por André Chermont de Lima
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Qualquer brasileiro que conheça Thomas Mann sabe da origem de sua mãe. Não é preciso ter lido uma linha sequer do escritor. Mann foi “metade” nacional e isso é o que importa — ainda que ele tenha afirmado, em um de seus escritos autobiográficos, que seu sangue fosse apenas “um quarto latino-americano”, uma vez que o avô materno era alemão. Ou ainda que sua afinidade com o Brasil tenha sido quase nula, como veremos a seguir.
Já na Alemanha o fato não é tão notório, ou ao menos tão digno de atenção. O local de nascimento de Julia da Silva Bruhns nunca recebeu grande atenção ou tratado como relevante. Se as biografias são obrigadas a se referir a Paraty, a crítica e os estudos literários sobre Thomas Mann dedicam ao país curtas linhas desatentas ou puro e simples silêncio. Algum embaixador brasileiro em Berlim já lamentou, de forma repetida e quase cansativa em seus discursos, a negligência com que os alemães consideravam o papel do Brasil na formação dessa família de grandes artistas. Não se pode, claro, explicar a diferença de tratamento por esnobismo, desprezo deliberado ou condescendência: é preciso entender que Thomas Mann — e em menor grau seu irmão Heinrich e seu filho Klaus — já personifica um imenso patrimônio para a cultura alemã, é motivo de orgulho tal como é e não precisa ser “explicado” por distantes origens exóticas. Em poucas palavras, cabe ao alemão gabar-se dos Mann e cabe a nós nos gabarmos de Julia.
Para fazer justiça ao triste diplomata, é nosso dever resgatar e cuidar da memória de Paraty sempre que pudermos. Estamos autorizados a fazê-lo por mera curiosidade biográfica e ir além, ousar buscar tal memória como fator de real influência sobre a obra de Thomas. Por mais complicada que possa parecer essa tese, devemos muito ao livro Terra Mátria a luz que nos lança sobre a análise da presença do “estrangeiro” na obra do escritor e da família Mann em geral.
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Terra Mátria
Os críticos literários Karl-Josef Kuschel e Paulo Soethe juntaram-se ao neto de Thomas Mann, Frido (também escritor) para elaborar minucioso estudo sobre as ligações entre o Brasil e a família Mann.[1] O resgate documental e historiográfico é notável: ali estão todas as informações disponíveis sobre a ascendência luso-alemã, a infância em Paraty e a posterior vida de Julia Bruhns, depois Julia Mann, em Lübeck e Munique, além das conexões — diretas e indiretas — de seus filhos, netos e bisnetos com o Brasil. A contribuição do trio de pesquisadores para a crítica literária é também do maior interesse: tomando como ponto de partida observações soltas de Adorno e um estudo do acadêmico suíço Alexander Honold, os autores identificam “diversos recursos literários na obra de Thomas Mann [que] direcionam a atenção do leitor para a condição de estrangeiro de suas personagens. Detalhes de sua caracterização, comportamento e entorno convidam para o deciframento de alusões à estrangeiridade e à alteridade”. Não é mistério para qualquer leitor de Thomas Mann, mesmo o mais distraído, que muitos dos seus mais memoráveis personagens passam o tempo todo defrontando-se com interlocutores vindos de longe, envolvidos em circunstâncias ou cenários exógenos, em interações algumas vezes construtivas e enriquecedoras, outras vezes desafiadoras ou mesmo destrutivas. A presença do exótico, do estranho, é apenas perceptível em Buddenbrooks, adquire contornos mais claros em Tonio Kröger e Doutor Fausto e constitui a própria essência de Morte em Veneza, A Montanha Mágica e Felix Krull. O estrangeiro na obra do escritor passeia entre o negativo e o positivo, revelando, talvez, uma posição pessoal ambivalente e insegura diante do cosmopolitismo humanista que tanto louvamos em sua obra. No Doutor Fausto, por exemplo, o mal se apresenta na forma da prostituta Esmeralda, uma espécie de enviada da morte, responsável pelo fim de Leverkühn; Satanás surge para o protagonista como um estrangeiro de origem indeterminada;[2] em Morte em Veneza, a própria cidade é pintada como um túmulo a céu aberto, lugar de corrupção e decadência, réplica atualizada da “Sodoma do mar” de Byron, por onde circulam gondoleiros sinistros comparáveis a Carontes. O bem, por outro lado, encontra eco — ainda que também de forma paradoxal — no sanatório Berghof, o idílico mundo sem fronteiras onde seus “habitantes”, apesar de carcomidos por dentro pela doença, pairam em esplêndida alienação acima da guerra iminente e da sordidez do mundo da planície. Terra Mátria tenta mostrar como o homem Thomas Mann lidou, interna e externamente, com a sua origem brasileira, num processo que evoluiu da postura defensiva na década de 30 — quando disse ser apenas um quarto sul-americano e mais de uma vez negou ter sangue judeu, diante das provocações dos nazistas — até a curiosidade e o orgulho reservados, nunca eloquentes, dos seus últimos anos. Mergulharemos adiante um pouco mais fundo neste tema.
