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por Thais Lancman
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(Este ensaio é a sequência de O museu de palavras.)
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Retomo agora o ponto que era meu objetivo inicial e do qual talvez nunca devesse ter me afastado: o de não querer falar do mecanismo em si, de uma possível resposta para o Como Funciona a Ficção?, de James Wood, mas daquela que me faço ao encarar O Museu da Inocência, de Pamuk, e O Museu do Silêncio, de Ogawa. Do que é feita a ficção? Creio que as obras de Pamuk e Ogawa são, ao mesmo tempo, a fenda e a luz que entra por elas. E isso é uma metáfora para um ensaio que versa a respeito de não-metáforas.
Pois a ficção, e olharemos especificamente para a ficção contemporânea, não é feita de metáforas, por mais que pareça que sim. Ela é feita de visão, do que Ruth Webb chama de “fazer ver com seu olho mental” para falar da energia quando obras de arte são transpostas para o texto poético.
Joanna Zylinska, ao refletir acerca da fotografia depois do humano, compara-a à literatura, dizendo que ela representa a evolução criadora, presa à mediação técnica não humana. A literatura, por sua vez, é totalmente humana. Nesse caso, é ainda mais significativo pensar nas experiências museológicas narradas, tão fortemente visuais, e empilhamento de vivências mediadas sobre uma frágil base material. A literatura, então, (e o tempo na literatura), opera no vão a que Didi-Huberman se refere, o buraco que se abre ao percebermos que a coisa nos olha de volta.
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Talvez a matéria da ficção, sua carne, a que busco de maneira diletante aqui e na minha incursão pelo meu próprio Museu Imaginário (um tanto museu, um pouco biblioteca) se aproxima bastante da aura benjaminiana que, para além da leitura de Aira, se beneficia de Didi-Huberman. O francês chama de aura a relação das “duas obscuridades”, um conceito que só pode se entender como dialético, com o poder intrínseco à distância estabelecida, sempre dupla e sempre virtual. Embora abstrata, essa distância é vivenciada por nós por meio da visão, que é disparada em parte sem o nosso controle, mas que nos permite focalizar aquilo cujo caráter aurático deslindamos a partir de uma provocação.
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Na visão focalizada, criamos a ilusão de que estamos vendo tudo, revelando verdades e desfrutando de uma totalidade. Nossa apreensão do mundo por meio do olhar é dialético por excelência, e ficcional quase que instantanamente. Vemos e acreditamos no que vemos, mesmo aquilo que está subententido é visto pelo não visto. Por isso a aura não como elemento etéreo, mas propriedade calcada na visão, me parece ser um dos elementos básicos da tabela periódica da ficção.
E, por isso, coloco-a antes da metáfora. A metáfora é um recurso em meio a outros desse processo, e por isso, seu caráter instrumental, ela não nos ajuda no processo de dissecar e fazer a análise laboratorial do texto literário, pelo menos não responde o que me perguntei desde quando esse ensaio era um bolo de ideias querendo se juntar no meu pensamento.
Saio da literalidade do museu para abarcar um Museu Imaginário que dê conta da ficção, permitindo delinear esse aspecto museal da visão como ingrediente da ficção, no contorno particular que adquire na produção contemporânea. Entre uma fotografia e outra, o que surge é outra fotografia, justamente, formada por fotografias e palavras. Austerlitz, de W.G. Sebald.
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A mania fotográfica se mistura à memória detalhista de Austerlitz, e dessa amálgama emerge a história dizendo que, no final, tudo é uma coisa só. As imagens, que temos impressas nas páginas, no momento em que Austerlitz as narra, são carne do romance como as palavras. São a mesma coisa, o que é diferente de serem redundantes. Descobrir a história é explorar o feixe imaginário que liga os nossos olhos à fotografia. E aqui, como se trata de um homem que descobre a própria biografia no processo, há a ênfase na articulação da memória para operacionalizar a visualização dessa aura. Então, há a junção do processo mediado por um equipamento, a fotografia, com o puramente humano, discursivo, que é o texto literário como liame da memória. Ambos colocados lado a lado refletem o Museu Imaginário como lugar capaz de expor a memória sem o artifício do objeto, o que indica que os museus literários de Ogawa e Pamuk são expoentes de um fenômeno muito maior. Não é possível dizer que uma interpretação de Malraux abriu caminho para a outra, talvez seja um fenômeno simultâneo e descentralizado, como são as experiências mais basais da humanidade. Nesse caso, a recuperação por meio do texto de um procedimento tão humano e, por isso, tão intrinseco à literatura. E Sebald faz isso de maneira especial, não apenas pelo texto primoroso e a técnica fantástica de inserção de imagens, mas por colocá-los em um contexto no qual a arquitetura desempenha papel fundamental.
