Martin Amis: Saber viver, saber criar, saber morrer

Em sua obra derradeira, publicada agora no Brasil, o autor britânico aborda o ofício da escrita em um autorretrato que ilumina suas relações literárias e afetivas.

Seria cedo demais para classificar a obra derradeira de Martin Amis (1949-2023) como um dos autorretratos mais potentes da história literária? Com sua abordagem de vida que desemboca em adoecimento e morte, mas que no caminho abre espaço a todo instante para as manifestações do amor, Os bastidores: Como escrever (Cia. das Letras, 592 páginas; tradução de José Rubens Siqueira) lembra, nesse aspecto, Aniquilar, de Michel Houellebecq. O livro é narrado tanto na primeira quanto na terceira pessoa: a terceira funciona como uma “armadura leve”, enquanto a primeira, como uma sinceridade nua — embora às vezes possamos suspeitar, claro, de certos acréscimos e deformações por parte do autor.

Martin Amis. Crédito: Tom Craig/Bill Charles Agency.

Este é um autorretrato que ganha sua luz à medida que o foco recai sobre outras pessoas. Pessoas queridas de Martin Amis, outras nem tanto, mas que o impactaram, além daquelas que o formaram pela literatura: seus escritores preferidos. Talvez todo leitor tenha um livro que imagina ter sido escrito especialmente para si. Como se o autor soubesse exatamente o ritmo de prosa ou verso que o prenderia, o universo imagético que o fascinaria, os temas que tocam uma nota profunda na sua alma e ressoam, se não ainda na sua história, no seu futuro, em tons proféticos. A vítima, de Saul Bellow, deixou essa marca no Amis de 26 anos, assim como a obra de Vladimir Nabokov, que, de modo mais geral, também impactou o escritor.

Amis teve a sorte de conhecer Bellow ao entrevistá-lo para a imprensa britânica e, nos anos seguintes, desenvolveu com ele uma ligação profunda, baseada em afinidades literárias e no interesse aparentemente mútuo de um pela rica personalidade do outro. Em 1995, ao anunciar a morte de seu próprio pai ao amigo, Amis aproveitou para comunicar que agora ele, Bellow, ocuparia a posição paterna. Era uma brincadeira apenas em parte. Até mesmo pela diferença de idade, a conexão entre Amis e Bellow ultrapassava uma simples relação de amizade.

Mais do que isso, talvez Amis se visse filho de Bellow no sentido literário: como um continuador de sua escrita fina, com uma obsessão pela palavra certa no lugar certo; da prosa salpicada de humor; da literatura que não foge dos grandes temas humanos. A paternidade, em sentido específico, tem a ver com continuidade: “Para mim, [ter filhos] não seria diluição, nem adição. Algo mais impessoal. Continuação: de modo que quando chegar a idade final, sua história não acabe apenas — não apenas morra”.

Saul Bellow e Martin Amis. Foto: The Saul Bellow Estate.

A noção de um projeto artístico como algo também animado pela ideia de continuidade do autor é evidenciada por Amis quando ele expõe o problema que enxerga no life-writing, o relato pessoal — isto é, no tipo de escrita que se propôs a fazer: “O problema com o relato pessoal, para um romancista, é que a vida tem determinada qualidade ou propriedade bastante hostil à ficção. É informe, não aponta para nada, não se concentra em nada, não é coerente. Artisticamente, é morta. A vida é morta”. Ao que ele complementa: “Quer dizer, só artisticamente. Em termos práticos, realistas e materiais, é claro, a vida possui olhos brilhantes e cauda espessa, e tem tudo para ser dito a seu respeito”. E assim conclui: “Mas então a vida acaba, enquanto a arte persiste pelo menos um pouco mais.”

Duzentas e cinquenta páginas depois, Martin Amis defende que o único tema unificador da vida é a morte. Por isso, nessa sua volumosa autobiografia romanceada, ela está presente desde o início, e ganha cada vez mais força à medida que nos aproximamos do fim e seus maiores amigos e ídolos começam a sucumbir: primeiro, o poeta Philip Larkin, em 1995; depois, Saul Bellow, em 2005 (não sem antes passar pelo estágio da demência); por fim, Christopher Hitchens, em 2011 (após penosos tratamentos para um câncer esofágico — tragicamente, o mesmo tipo de câncer que mataria Amis em 2023).

Enquanto Bellow foi um pai para Amis, Hitchens pode ser considerado seu irmão. O amigo foi para ele uma força tão potente que, no livro, parece ser onipresente. Amis descreve seus últimos instantes, mas, logo em seguida, ele volta à cena em animadas discussões sobre o estado de Israel. Hitchens “did the dying” de maneira exemplar, o que fascinou Amis e fascina agora o seu leitor.

Christopher Hitchens e Martin Amis. Crédito: Angela Gorgas.

A política aparece ocasionalmente em Os bastidores, mas interessa apenas na medida em que impacta o caráter dos indivíduos. Obcecado pelos totalitarismos comunista e nazista, que já foram tema de alguns de seus melhores romances (Casa de encontros e Zona de interesse, por exemplo), Martin Amis dedica um de seus capítulos-ensaios sobre o ofício de escrever a como os soviéticos conseguiram celebrizar patifes escritores e levar à loucura e eventual morte escritores de verdadeiro senso estético e moral. Fora isso, os grandes eventos não interessam muito a Amis. Bem mais importante para a tessitura da vida são os pequenos eventos cotidianos — “o trabalho oculto dos dias habituais”, como diz Saul Bellow —, que vão se acumulando e formando uma pessoa, um casal, uma família, uma relação de amizade.

Veja um grande evento como a Revolução Sexual. Martin Amis escreve: “O que se faz numa revolução? De modo amplo, três coisas. Você vê o que se vai, o que vem de novidade e o que permanece. Na Revolução Sexual, o que se foi foi a castidade pré-marital; o que veio foi uma separação cada vez maior entre intimidade carnal e emoção; o que permaneceu foi a possibilidade de amor”. Esqueça as carradas de textos triviais que você já leu sobre os anos 1960. Eis o que interessa para o escritor: a possibilidade de amor sobreviveu. Eis aí o que interessa para se viver bem, e até para se morrer bem.

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Daniel Lopes é psicólogo clínico e vive em Teresina. Foi editor da revista Amálgama (2008-2020).

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