuro. Uma crise econômica pavorosa estourou de forma concomitante às guerras em que o país se envolveu, obrigando à emissão de enorme quantidade de papel, gerando inflação e depressão econômica. A anarquia reinante levou a classe política a reagir contra os jacobinos durante o chamado Termidor (ou “Temerdor”, no dialeto bretão), que tentou estabilizar o país e dar um paradeiro à revolução. Mas o diretório que assumiu então o poder por delegação da Convenção nacional, chefiado por Michel-Paul Barras, não gozava de absolutamente nenhuma popularidade, tendo em vista suas ligações com o antigo regime e sua fama de corrupto, o que levava os jacobinos remanescentes a continuarem a exigir sua cabeça (literalmente). Mas, embora fartos de Barras, já ninguém se dispunha a ir às ruas. A nação estava cansada de tanta instabilidade política. A saída foi, como se sabe, recorrer ao carisma de um general laureado em batalhas. Foi então que apareceu Napoleão Bonaparte, celebrizado pelas mais brilhantes vitórias da França. O golpe de 18 Brumário, que criou o regime do Consulado e o elevou ao posto de primeiro cônsul, foi recebido com alívio pela nação, que viu na entrega do governo ao general a esperança de consolidar os benefícios da revolução com o retorno da ordem.
É a partir daí que o livro de Phare adquire verdadeiro interesse e justifica o resgate que teve do esquecimento, porque conta uma história até hoje ignorada e praticamente inacreditável, que não se sabe se é verdadeira ou se é lenda. Como se sabe, não dispondo de pessoal próprio para governar, Bonaparte cercou-se de militares de elevada patente, para não deixar dúvidas sobre o retorno a um regime de ordem e autoridade. Mas, nos primeiros meses, nada saiu conforme o planejado. Bonaparte agia erraticamente, gerando desordem e dúvida. Permitia que sua numerosa família, de origem italiana, se metesse em todos os assuntos do governo. Notícias anunciadas à imprensa com pompa e circunstância eram frequentemente desmentidas. Projetos eram abandonados sem explicação. A família do primeiro cônsul se deixava influenciar por um astrólogo, Olave de Chêne, que se dizia discípulo de Nostradamus. Refugiado na Inglaterra para fugir do Fisco, De Chêne denunciava de seu refúgio em Bristol a existência de uma vasta conspiração maçônica voltada para a subversão universal. O próprio Bonaparte parecia irreconhecível, gaguejando diante dos soldados. Era incapaz de articular um discurso com início, meio e fim, e seus pronunciamentos públicos eram incrivelmente reacionários, recheados de palavras de baixo calão. Em audiências e reuniões ministeriais, ele passava a maior parte do tempo repassando a correspondência com seu astrólogo ou jogando cartas a dinheiro com seu ajudante de ordens, manifestando grande talento como blefador.
Os primeiros meses do governo revelavam-se um verdadeiro fiasco, gerando embaraço e decepção na população que apoiara o golpe do 18 Brumário. A cada crítica que recebia, o chefe do Estado respondia sempre com o mesmo truque: a ameaça de outro golpe de Estado. Irritados com a anarquia administrativa provocada pela ingerência da família Bonaparte e do astrólogo De Chêne no governo, o alto comando do exército francês incumbiu o Marechal Ney de procurar o chefe de polícia, Joseph Fouché, para conduzir uma investigação secretíssima, a cujos arquivos Phare foi o primeiro a ter acesso. As investigações levaram algumas semanas, envolvendo o envio de agentes secretos em diversos países da Europa e da África, onde Bonaparte comandara suas tropas nos anos anteriores. Por fim, a verdade foi descoberta. Tratava-se, não do verdadeiro Bonaparte, mas de um sósia, que nunca vira uma batalha e nunca passara de alferes. O verdadeiro Napoleão havia se escondido no Egito, vivendo em um serralho, cercado de mulheres e eunucos, como um verdadeiro sultão. Para tornar seu disfarce mais perfeito, ele passara a professar o islamismo, razão pela qual se tornou conhecido no Cairo pelo apelido de “le grand maure” (“o grande mouro” ou “mourão”). Descoberta a farsa, Ney dirigiu-se ao Egito e apelou para o patriotismo do pequeno caporal que, afinal convencido, retornou à França para assumir o governo. O caso foi abafado e tratado como segredo de Estado. Uma junta médica veio a público atribuindo o estranho comportamento do cônsul como resultado de um impaludismo mal curado, contraído na campanha da África, mal de que ele agora se achava plenamente recuperado. A França conseguiu encontrar alguma estabilidade administrativa e o general, como se sabe, acabou coroado imperador na catedral de Notre Dame. Quem se deu mal foi o falso Bonaparte que, ao invés de recompensado pelo “grande mouro”, acabou internado em um manicômio junto com os filhos, onde passou o resto da vida, gritando ser o verdadeiro Napoleão. Lições da história…
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