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O Brasil na obra de Thomas Mann
Heinrich, o irmão mais velho de Thomas que alcançou brilho próprio como ficcionista, criou, no romance Entre as Raças (1907), personagem brasileira abertamente inspirada na mãe Julia — mais precisamente, inspirada nas memórias escritas por ela em 1903, Lembranças da Infância de Dodô, uma das únicas fontes de que se dispõe sobre a infância “tropical” da matriarca Mann, quando “andava e corria descalça” pela propriedade dos pais, catando “conchas e mariscos” na praia em frente à casa, ou “cocos e bananas” na floresta aos fundos, em convívio solto com os irmãos e os escravos.
Thomas nunca chegou a tanto. As menções ao Brasil em sua imensa obra — oito longos romances, cerca de 30 contos e novelas, uma peça teatral, inúmeros ensaios — são escassas e lacônicas, limitando-se, na maioria das vezes, a comentários isolados sem importância para os enredos ou o substrato estético ou artístico. N´A Montanha Mágica, o Dr. Behrens fuma charutos São Félix, brasileiros.[3] Em Doutor Fausto, o narrador menciona a “guerra submarina, que acabara de vitimar […] nada menos de doze navios”, entre eles “um inglês e outro brasileiro, com quinhentos passageiros”.[4] No Felix Krull, o romance final inacabado, o protagonista observa, embasbacado, sobre uma sacada de hotel, “dois jovens […], obviamente irmãos, possivelmente um casal de gêmeos — eram muito parecidos, um rapazinho e uma moça expondo-se à intempérie do inverno sem proteção para a cabeça, por pura doidice. Tinham aparência vagamente estrangeira, de além-mar, talvez fossem sul-americanos de origem portuguesa ou espanhola, argentinos, brasileiros […] talvez fossem judeus […]. Os dois eram belíssimos — o jovem não menos do que a moça”.[5]
Eis tudo, ou quase tudo. Muito pouco para diferenciá-lo de qualquer contemporâneo seu. Proust, por exemplo: Marcel, o heroi de Em Busca do Tempo Perdido, cita o Brasil en passant, numa única oportunidade, em sua narrativa de milhares de páginas. Outros citarão mais vezes, a maioria não citará nenhuma.
Num segundo círculo de referências, mais afastado e indireto, a ficção de Mann passeia pela América Latina e, de forma ainda mais vaga, por um “sul” indefinido. Em Buddenbrooks, Christian, o irmão frágil e desajustado, trabalha por alguns anos num escritório comercial em Valparaíso, no Chile — uma Valparaíso irreal, porém, infestada de mosquitos, lugar de calor amazônico. Consuelo, a mãe de Tonio Kröger, provém de terras meridionais, assim como a prostituta Esmeralda — cujo nome, ademais, deriva da borboleta Hetaera esmeralda, espécie encontrada nas selvas brasileiras. No conto “De como Jappe e Do Escobar brigaram”, sobre uma luta marcada entre dois colegiais, a origem do sobrenome “exótico” de Escobar não é decifrada, mas ninguém precisa se esforçar demais para adivinhar. Felix Krull termina de repente em Lisboa; segundo os planos não consumados do autor, a continuação do romance levaria o protagonista para o Rio de Janeiro e Buenos Aires — a primeira vez em que o Brasil serviria de cenário para uma criação de Thomas, quase meio século após Entre as Raças de Heinrich.
