por Júlio Pimentel Pinto
O que hoje conhecemos como ‘o passado’ não é o que alguém experimentou como ‘o presente’. Em alguns aspectos, nós conhecemos esse passado melhor do que aqueles que o viveram. […] Tanto a estrutura quanto o conteúdo da ficção contemporânea reorganizam substancialmente o passado.
David Lowenthal. The Past Is a Foreign Country, p. 191 e 227.
Uma ilustração, supõem alguns, pode valer mais do que muitas palavras. Quando não entendemos algo, pedimos que alguém nos esclareça o assunto. Aquele amigo que não se deixa levar pelo desvario, o que sempre pondera e encontra caminhos e soluções, é obviamente uma pessoa lúcida. Uma grande ideia — eureca! — é representada como uma lâmpada acima da cabeça do gênio.
Faz séculos que tomamos luz e razão como sinônimos, recorremos dezenas de vezes no cotidiano a expressões que confirmam essa associação e nem nos damos conta disso. Sequer paramos para pensar que só nascemos porque nossa mãe nos deu à luz, ou que este texto — e todo livro — uma vez publicado terá vindo à luz.
Aqui no Ocidente é comum associar a conexão entre inteligibilidade e luminosidade a um movimento intelectual ocorrido há quase três séculos e chamado de Iluminismo ou Ilustração. Não foram, porém, Voltaire, Rousseau e seus contemporâneos que inventaram as metáforas luminosas. Tudo começou bem antes deles.
Mesmo quem não é leitor habitual da Bíblia já ouviu, talvez de relance, o salmo que diz que “O Senhor é minha luz e minha salvação”. Ainda mais cedo do que os relatos religiosos fundacionais, é possível imaginar uma cena primal — cuja confirmação obviamente é impossível — com ancestrais longínquos em torno de uma fogueira e a percepção súbita de que a luz do recém descoberto fogo oferecia possibilidades que inexistiam na obscuridade.
Numa linda palestra dos anos 1980, Marilena Chauí explorou longamente um desdobramento significativo da associação entre luz e intelecção: a iluminação prolonga o olhar, amplia sua capacidade de conhecer mais e, assim, compreender mais.
Nenhuma luz real ou metafórica, porém, pode prescindir de seu antônimo, a obscuridade. Isaías, no Velho Testamento, atesta que “o povo que caminhava nas trevas viu uma imensa luz”. Os renascentistas trataram a Idade Média pejorativamente como uma era de trevas. Séculos e séculos depois, uma narradora de Chico Buarque, inconformada com a opção da filha, ameaça recolhê-la “para sempre à escuridão do ventre”.
Platão, na célebre alegoria da caverna, equipara o conhecimento do mundo ao Sol e o contrapõe à limitada e equívoca percepção daqueles que só enxergam sombras projetadas. É difícil dizer se hoje, 2019, habitamos dentro ou fora das cavernas, se conseguimos vislumbrar (vislumbrar: mal alumiar, enxergar pouco) algum resquício de luz, se nos conformamos em residir nas sombras, se buscamos ou não o lume. Inclusive porque a alegoria de Platão multiplicou-se em muitas outras. E porque, há milênios, nós abandonamos as cavernas reais para nos confinarmos em grutas verticais e sobrepostas ou em antros metafóricos. Sabemos, entretanto, que só cabe falar de luz se houver a possibilidade da escuridão e que, às vezes, falar de sombras é uma maneira de aludir às luzes.
Talvez se justifique assim o título da série de livros que o escritor amazonense Milton Hatoum começou a publicar em 2017: O lugar mais sombrio. Naquele ano saiu o primeiro volume, A noite da espera, e agora Pontos de fuga, que é o segundo. Ainda haverá um terceiro.
Os dois romances que já vieram à luz cobrem aproximadamente uma década da história brasileira: do final dos anos 1960 até 1980 — tempos da ditadura militar —, acompanhando a trajetória de uma geração que nasceu na década de 1950, cresceu em meio ao furor desenvolvimentista, sonhou com os projetos irrealizados de reformas sociais do governo de João Goulart e acordou no pesadelo do golpe de 64.
Os livros estruturam-se a partir de material e vozes plurais, compostas por narrações, fragmentos de diários e de cartas. Compõe-se aos poucos um mosaico que inclui personagens de evidente inspiração real — por exemplo, o Manequim, filho de um político nordestino que havia matado um colega parlamentar no cenário do Congresso — e outros que ilustram a diversidade de posturas ante o autoritarismo.