A arquitetura aqui confere vitalidade ao exercício da visão, e nos permite a transição para uma reflexão mais ampla sobre a visão na literatura pois ela é a materialização do lugar intermediário entre os objetos expostos, artefatos históricos ou artísticos, e o mundo com todas as suas coisas. Pois a arquitetura está no meio do caminho enquanto arte e enquanto meramente funcional, pode ser vista como funcionalidade com elementos artísticos ou o contrário. Mais do que isso, a experiência diante da obra arquitetônica pode ser contemplativa mas, muitas vezes, e isso Sebald apresenta bem, ultrapassa o olhar e passa ao campo do performativo. Nesse sentido, também está entre o narrar e o narrado, a memória e a experiência, aquilo pronto diante de si que pode ser a edificação em sua glória, em processo de construção ou ruína.
Quando Austerlitz usa da imagem e das descrições que faz da arquitetura, ele então está expandindo o vão já antecipado pela própria arquitetura, de ver e ser olhado de volta. A narrativa, detalhista, expande um processo que brota do visual e permanece agarrado a ele, por isso a visão é tão enfatizada aqui como elemento estruturante da própria concepção do ficcional. O processo de arqueologia das construções, de investigação temporal abarcando o passado, se torna também arqueologia do sujeito, e com base nisso Austertlitz cristaliza uma biografia. Assim, temos o entrecruzamento de tempos e, portanto, de narrativas, do museu, porém o museu é o mundo e suas construções. Nada é dado.
Me permito uma digressão sobre a expressão “memória fotográfica”, que tantas vezes vejo associada a Sebald. Talvez porque a minha memória seja qualquer coisa que não fotográfica, é bastante verbal, acredito. A força da ficção é tanta que, ao lermos Sebald ou outros autores que gostam da descrição emperequetada, acreditamos que a memória é exatamente assim. O mecanismo que apresentei aqui, da visão como viga do texto ficcional, suplanta até mesmo a memória e toma seu lugar. Vejamos Karl Ove Knausgaard, que nos parece ser um autor da memória, quando na verdade é um autor da visão aurática. Se eu fosse escrever sobre a minha Ilha da Infância, não conseguiria preencher quinhentas páginas. Poucos o fariam. Ninguém. É como o sonho, que parece longo e, quando vamos contar a alguém sobre ele, saem duas ou três frases. O que Knausgard faz é, por meio da reconstrução da visão, ou melhor, explorando a visão enquanto carne da ficção, a leva a um nível de quase adoração, constroi para ela um altar, no qual são oferecidos todos esses elementos que constituem seu texto. O leitor, convencido por enxergar no texto uma narrativa confortável do seu processo de enxergar e, assim, interagir com o mundo, entra em uma espécie de transe. Ele é convencido, acima de tudo. A ficção, no final das contas, é a ficção de que a visão (e, por meio dela, a memória) funciona assim. Convém, portanto, mencionar Tamara Kamensain, que aponta a existência de uma escrita reality show, superação da metáfora, que opera nesse espaço imtermediário que tentei aqui desenhar, para chegar a uma representação de memória, encarnação da sobreposição de tempos que todos nós vivenciamos.
Tentei mostrar aqui de que maneira o Museu Imaginário, enquanto museu de imagens mentais, se mostra na literatura. Por mais que um livro, páginas e palavras existam fisicamente, a literatura é fruto da imaginação e se consolida nela. O que Malraux nos apresenta, então, é uma prática de mundo, que se amplifica na literatura e, justamente por isso, faz da literatura um espaço em que o humano ecoa a ponto de pensarmos que literatura e vida se veem refletidos em um espelho plano. Na verdade, trata-se de um labirinto de espelhos variados, com distorções mil. O que fica claro é que não há escapatória, para se divertir nesse Palácio da Memória convertido em Casa Maluca, para entrar e sair dela, é preciso fazer uso da visão, mesmo que depois outros sentidos se mostre igualmente ou mais úteis. É preciso, ainda, ver localizar-se no centro do labirinto, enxergar diversos espelhos simultaneamente. Como diz Virginia Woolf em Orlando: Não se pode negar que os mais bem-sucedidos praticantes da arte de viver, diga-se de passagem quase sempre pessoas desconhecidas, de algum modo conseguem sincronizar os sessenta ou setenta tempos diferentes que operam simultaneamente em qualquer sistema humano normal. Assim é o Museu Imaginário da Ficção, nome e sobrenome, ficção como qualidade, tema e locus. Imaginário porém visível, onipresente porém portátil.
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