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América do Sul, destino ambíguo
Mencionei anteriormente a evolução na percepção de Thomas Mann sobre o seu DNA não-alemão, partindo de uma postura defensiva, quase alheia, até o discreto orgulho que marcou os anos finais. O sangue que, como vimos, era “apenas um quarto” latino-americano, comentário em tom de quase desculpa, transformou-se numa década no sangue “que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista”.[6] Talvez o projeto da segunda parte do Felix Krull tenha sido elaborado como consumação artística dessa nova postura. Tarde demais, como sabemos; apesar disso, desde os anos de exílio nos Estados Unidos e principalmente depois da eclosão da Segunda Guerra Mundial, ele começou a travar contato com alemães exilados no Brasil e registrou interesse mais expressivo por nosso país em sua correspondência.
Terra Mátria fornece-nos algumas pistas interessantes na investigação dessa lenta e progressiva simpatia. Quando escreveu Buddenbrooks, seu romance de estreia (e que estreia), Thomas tinha 25 anos. O personagem Christian lança-se numa aventura (pode-se chamar de fuga) que o leva a um lugar longínquo, inimaginável, “do qual se retorna com a cabeça cheia de histórias ruidosas de ‘facas e revólveres’, de atividades violentas; […] um lugar onde um europeu não trabalha de fato, ou não pode trabalhar, mas se afunda em moleza por motivos climáticos. Com isso, um lugar de fuga do mundo da ordem, da disciplina, da solidez. O calor é álibi para não se fazer nada”.[7] Até aqui, não há novidade alguma: eis a percepção do típico alemão, de todas as classes, de ontem e de hoje, sobre a América do Sul. O rebento de uma tradicional, próspera e luterana família de comerciantes de uma cidade hanseática quase não pode pensar diferente, ainda que sua própria mãe, por acaso, de lá venha.
O destino de Erik Pringsheim, o cunhado em carne e osso de Thomas, confunde-se, a posteriori, com o do personagem Christian Buddenbrook. Irmão mais velho de sua mulher Katia, era um pródigo viciado em jogo que não só se especializara em dilapidar a fortuna dos pais, mas também a reputação de sua prestigiosa família de Munique. Decidiu-se por “degredá-lo” para Buenos Aires em 1907, onde, longe de qualquer controle, afundou ainda mais nas dívidas. A solução foi, então, enviar dinheiro para comprar uma fazenda no interior da Argentina, onde se estabeleceria com a mulher, uma polonesa de passado condenável. Anos anos depois, Erik morreu em circunstâncias suspeitas, que os pais oficializaram sob a forma de uma queda de cavalo. A família bem sabia que as razões poderiam ser outras, não descartando o homicídio ou o suicídio. Concluem os autores de Terra Mátria: para os Mann, “a América do Sul deixava de ser símbolo de ambiente cosmopolita [cuja encarnação é a própria Julia, uma bela e culta mulher fruto de uma saudável e intrigante mistura de raças], e se tornava o destino de europeus problemáticos que eram banidos, retornavam como fracassados e, mesmo depois de mortos, rondavam como fantasmas as reuniões de família e a imaginação de seus parentes”.[8]
A atitude começou a mudar com a ascensão dos nazistas ao poder em 1933. Naquele ano, Thomas Mann e a família mudaram-se para os Estados Unidos. O casal nunca mais voltou à terra natal, mesmo depois da guerra. Em outra esclarecedora conclusão impressa em Terra Mátria, o escritor “permaneceu ligado à Alemanha apenas linguística e culturalmente, de certa maneira na perspectiva de um regresso, em uma tradição cultural que continuou existindo independentemente de seu povo, que a traiu, e em uma identidade intelectual. Esse afastamento foi ao mesmo tempo um impulso para uma abertura intensificada em direção a um espaço global e internacional para convivência de todos os povos e sua unidade multinacional. […] Em parte, pode ser o caso de que a pátria de Thomas Mann o tenha feito cidadão do mundo contra sua própria vontade […]. Interessante notar como o modelo de exílio, ausência de pátria e cosmopolitismo continuou prosseguindo consciente ou inconscientemente nas gerações seguintes dos Mann”.[9]