Em A noite da espera, Brasília é personagem e cenário primordial. Por lá circula Martim, dezesseis anos e narrador principal do romance, que acabava de chegar à jovem capital, acompanhado por Rodolfo, pai, engenheiro e ambicioso. A mãe Lina, professora de francês, ficara em São Paulo depois da separação, e agora vivia com um novo companheiro, de quem Martim sabe pouco: “um artista”, na definição negativa do pai. Os caminhos de Martim cruzam com os de seus colegas da Escola de Aplicação da UnB e, depois, do curso de Arquitetura. É assim que conhece Angela, Dinah e Vana, mulheres que o fascinam de formas distintas, e Fabius, Lázaro e Lélio, o Nortista.
Os pais dos amigos entram gradualmente em cena e sugerem posições diversas em relação ao regime armado. Há os que aderiram e se beneficiam diretamente das relações estreitas com os poderosos, há os excluídos — entre estes, Vidinha, a mãe de Lázaro que é cozinheira na casa dos pais de Fabius, mora em Ceilândia e carrega a limitação no diminutivo do próprio nome: mãe e filho unem os dois lados de uma Brasília cujos contrastes sociais são explicitados no traçado urbano. Excluído, também, embora de outra maneira, é o embaixador Faisão, afastado de suas funções diplomáticas pelo regime que detesta e que vive imerso em livros e álcool, eruditíssimo e no umbral do delírio. Em São Paulo, estado que Martim deixou para trás, estão sua avó e seu tio, contatos que persistem e ainda o radicam na família cada vez mais diluída.
Ao grupo de jovens e suas famílias são acrescentados personagens que contribuem para mapear a peculiaridade da cidade sob um regime de exceção: o livreiro Jorge Alegre, que organiza exibições de filmes e esconde no subsolo da loja os livros banidos pela repressão; Damiano Acante, o professor de teatro, ativo na arte e na política.
Em parte, A noite da espera é um romance de formação. Martim e seus amigos descobrem o sexo, a política e a arte. O engajamento varia da ação sistemática de Dinah e Lázaro à busca, por Angela, de maior liberdade nos costumes e à criação coletiva de uma revista de poesia que os colegas militantes consideram dispersiva e “burguesa” — quem viveu aqueles anos sabe que os debates acerca do lugar e da “função” da criação artística eram calorosos e muitas vezes ingênuos.
Brasília, porém, não é o único cenário do primeiro volume, nem a passagem dos anos 1960 para os 70 seu único tempo: ao longo das páginas, eles revezam com registros parisienses de 1977. É lá que Martim vive, exilado, quase dez anos depois dos acontecimentos de Brasília. A alternância de tempos e lugares — que prossegue no volume 2, entre Paris e São Paulo — amplia a perspectiva do leitor e dá espessura ao relato: afinal, ninguém vive numa só temporalidade, nem a revisitação do passado prescinde do trabalho da memória.
Talvez A noite da espera possa ser descrito como um romance sobre a solidão. O tema está na linda epígrafe de Adonis: “A solidão é a tinta da viagem”. Há uma cena chave: Martim, saudoso da mãe que não lhe manda notícias e em conflito com o pai, vai remar no Lago Paranoá, tão artificial como a cidade que o cerca, e adormece no barco. É acordado pela polícia e preso. A passagem pela cadeia é rápida, mas o episódio destaca com clareza o isolamento do protagonista. Outra cena: o encontro marcado com Lina em Goiânia, que explica literalmente o título do volume 1 e instala em definitivo o tema da orfandade. Daí para frente, predomina a contenção da linguagem e, diante do que não pode ser explicado, a expressão do vazio.
A solidão de Martim obscurece sua vida, o faz sonhar com a mãe que o deu à luz e adensa a dimensão dramática de vidas à deriva. A solidão o silencia e seus registros no diário — material íntimo e talvez auto-analítico — são lampejos na escuridão do seu laconismo cotidiano, tantas vezes impermeável. O primeiro romance recorre às oscilações na voz de Martim para marcar os diversos estágios de sua vida: no início sua fala é fragmentária, ela ganha fluidez nos momentos de vínculo mais profundo com os colegas e retoma o ritmo errático quando prevalecem a desagregação e a perda.
Solidão e silêncio persistem em Pontos de fuga, que acaba de ser publicado. É Lélio quem resume o perfil de Martim, numa das cartas que envia ao protagonista exilado em Paris:
“Que diabo de amigo é esse, possuído por um silêncio astucioso e pela solidão? As tribos, da aldeia e da metrópole, esperam palavras de Paris. Sempre a espera, dias e noites.” (vol. 2, p. 308)
Há algo de irônico no título do volume 2. Já no final de A noite da espera, um Martim assustado constata que “A capital perdia sua forma, e o cerrado, cercado de vazio, era uma perspectiva sem pontos de fuga. Mas restava a história…” (p. 235) Ponto de fuga — o conceito — é aquela posição para onde convergem, na profundidade de uma tela, as linhas que partiram do primeiro plano da representação. É elemento central na construção da perspectiva. Num certo sentido, a definição serve também para a história, que jamais é contada por apenas um olhar; ela é sempre a conjugação — não necessariamente harmoniosa — de perspectivas diversas e de temporalidades distintas. Na vida duramente vivida num país em colapso, entretanto, como conciliar os olhares, como mirar o horizonte, como antever um futuro para a história que se desenrola nas ruas?
