Machado de Assis e a santa impunidade dos sujos

Contos como "Suje-se Gordo!" comprovam que o escritor é um professor magistral da realidade brasileira. Sua prosa consegue muitas vezes mostrar-nos mais o que somos do que tratados inteiros de história ou sociologia.

“Suje-se Gordo!” é um conto obscuro de Machado de Assis. Integra o seu penúltimo livro de ficção, a coletânea Relíquias de Casa Velha, publicado em 1906, dois anos antes de sua morte. Raramente aparece nas antologias de contos célebres, é pouco ou nada lembrado pelos críticos e, diria eu, deve o pouco da luz do sol que porventura recebeu à originalidade e dubiedade do título — pois a impressão de quem o vê pela primeira vez logo desfeita pela ausência da vírgula: não se trata de “Suje-se, gordo!”, mas “Suje-se gordo”, ou seja, é o advérbio, não o substantivo, que lhe dá o entendimento. Quem profere a sentença não se dirige a um “gordo”, mas recomenda a quem se suja que o faça sem pudor e sem economia. 

Uma demonstração de que Machado de Assis pretendeu concentrar no título toda a força moral do conto está já no primeiro parágrafo, quando dois amigos conversam durante o intervalo de uma peça, chamada “A Sentença ou o Tribunal do Júri”, de que só sobreviveu o título — mas foi justamente o título “que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu”, escreve o narrador. A história é singela: nosso personagem é convocado duas vezes como jurado, no espaço de alguns anos. No primeiro julgamento, um “moço limpo” é acusado de roubar pequena quantia em dinheiro por meio de um título falsificado. O júri, reunido na sala secreta, decide condená-lo. Um dos jurados, sujeito “cheio de corpo e ruivo”, de nome Lopes, resolve defender seu voto pela condenação, com o mandamento que ficará para sempre na memória do narrador: “Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!”.

Na sua segunda convocação, tempos depois, vê sentado no banco dos réus um “homem magro e ruivo”, caixa de banco acusado de grande desvio de dinheiro. Leva certo tempo para reconhecer o mesmo Lopes, com alguns quilos a menos. Como se certo da absolvição, o homem força um sorriso petulante no canto da boca. Agora o julgador é o julgado, e parece, ironicamente, confirmar sua antiga máxima: “queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!”. Lopes, está agora claro, ajudara a condenar o rapaz não pelo crime cometido, mas pelo pecado de ser um “ladrão reles, um ladrão de nada”. 

Apesar das provas sólidas juntadas contra ele, Lopes acaba absolvido pelo placar, também sólido, de nove votos contra dois. No parágrafo final, o narrador, já pressionado a voltar para sua cadeira no teatro, admite duas dúvidas concomitantes: a de ter se enganado no seu voto pela condenação (foi um dos dois que o acharam culpado), dada a convicção com que a maioria dos seus colegas de júri inocentou o Lopes; e o preceito bíblico “não queirais julgar para que não sejais julgados”, dilema que sempre o perseguiu desde que fora chamado pela primeira vez para compor o júri. Eis o fim do conto. Nosso personagem encontra tempo para terminar de narrar a história e volta, algo satisfeito, sempre um pouco frustrado, para dentro do teatro.

Machado de Assis. Crédito da foto: Biblioteca Nacional.

Machado de Assis é um professor magistral da realidade brasileira. Sua prosa consegue muitas vezes mostrar-nos mais o que somos do que tratados inteiros de história ou sociologia. “Teoria do Medalhão” e Esaú e Jacó, por exemplo, são dois retratos, um caricatural, o outro melancólico, da acomodação, mediocridade e falta de rigidez moral de nossa classe política, mas também “guias” sobre como não se deve agir para os que ambicionam deixar algum tipo de legado em cargos públicos importantes. Há vários outros modelos constrangedores, como o atualíssimo Simão Bacamarte (o “alienista”), cuja retidão não o impede de cometer os mais ridículos desmandos, ou Brás Cubas, que não comete desmandos mas desperdiça sua vida justamente por não ter retidão alguma. No caso de “Suje-se Gordo”, o ensinamento de Cristo, que nosso narrador tenta invocar para escapar aos chamados da Justiça, é rebatido por seu filho, que prega deveres morais de outra natureza: “um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país”. Nesse embate, a lei de César acaba por ganhar precedência sobre a lei de Deus; mas a vitória, claro, é passageira, pois ao fim do conto Machado decreta que a moral da história, se podemos usar essas palavras, será mesmo a do Evangelho: “O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém…”.

Estamos diante de mais uma das típicas ironias do mestre da observação, do grande leitor do caráter brasileiro, e não é preciso muita mágica exegética para perceber a pequena blasfêmia — pois aceitar o preceito bíblico será, no fundo, conformar-se com certo estado de coisas. Ora, Cristo nunca defendeu a impunidade, apenas alertou contra a justiça humana, o que significa que a interpretação enviesada das Escrituras é a mesma que insistimos em dar aos que se sujam gordo: melhor não julgá-los, seja porque um dia seremos nós os réus (“Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro”, desculpa-se o narrador, “mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém…”), seja porque, na verdade, não queremos condenar os ladrões ambiciosos e talentosos. Como estamos diante de um dilema, a outra alternativa, no lugar da Bíblia, será o preceito brasileiro: quem deve se sentar no banco dos réus é a alma simplória do ladrão de galinhas, o pobre-diabo que nem roubar direito sabe. Haveria uma terceira possibilidade, a de condenar o Lopes, ou uma quarta, a de condenar os dois, mas elas não estão no cardápio.

Uma última observação: o único personagem a ganhar um nome na história — e nome inteiro, longo e pomposo: Antônio do Carmo Ribeiro Lopes — é o absolvido. Nosso querido, algo indeciso narrador, é um anônimo, assim como seu companheiro de teatro, o réu condenado, o filho, os advogados etc. Tal generosidade do autor com o Lopes me parece deliberada — os vencedores, em Machado de Assis e no Brasil, não são só os que ganham as batatas.


André Chermont de Lima é diplomata de carreira e colabora com o Estado da Arte desde 2017. Lançou recentemente o livro O País do Eterno Retorno — Um Ensaio sobre o Subdesenvolvimento Cultural Brasileiro, pela Editora EDA. O conteúdo deste artigo é estritamente pessoal e não se confunde com políticas ou orientações oficiais do governo brasileiro.

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