Foi a partir do exílio que Thomas passou a manter contato esporádico com o Brasil. Também começou a acompanhar de longe fatos ocorridos no país, como o chocante suicídio de Stefan Zweig — notícia que o alemão, aliás, recebeu com fria indignação e surpreendente insensibilidade. Ao mesmo tempo, com a balança de Vargas pendendo a favor dos aliados, o governo finalmente permitiu a formação do Movimento dos Alemães Livres do Brasil, espécie de braço do Movimento Alemanha Livre, fundado no México por opositores exilados de Adolf Hitler. Mann manteve correspondência regular com um dos representantes do Movimento, o dramaturgo Karl Lustig-Prean.[10] Em carta de 1943, redigiu “passagem relativamente pormenorizada sobre o Brasil. Nunca antes ele havia se manifestado de tal maneira sobre o país”:[11]
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Apenas uma certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria [mein Vaterland] deveria constituir uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria [mein Mutterland]. Ainda chegará essa hora, espero.”[12]
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A hora nunca chegou, como sabemos. Tampouco a hora de transformar a “terra mátria” em literatura: naquele mesmo ano, o último volume de José e seus Irmãos era publicado, seguido, já depois da Guerra, de Doutor Fausto. Adiado para a segunda parte de Felix Krull, o projeto do Brasil como locus dramaticus acabou interrompido pela morte de Thomas Mann, em 1955.
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Uma conclusão desconfortável
A leitura de Terra Mátria deixa-nos com a impressão paradoxal e algo desconfortável de que Thomas, mesmo em seus últimos anos, na verdade se interessou tangencialmente pelo Brasil. O livro dedica-se em suas mais de 300 páginas a desvendar as ligações da família Mann com a terra natal de Julia Mann, née da Silva Bruhns, com natural destaque para o seu integrante mais célebre. E este, na verdade, é o problema: ao final, sentimos que não há material suficiente. Comparado com o irmão Heinrich ou com Stefan Zweig, por exemplo, Thomas não chega a preencher expectativas minimamente ambiciosas de qualquer brasileiro ansioso por descobrir ligações mais próximas de um dos maiores escritores do século XX com nosso país. O livro não mostra as referências literárias ao Brasil que identificamos acima, talvez justamente por serem escassas e superficiais; por outro lado, registra exaustivamente os contatos mantidos entre Thomas e personalidades, brasileiras ou aqui exiladas durante a Guerra — revelando, entre outros episódios, a diferença de tratamento na troca de correspondência entre o escritor e Lustig-Prean — este sempre tomando a iniciativa, tentando angariar reconhecimento e favores, aquele reativo, breve e algo seco; a já mencionada atitude desdenhosa de Mann quanto ao suicídio de Zweig — que chegou a atribuir a algum escândalo, talvez associado ao “belo sexo”; ou o constrangedor encontro com Érico Veríssimo nos Estados Unidos — relatado no pequeno romance Gato Preto em Campo de Neve, no qual o escritor gaúcho teria superdimensionado a extensão da conversa entre os dois, atribuindo a Mann frases e opiniões que na verdade o brasileiro teria ouvido em palestra proferida pelo colega. O alemão, por sua vez, não fez qualquer referência ao brasileiro em seus diários, e tampouco respondeu às recomendações de Veríssimo transmitidas por intermédio do tradutor Herbert Caro em carta posterior. Talvez o motivo desse desprezo tenha sido a descrição de Katia Mann no romance, pintada como uma criatura mesquinha, com “aspecto comovedor de dona de casa”. Jamais saberemos.
Sabemos, sim, que o relacionamento de Thomas com a mãe nunca foi caloroso. Após a morte do marido, o senador e comerciante Thomas Heinrich Mann, em 1891, ela se mudou para Munique com os filhos e jamais deixou a cidade por muito tempo. Foi nos arredores da capital bávara que morreu, em 1923. Ao contrário de Heinrich ou das irmãs, Thomas pouco menciona Julia em seus diários e cartas, preferindo, obliquamente, representá-la em sua criação literária por meio de personagens nela inspiradas, como Consuelo ou Gerda, a intrigante mãe do pequeno Hanno Buddenbrook.
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Tradição ou tradições?