Na história que “resta” para o segundo volume a trama se adensa, o presente assombra e as garras do autoritarismo predominante ameaçam cada vez mais. A repressão dispersa o grupo de amigos de Brasília e o leitor reencontra os personagens em outras partes. Martim continua a ser a voz central da trama; o Nortista mantém-se como seu amigo e contraponto perfeito; Fabius, Angela, Vana e Lázaro perdem importância; Dinah se esfuma dramaticamente aos olhos de Martim, que agora a busca com obsessão equivalente à da procura pela mãe.
Novas figuras entram em cena: sobretudo os estudantes da USP que dividem a república em que Martim vai morar em São Paulo, após dois meses de errância. Mais uma vez, o repertório de personagens sugere as posições possíveis num Brasil emparedado: Sergio San, lógico, centralizador e engajado; Marcela e Laísa, que vivem discretamente seu amor; Mariela, forte, segura e sedutora; Ox, que combina, na riqueza e na voz potente, erudição e delírio, à semelhança do embaixador Faisão, só que numa chave cínica. A eles se juntam, depois, o casal composto por Anita, artista ansiosa por liberdade, e Julião, trapezista e caçador de pombos.
Na casa da Vila Madalena em que habitam, o que parecia o sonho da geração se faz e desfaz quase diariamente face à violência sombria do aparato repressivo. A epígrafe de Wallace Stevens já alertara de saída: sonho “aviltado / Na lama, na luz suja”. Em meio às inquietações existenciais, às reflexões sobre a arte, às opções políticas e aos dilemas emocionais dos personagens, manifesta-se a dimensão pública da derrota — por exemplo, no assassinato do estudante Alexandre Vannucchi Leme e nos conflitos de rua que se seguiram à missa em sua memória. A imagem da “luz suja” embute o paradoxo e a tensão da vida política e privada dos jovens: predomina a perspectiva incompleta, sem pontos de fuga.
O segundo romance reproduz a estratégia narrativa do primeiro e combina espaços e temporalidades: o registro dos dias paulistanos entre 1973 e 77 alterna-se com as anotações de Paris, de janeiro de 79 à primavera de 80. No tempo parisiense da trama, Martim convive com amigos exilados, com Évelyne, parceira de conversas e traduções, e com Céline, livre, embriagada e cáustica. As fotos da mãe e de Dinah ainda o acompanham e ele erra desorientado, cercado por fantasmas e imerso no vazio da ausência das duas mulheres.
Mais do que protagonista, Martim é a referência que articula os demais personagens, é o elo possível em meio à dispersão. Em Pontos de fuga, as vozes também são plurais. Anotações de Anita, Ox, Julião e cartas de Marcela, Laísa e do Nortista ocupam os espaços deixados pelo silêncio de Martim e constroem a crônica possível dos dias devastados: a história redescoberta e iluminada pela literatura.
Não vale a pena voltar ao tema das relações complexas e confusas entre a ficção e a história, entre o texto e a vida, embora seja inevitável mencioná-lo, uma vez que a geração dos personagens dos romances é a mesma do autor do livro e há material biográfico nos dois volumes. Milton Hatoum de fato viveu em Brasília, Paris e São Paulo. Tal qual Martim, estudou na Escola de Aplicação da UnB e na Faculdade de Arquitetura da USP. Tal qual o Nortista, partiu do Norte para a nova Capital.
É ingênuo e simplista, no entanto, supor que a ficção espelhe ou reflita a experiência vivida. Se há espelho da história na literatura, nos disse Stendhal, é um espelho em movimento e ele mais distorce do que confirma. Só o fazer ficcional rigoroso — a estetização da realidade promovida pela literatura que valoriza o peso das palavras e a ourivesaria cuidadosa de cada frase — permite alcançar uma compreensão mais profunda do tempo. O trabalho da ficção, afinal, é essencialmente imaginativo e as vozes que nela falam não são reais, mesmo quando se parecem excessivamente com pessoas de carne e osso.
