por Desidério Murcho
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Imagine-se que um dia de manhã uma pessoa entra na cozinha e encontra escrita no chão a palavra “Mimi”. Fica surpreendida e tenta descobrir quem escreveu tal coisa. Acaba por descobrir que o frigorífico tem uma avaria e o fluido escuro que dele sai formou por puro acaso essa palavra no chão. Pergunta obtusa: quem é a Mimi? A pergunta é obtusa porque é evidente que aquela palavra não refere seja o que for; na verdade, não é sequer uma palavra, mas apenas um conjunto de marcas aleatórias que, por coincidência, têm a mesma configuração de uma palavra da língua portuguesa.
Este exemplo torna mais evidente a nossa perplexidade: o que faz de um conjunto de marcas ou sons ou outras entidades físicas um símbolo? O que lhes dá poder simbólico? O que faz delas entidades linguísticas?
Nada há nas próprias marcas “Marie Curie”, escritas num papel ou no ecrã de um computador, que as façam referir aquela cientista; o seu poder simbólico, como o de qualquer outro símbolo, não se encontra nas marcas, mas antes no uso que as pessoas fazem delas. Daí que seja crucial compreender que os símbolos não se reduzem às suas componentes físicas. Nem os sons, quando se profere “Marie Curie”, nem as marcas escritas algures, explicam só por si o poder espantoso que têm de referir uma pessoa que morreu em 1934, e que muitas pessoas não reconheceriam caso se cruzassem com ela na rua. Uma entidade física, como um conjunto de traços num papel ou um conjunto de sons, só é uma entidade linguística se for coordenadamente usada por agentes linguísticos.
Emerge aqui um triângulo linguístico, que é um ponto de partida iluminante para uma compreensão sólida da linguagem. Numa das pontas do triângulo estão entidades físicas, como sons, marcas ou gestos. Estas entidades são coordenadamente usadas pelos agentes linguísticos, que estão na outra ponta do triângulo, para falar do que está na sua terceira ponta: aquilo de que se quer falar, como árvores ou tempestades, animais ou cientistas brilhantes. Assim, um símbolo não é meramente uma entidade física, mas antes uma entidade física coordenadamente usada por agentes linguísticos. Consequentemente, os símbolos são entidades relacionais. Mas que quer isto dizer?
Considere-se a relação de maternidade. Quando uma pessoa é mãe de outra isto é algo que não se vê diretamente, olhando para cada uma delas, nem para ambas. É preciso conhecer a história biológica de ambas, para concluir então que uma é mãe da outra. Não se sabe disso de maneira mais direta, só por olhar. O mesmo acontece com os símbolos. Porque são entidades relacionais, que envolvem o uso coordenado de agentes linguísticos, quando se olha apenas para as suas componentes físicas — marcas num papel, sons ou gestos — não se consegue ver como têm poder simbólico. Por que razão algumas entidades físicas são símbolos e outras não? A resposta depende exclusivamente do uso coordenado que os agentes linguísticos fazem dessas entidades físicas, e é a esse uso coordenado que se chama “convenção linguística”. Em si, nada numa entidade física, por si própria, explica o seu poder simbólico. Contudo, se vários agentes linguísticos se coordenarem entre si, as entidades físicas ganham precisamente esse poder.
A coordenação dos agentes linguísticos, condição necessária para que as entidades físicas como as marcas e sons funcionem simbolicamente, tolera variações; não exige que todos os agentes linguísticos usem as entidades físicas como símbolos exatamente da mesma maneira. Porém, é imperativo que exista alguma regularidade. O som e as marcas “água” querem dizer “água” em português apenas porque há suficiente regularidade no modo como várias pessoas usam essas entidades físicas para falar da água. Isto é compatível, contudo, com o uso dessas entidades para falar de outra coisa. As normas linguísticas são compatíveis com alguma flexibilidade; mas, como qualquer norma, não existem sem alguma regularidade. As linguagens sintaticamente articuladas não são estáticas, no sentido de serem usadas sempre e exclusivamente de uma dada maneira. Pelo contrário, são usadas com imensas variações, muitas das quais visam muitos outros efeitos que não exclusivamente falar do que aparentemente está na outra ponta do triângulo. A mesma frase proferida com entoações diferentes ou por pessoas diferentes pode ser ofensiva ou esclarecedora, uma mentira ou uma tentativa de ludibriar e manipular, ou um ato generoso de ensino e esclarecimento. Exatamente como os animais não-humanos usam todos os truques para se alimentarem dos outros, ou para se protegerem dos predadores, ou para ganharem na corrida reprodutiva, os seres humanos usam a linguagem para muitos fins sociais e manipuladores, muitos dos quais imorais ou doentios.