No admirável ensaio literário-musical “Os Testamentos Traídos”, Milan Kundera resgata a velha reflexão sobre a natureza da identidade individual, na vida real e na literatura (não faz muita diferença: a lógica que rege pessoas de carne e osso e personagens é a mesma). “O que é um indivíduo?”, pergunta Kundera, “Pelo que, exatamente, se define o eu? Pelo que faz um personagem, por suas ações? Por sua vida interior, pensamentos, sentimentos ocultos? Um homem é capaz de compreender a si mesmo? Seus pensamentos secretos seriam a chave de sua identidade? Ou, ao contrário, um homem seria definido por sua visão de mundo, suas ideias?” Segundo Dostoievski, a resposta à última indagação é sim, diz o escritor tcheco; segundo Tolstói, nada mais distante da verdade. Usando “José e seus Irmãos” como modelo, Kundera nos apresenta a visão particular de Thomas Mann: “a gente pensa que age, pensa que pensa, mas outro ou outros agem e pensam dentro de nós: em outras palavras, hábitos imemoriais, arquétipos — os quais, tendo virado mitos, passaram de uma geração para a seguinte — carregam um enorme poder de sedução e nos controlam a partir do ‘poço do tempo’”.[13]
O poço em que José é atirado pelos irmãos enciumados — segundo a Bíblia e segundo o romance — não passa de símbolo do que é mais velho na história da humanidade: o poço é a consumação trágica do conflito milenar que sempre opôs o filho preferido ao desfavorecido, que sempre expôs a angústia (muitas vezes vã) dos pais em selar a paz entre sua prole. Até mesmo o sofrimento, “essa reação aparentemente incontrolável”, aparentemente individual, intransferível, na verdade não passa de “imitação e continuidade”, cujas manifestações — a palavra que expressa o lamento, a dor, o luto — são tudo menos originais, imbuindo o mais íntimo dos sentimentos de uma invencível carga coletiva.
O poço do tempo não traduz apenas ódios e misérias explícitos. Os “outros” que agem e pensam dentro de nós são nossos pais e os pais de nossos pais, sejam eles biológicos ou culturais. Somos unidades orgânicas constituídas, em boa parte, pela herança genética de nossos antepassados e pela força da continuidade espiritual e psíquica que chamamos de tradição. “No fim das contas, você não pertence apenas a si mesmo”, grita o cônsul Thomas Buddenbrook, num acesso de raiva, para seu irmão Christian, que retruca: “um homem deve ajustar contas com sua própria consciência”. Na lógica do cônsul, é pela família — entidade maior que a soma de suas partes — que as pessoas de bem devem se sacrificar e ajustar contas, é para a família que prestam juramento de fidelidade e se anulam. A família respira e fala por seu intermédio.
Tradição, influência, herança, maldição: do final do século XIX à década de 40, quando Mann concluiu José e seus Irmãos, foi rico o repertório que potencialmente o orientou em sua tese sobre a formação da identidade do artista e do personagem. Depois de Fantasmas, de Ibsen, e Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski, viriam as contribuições dos primeiros antropólogos nas suas descobertas sobre os mitos; de Jung, com o inconsciente coletivo; e de Freud, com a tese sobre a universalidade dos símbolos oníricos e certas disposições psicológicas onipresentes, como o complexo de Édipo e o sentimento de culpa originário. Thomas Mann certamente leu o ensaio tardio “Moisés e o Monoteísmo”, de 1939, em que Freud fala da presença de traços de memória na “herança arcaica” do povo judeu (e de todos os povos) e da existência de uma tradição religiosa que se sustenta por meio dessa coleção de fragmentos mnêmicos, transmitida de geração em geração desde o assassinato do pai primevo.[14]
Elaborar sobre a tradição, contudo, nos desviaria demais do que estamos tratando aqui. O tema é um fio desencapado, e suas pontas soltas não nos ajudariam. A questão a ser investigada aqui gira em torno da tradição à qual pertence Thomas Mann. É indiscutível que ele sempre se orgulhou, de forma análoga ao protagonista homônimo de Buddenbrooks (não sem uma dose de ironia, claro, já que a queda de Thomas e a queda do clã se confundem), de pertencer a uma tradição, a uma “família” cultural em que ele teria garantido seu lugar, na qualidade de “escritor alemão” e de descendente de uma “família hanseática nobre”, como gostava de recordar. Será que haveria espaço para outras heranças? E seria sua mãe de fato herdeira, depositária e transmissora da tradição luso-brasileira a que pertencia em parte? Sabemos que não; Julia Bruhns deixou o Brasil aos sete anos de idade e, exceto por um texto autobiográfico e alguns raros relatos sobre sua infância que contava aos filhos, morreu alemã e perfeitamente integrada às sociedades de Lübeck e Munique. No seu delírio final, narra o filho Viktor que passou a falar alemão com um estranho sotaque, ainda que não soubesse mais virtualmente pronunciar palavra alguma em português.