A matéria biográfica é virada e revirada no trabalho do texto, espalha-se por mais de um personagem, combina-se com a fantasia e assume feição ambígua. O argentino Ricardo Piglia afirma que a ficção é “uma forma particular de enunciação, definida […] do seguinte modo: ‘Aquele que fala não existe’. Não existe aquele que diz e narra em um relato, essa é a verdade da ficção: mesmo que tudo que é dito num relato seja real e possa ser verificado, a ficção não depende do conteúdo verdadeiro ou falso do que se conta, e sim da posição de quem enuncia.”
Quando Martim, seus amigos, seu tio e sua avó falam através de relatos, cartas e diários, eles ampliam as alusões a conteúdos reais e os dissolvem na estrutura plural, que no fundo é a chave de compreensão dos dois romances e de sua estratégia de multiplicar os enunciadores e, com eles, os olhares e as linhas que convergem para o ponto de fuga, que buscam a memória e combatem pela história — história que, como lembra o Nortista em entonação joyceana, é um pesadelo que prossegue na vigília e não há temporalidade que se encerre para sempre.
Passado, presente: o tempo não é unicamente ambientação ou pano de fundo de A noite de espera e Pontos de fuga. Ele é a matéria mesma dos dois romances: o tempo nas suas múltiplas manifestações. Ora é substância formadora dos humanos, ora é a temporalidade que corre em velocidade vertiginosa e nos abandona, órfãos de tudo que era e já não é mais — ou do que gostaríamos que fosse e não pode ser. Observá-lo nos consola e angustia. Entrever outros dias, por sua vez, pode trazer esperança a quem se vê cercado de trevas.
Não esqueçamos: nenhuma ficção que se refira ao passado próximo ou distante trata apenas do que já foi. Ela sustenta o olhar estrábico voltado também para o presente e nunca perde de vista que o passado muitas vezes não passa. Passa o tempo e — Proust ensinou — o tempo que se perde e se busca é um exercício de aprendizagem. A memória é potente e, entre lembranças e esquecimentos, encerra o que desejamos para o futuro: para nós e o mundo que nos cerca.
A história reinventada como fábula ajuda a compor uma representação mais alargada do passado e, em certa medida (que não é o mais importante), instrutiva. Ao observarmos relações entre personagens, seus gestos previsíveis ou inesperados e sua incongruência, muitas vezes alcançamos uma consciência maior sobre a experiência vivida por outros ou por nós mesmos, sobre os sonhos e desejos irrealizados, sobre o terror da repressão e da tortura, da vida sob o signo do medo e da orfandade pessoal e coletiva.
Em Brasília, São Paulo e Paris (ou mesmo nas breves incursões a Santos e Goiânia), Martim e companhia provam a ausência da liberdade e a melancolia do exílio: escuridões profundas. O lugar mais sombrio pode estar dentro de nós — nas dúvidas em relação ao passado, na obsessão por uma explicação razoável para o abandono pela mãe — e também aparece fora, na vertigem do presente e na névoa que cerca o futuro.
A literatura, de resto, é uma fabulação da verdade, como explica Ox no segundo volume: “falei do passado como se quisesse traduzir coisas difíceis, mas o passado é quase intraduzível: melhor sonhá-lo ou inventá-lo. […] Às vezes, o que a gente busca só aparece na literatura, na fábula de uma verdade.” (p. 79 e 247) Em suma, a verdade do que fomos ou somos — verdade que podemos temer, mas infalivelmente desejamos — está ali, na forma cifrada, fingida e figurada da ficção. Vale lembrar: mesmo quando o futuro do passado revela-se sombrio, é possível lançar sobre ele alguma luz, alcançar a compreensão possível, tentar sair da caverna para o Sol.
Apesar de toda a melancolia que imprimem na representação do passado, é o que A noite da espera e Pontos de fuga fazem.
Notas:
— A noite da espera e Pontos de fuga, volumes 1 e 2 da série O lugar mais sombrio, de Milton Hatoum, foram publicados em São Paulo, pela Companhia das Letras, respectivamente em 2017 e 2019;
— A palestra de Marilena Chauí foi apresentada num ciclo organizado pela Funarte, em 1988, e depois publicado com o título de “Janela da alma, espelho do mundo” na coletânea O olhar (São Paulo: Companhia das Letras, 1988), organizada por Adauto Novaes;
— A canção de Chico Buarque chama-se “Uma canção desnaturada” e faz parte da Ópera do malandro, de 1979;
— A passagem citada de Stendhal está num livro originalmente publicado em 1822: De l’amour (Paris: Gallimard, 1980), p. 34;
— O trecho citado de Ricardo Piglia foi tirado de Los diarios de Emilio Renzi. Vol. 3. Un día en la vida (Barcelona: Anagrama, 2017), p. 206.