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Qualquer entidade física facilmente acessível aos agentes linguísticos é suscetível de ser usada como símbolo; não é preciso que seja um conjunto de sons ou de marcas escritas. Um casal pode combinar que quando um deles sai para ir ao supermercado, deixa a luz da cozinha acesa. Isto não quer dizer, porém, que qualquer entidade física serve para qualquer uso simbólico; pelo contrário, algumas entidades físicas são melhores para simbolizar algumas coisas, e outras para outras. Uma luz da cozinha acesa significa muito facilmente que o outro membro do casal foi ao supermercado, mas não seria fácil usá-la para exprimir ideias articuladas. É neste ponto que é importante compreender o conceito de protolinguagem, que se encontra entre os animais não-humanos, mas também entre os humanos. Uma protolinguagem é como que um sistema simbólico simples, muitas vezes usado sem que os agentes tenham quaisquer capacidades linguísticas articuladas. Uma ave solta um grito quando vê aproximar-se um predador; as outras levantam voo apressadamente e evitam assim um ataque mortal. Porém, não é preciso haver aqui algo como uma intenção comunicativa; uma reação instintiva basta.
As protolinguagens guardam grande parte dos aspetos causais e correlacionais dos sinais ou pistas naturais. Um tigre passa por um dado local e deixa as suas pegadas; estas são sinais da sua passagem, e estes sinais são causais. O fumo é sinal de fogo, mas neste caso é só uma correlação porque algumas combustões libertam fumo sem que se trate de fogo propriamente dito. Os animais não-humanos procuram estes tipos de sinais e reagem-lhes: um aroma indica a proximidade de uma presa ou de um predador. Os sinais distinguem-se dos símbolos porque os primeiros mantêm uma ligação causal ou próxima disso com o que assinalam, e não carecem do uso articulado de agentes linguísticos; em contraste, alguns símbolos mantêm ainda algo como uma ligação causal com o que simbolizam, mas em muitos casos isso não acontece: o símbolo “Marie” não tem qualquer relação causal relevante com ela, ainda que os usos que se fazem desse símbolo mantenham uma ligação causal com o ato de batismo em que esse nome próprio foi dado ao bebé Marie. Simplificadamente, é razoável considerar que os símbolos são descendentes dos sinais naturais, tendo perdido o aspeto causal destes últimos e, precisamente por isso, passando a exigir o uso coordenado de agentes linguísticos.
Nem todos os conjuntos de símbolos são simbólicos, pois “ajhnsr” é um conjunto de símbolos da língua portuguesa, mas não é um símbolo seja do que for. Para que um conjunto de símbolos seja simbólico, é preciso que a própria maneira como estão organizados obedeça a uma convenção linguística. E é neste ponto que se chega a um aspeto importante das linguagens articuladas, e que mais fortemente as distinguem das protolinguagens. Quando um grito de uma ave quer dizer que se aproxima um predador, esta informação vital é insuscetível de ser mais cuidadosamente especificada; não diz se o predador vem voando ou correndo, do norte ou do sul, nem se é preto ou azul. Contudo, representa adequadamente uma parte da realidade crucial para a sobrevivência daquelas aves. O que falta é um aspeto da linguagem cuja introdução no planeta mudou radicalmente as coisas: a estrutura sintática. Para compreender o que está aqui em questão, considere-se a seguinte frase:
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Não há muitas pessoas que saibam que, em 1931, Adolf Hitler foi aos EUA, visitou vários pontos de interesse, teve em Keokuk, Iowa, um caso amoroso com uma senhora de nome Maxine, experimentou peyote (o que o fez ter alucinações com hordas de rãs e sapos que calçavam botinhas vermelhas e cantavam o Horst Wessel Lied), infiltrou-se numa fábrica de munições perto de Detroit, encontrou-se secretamente com o vice-presidente Curtis para tratar de futuros compromissos comerciais relativos às peles de foca e inventou o abre-latas elétrico. (William Lycan, Philosophy of Language: A Contemporary Introduction. Londres: Routledge, 2008, p. 1)
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Não há muitas pessoas que saibam disto, porque é tudo falso. O surpreendente, contudo, é que se seja capaz de compreender uma frase muitíssimo complexa, que nunca se leu nem se ouviu anteriormente. Ao contrário dos gritos simples dos animais, não se trata de voltar a ouvir aproximadamente o mesmo e de reagir da mesma maneira, um pouco como as pegadas de um tigre seguem sempre aproximadamente o mesmo padrão. No caso das frases de linguagens articuladas, introduz-se duas novidades de monta intimamente relacionadas: a estrutura gramatical e a recursividade. São estes aspetos que permitem compreender uma frase delirante como a de Lycan, que nunca se leu nem ouviu anteriormente. Na verdade, desde crianças que os seres humanos ouvem diariamente frases que nunca tinham ouvido, e compreendem facilmente o seu significado.