A influência da mãe sobre a arte dos filhos, como vimos, foi sensivelmente diferente: no primogênito Heinrich, poderosa o suficiente para render um longo romance, explícito na inspiração; o complexo de Édipo explicaria muito. Já em Thomas, a confrontação com a origem da mãe manifesta-se em “codificações sofisticadas”, nas palavras dos autores de Terra Mátria — reflexo, possivelmente, da distância que mantinha dos familiares nos anos finais, sempre reservada, golpeada pela pobreza do pós-guerra e pelo suicídio da filha Clara. Para Thomas, que sempre se referiu a ela como “fria”, a mencionada “codificação” faz todo o sentido. Estamos, porém, falando da mulher Julia da Silva Bruhns, cujo desenraizamento precoce pode até ter deixado marcas em sua personalidade e na maneira com que lidava com os filhos, mas dificilmente terá rendido algo na forma do sonho romântico de uma almejada “brasilidade”. Desenraizados tornaram-se todos os Mann e seus descendentes, de certa forma até hoje. O problema é que exílios mais recentes e mais traumáticos deixaram marcas mais fortes. O Brasil, à semelhança do Egito para os judeus errantes da última obra de Freud, foi uma terra distante e esquecida, reprimida pela violência da história superveniente, à espera de um resgate improvável. Deixemos o Thomas Mann “brasileiro” para os discursos dos embaixadores.
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Notas:
[1] Originalmente publicado na Alemanha. A edição nacional, “Terra Mátria – A Família de Thomas Mann e o Brasil” foi lançada em 2013 pela Editora Civilização Brasileira.
[2] “Fala alemão, tranquilamente! Podes soltar a língua, em boas palavras tedescas, sem patranhas nem parlapatices. Entendo bem o alemão. É até meu idioma preferido. Às vezes, não entendo nenhum outro”. Doutor Fausto, capítulo XXV
[3] A Montanha Mágica, Humaniora
[4] Doutor Fausto, capítulo XXI
[5] Confissões do Impostor Felix Krull, Livro Primeiro
[6] Na mesma carta de 1943 em que usa o termo Mutterland, como veremos a seguir.
[7] Terra Mátria, pág. 95
[8] Idem, pág. 101
[9] Idem, pág. 186. A alusão às “gerações seguintes” refere-se tanto aos irmãos de Thomas como a seus filhos e netos, a maioria dos quais assumiu “identidades fluidas”, semi-apátridas. O desenraizamento produziu tragédias como o suicídio do filho Klaus, autor de Mefisto, horrorizado com a devastação física e moral da Alemanha e, ao mesmo tempo, perseguido pelo macartismo nos EUA. Klaus correspondia-se regularmente com Stefan Zweig, até sua morte. O descendente que mais se aproximou do Brasil foi o neto Frido Mann: o filho do caçula Michael publicou romances ambientados no país e viajou frequentemente para cá e fala português.
[10] Lustig-Prean foi nomeado Cônsul da Áustria em Santos após a Guerra, mas voltou a Viena em pouco tempo.
[11] Terra Mátria, pág. 117
[12] O termo Mutterland não é exatamente um neologismo, pois significa “metrópole” (a nação colonialista) ou o berço histórico de algo. O uso que Mann faz da palavra como trocadilho, oposta ao termo Vaterland, é que é novidade.
[13] Testaments Betrayed, Perennial, 2001. Parte Um. Tradução livre.
[14] Além do próprio livro de Freud, o tema é elaborado de forma abrangente e profunda no ensaio “Freud e o Legado de Moisés”, de Richard J. Bernstein.
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