Com base apenas num número limitado de palavras e de regras gramaticais, as linguagens sintaticamente articuladas permitem formar um número infinito de frases, desde que se atenda às suas regras de formação. Esta é a magia da recursividade. Mesmo quem não sabe lógica consegue ver facilmente como se forma um número infinito de frases partindo de uma só frase e de um único operador de frases. Considere-se qualquer frase declarativa assertiva, como “Marie Curie viveu em Paris”. Usando p para especificar a forma lógica de qualquer frase como esta, que não inclua operadores verofuncionais, vê-se facilmente que acrescentando a p apenas um operador muito simples de formação de frases — a negação — se obtém já um número infinito de frases: não-p, não-não-p, não-não-não-p… A ideia da recursividade é esta: aplica-se uma operação a um elemento linguístico e obtém-se outro, ao qual se consegue voltar a aplicar a mesma operação, e assim sucessivamente, sem parar. Claro que as frases obtidas no caso da negação são banais: qualquer número par de negações são equivalentes a p apenas, ou a não-p se o número for ímpar. Contudo, isto é suficiente para ilustrar o poder da recursividade. A recursividade é um dos aspetos que explica o salto cognitivo humano, relativamente a outros animais, e talvez esteja na base do que por vezes se chama a “revolução cognitiva” do Homo sapiens.
A recursividade foi até agora explicada e ilustrada de um ponto de vista meramente sintático, mas é o seu aspeto semântico que torna mais vívido o seu impressionante impacto. Considere-se a profunda e por vezes trágica diferença de significado entre “O Pedro ama a Maria” e “A Maria ama o Pedro”. Os símbolos usados nas duas frases são exatamente os mesmos, mas a diferença de significado é profunda. Com respeito às linguagens articuladas, aquelas que inequivocamente não são meras protolinguagens, como gritos de alarme e coisas semelhantes, o significado não depende exclusivamente dos símbolos, tomados atomicamente, mas também da maneira como os símbolos se organizam — um pouco como uma molécula de água não é apenas uma molécula de oxigénio e duas de hidrogénio, pois é também preciso que essas moléculas estejam adequadamente combinadas. Assim, o que a recursividade permite é formar significados novos, em número infinito, com base num número limitado de significados, desde que a linguagem em questão tenha estrutura sintática, ao invés de ser uma mera aglomeração não-significativa de significados — ou uma aglomeração não-simbólica de símbolos.
Em suma, compreende-se aquela frase surpreendente de Lycan porque a língua portuguesa tem estrutura sintática, e esta depende de um número finito de regras e símbolos, mas permite formar um número infinito de frases diferentes, dotadas de significados novos.
Consequentemente, para compreender a linguagem é de importância capital não pensar que se trata apenas de juntar nomes próprios, ou algo que faça as vezes de nomes próprios, mas aplicado a ações e acontecimentos. Uma frase não é uma mera concatenação de símbolos; é uma concatenação simbólica de símbolos, num sentido mais profundo: a maneira como os símbolos estão concatenados tem em si um poder simbólico que excede a mera soma dos significados dos símbolos que constituem as suas partes. Sem atender à estrutura, não se compreende a natureza da linguagem. Uma maneira dramática de ilustrar a diferença entre dominar realmente uma linguagem, o que implica dominar as regras de formação de concatenações simbólicas, e dominar apenas a função elementar de nomear algo, é ver o que acontece no caso de alguns animais não-humanos que dominam aparentemente algo como conceitos numéricos — mas quando se vê com mais cuidado descobre-se que não é exatamente isso. No caso dos chimpanzés,
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consegue-se ensinar-lhes os sinais para um, dois e três, mas depois encaram o “três” como “o que for maior do que dois”. Ensinar-lhes o número quatro envolve desaprender este entendimento do três, mas então passam simplesmente a entender “quatro” como “o que for maior do que três”. Para lhes ensinar o número cinco é preciso começar tudo de novo, fazendo-os desaprender este entendimento de “quatro”. Cada novo número tem de ser ensinado por meio do mesmo processo árduo. Nunca o chimpanzé “apanha a coisa”, como as crianças humanas. Aprendem os números como nós aprendemos os nomes dos objetos. Podem fazer listas de nomes, mas nunca aprendem o procedimento a que chamamos “contar”. (Joseph Heath, Enlightenment 2.0: Restoring Sanity to our Politics, our Economy, and our Lives. Toronto: HarperCollins, 2014, loc. 793–799)
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Este procedimento é simplesmente a aplicação recursiva da operação de somar uma unidade. Uma criança que começou a aprender a contar talvez não se lembre do nome do número doze, mas sabe três coisas: que esse número existe, que resulta de somar uma unidade ao onze, e que permite formar o treze se lhe for somada uma unidade. É a recursividade que dá às linguagens sintaticamente articuladas o seu imenso poder representativo, e que difere do poder simbólico de outros sistemas de símbolos.
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