por Thais Lancman
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Sempre achei curioso quando alguém diz que gosta ou não gosta de museus. Um museu é tanta coisa, e ao mesmo tempo parte natural da nossa vida, em especial nas grandes cidades, que acho engraçado que alguém possa não gostar da totalidade, do conceito de museu, principalmente quando viaja. Do que a pessoa não gosta? De caminhar, de observar? Talvez seja da ideia de acúmulo de velharias, de empilhamento sem fim de tralha supostamente organizada.
Da mesma forma, fico intrigada com a febre dos museus. As filas quilométricas em mostras específicas, e o comentário fervoroso: eu amo museus! Você ama as fileiras imensas de quadros de natureza morta do D’Orsay, o minúsculo museu que conta a história da cidade do interior?
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Não vou entrar no mérito do Instagram, das selfies, do nosso desejo permanente de construir uma imagem e uma imagem das nossas experiências para o Outro. Meu foco é o museu. E imaginar reações alheias diante dos livros O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk, e O Museu do Silêncio, de Yoko Ogawa. Dois romances contemporâneos, o primeiro de um autor turco, vencedor do Prêmio Nobel, e o segundo, escrito por uma japonesa, também premiada. Ambos foram publicados no Brasil e, cada um à sua maneira, exploram a ideia de museu. Imagino o fã de museu, o detrator de museu, segurando exemplares desses livros nas mãos, será que eles estranham os títulos? Será que eles imaginam o que seriam esses museus? Se eles aceitaram o desafio da leitura, descobrirão que os narradores de ambos os romances efetivamente trabalham nesses museus, colaboram com a coleta de peças e refletem sobre o que e como deve ser exposto.
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É claro que buscamos como esses museus falam sobre inocência e silêncio, mas existe algo além. Penso no Museu do Louvre, no Museu do Prado. O nome indica a edificação ou a localização. Podemos pensar então que esses romances-museu se erguem sobre a inocência e o silêncio, dando a conceitos abstratos uma certa monumentalidade.
Em O Museu da Inocência, o narrador Kemal Bey fala de seu amor por Füsun, uma historia que se passa entre a elite de Istambul e seus sonhos europeizantes, e se consolida em um museu, o tal Museu da Inocência, que compila a narrativa com objetos recolhidos por Kemal Bey ao longo de sua vida, e outros que ele encomenda especialmente para o tal museu.
O narrador dirige-se ao leitor como um guia falaria com um grupo de visitantes do museu ao longo do passeio. “Exibo aqui” é uma expressão que ele repete inúmeras vezes, como se apontasse para uma cesta de piquenique, o colarinho de um pijama, ou uma silhueta humana de uma antiga propaganda de remédios, na qual ele aponta onde se situam “as dores do amor”. O romance, a certa altura ele diz, é o catálogo do museu.
De fato, existe um museu, financiado, segundo Pamuk, com a quantia em coroas norueguesas que recebeu pelo Nobel de Literatura, em 2006. O exemplar do livro em qualquer idioma equivale a um ingresso, completando seu ciclo enquanto catálogo, imaginando que o visitante o leve debaixo do braço enquanto visita a exibição permanente, composta por vitrines que representam os capítulos (parte do museu pode ser vista neste link). Por isso, é um pouco frustrante que um catálogo mais convencional tenha sido lançado anos depois da inauguração do museu, com o nome The Innocence of Objects.
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É pensando nessa inocência inerente às coisas inanimadas que podemos pensar no título do romance e do museu. Para além da inocência do amor romântico, os objetos são inocentes, os culpados somos nós, que precisamos deles para nossos feitos, ou que sobre eles cometemos ações embasadas por toda uma gama de justificativas mais ou menos convincentes. Entretanto, também há a inocência de achar que o objeto é inocente: um presente dado para seduzir alguém, um chá oferecido em um encontro repleto de segundas intenções, remove a inocência desses objetos, se é que ela existiu. Um objeto, então, nunca é inocente enquanto está em uso. E aí, cristalizado em um museu, ele se redime. Ali, exposto, expurga sua culpa e novamente passa a se abrir para a inocência. É uma relação paradoxal, mas que diz muito sobre os museus. As coisas fora de uso que contam como foram usadas, como um grande confessionário.
Em O Museu do Silêncio, de Yoko Ogawa, o narrador é um museólogo contratado pela família de uma mulher idosa para construir o museu concebido por ela, no qual se reuniriam objetos que sintetizassem todos os falecidos da pequena cidade em que ela vivia. As peças, coletadas no momento da morte dessas pessoas, deveriam ter um significado especial. Como se não bastasse, o trabalho ocorre enquanto uma série de feminicídios ocorre na região.
Os silêncios ao qual o título se refere são muitos. Há o silêncio da morte, da ausência de movimento e da inatividade, e há o silêncio inerente às coisas. Um chocalho só faz barulho se é movido por algo ou alguém. Porém, dotar as coisas de significado é dar voz a elas. Assim, a exibição das peças no Museu do Silêncio é como dar a elas a mesma pílula falante que a Emília, to Sítio do Picapacau Amarelo, tomou. É, de certa forma, o mesmo raciocínio que explora Pamuk, mas com o sinal trocado.
A análise é bonita e faz algum sentido, mas o Museu do Louvre não fala sobre o Louvre, nem o do Prado tem um certo prado como seu tema. Aqui, os nomes se referem ao local em que o museu foi instalado. Me volto, então, aos loci da Inocência e do Silêncio. O museu se ergue na Inocência e no Silêncio, o primeiro de forma mais literal, ao adotar o endereço de Füsun, a paixão de Kemal Bey, mas, além disso, tendo a inocência como o espaço no qual se dá a experiência possivel para o museu criado por Pamuk, físico, e para o romance enquanto museu. No caso de Ogawa, o lugar do silêncio é a cidade pacata, a casa da idosa doente, mas também o silêncio típico dos museus, que exigem dos visitantes um comportamento específico. O visitante transita, porém mantem-se quieto ou fala em voz baixa, não corre, e desfruta de uma atividade contemplativa. A leitura em nossos tempos também é uma atividade silenciosa, voltada para o indivíduo que, por iniciativa própria, passeia pelos capítulos do livro e deslinda a narrativa. O Museu do Silêncio, portanto, também é o museu desse lugar, o lugar da literatura enquanto atividade desfrutada na quietude, mesmo quando se lê sobre estardalhaço, explosões, assassinatos.
Ao pensar no leitor como esse visitante que transita pela invisibilidade do texto, me vejo nos palácios da memória do método de loci dos retores gregos, tão bem explicada por Frances Yates em A Arte da Memória. O que são os museus, senão esses palácios, que são lembrados à medida que são dispostos nessas salas, e depois revisitados com a garantia da permanência? E o que são esses romances que remetem a museus, senão o retorno ao caráter mental no museu?
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Junto ao meu inventário de museus a referência quase óbvia ao Museu Imaginário, de André Malraux. Mas, de cara, a construção dos títulos já convida à diferenciação. Enquanto os romances de Pamuk e Ogawa tematizam seus museus de maneira paradoxal, convidando o leitor a pensar em elucubrar o que seria um museu dentro das referências que cada um possui, porém que se dedique a um tema fora do espectro museal – a inocência e o silêncio – Malraux faz uma incisão nessa concepção de museu, tratando do museu que existe apenas no exercício mental daqueles que se desafiarem a tal. Parece conveniente, que a combinação irá unir objetivo e método, forma e conteúdo, matéria e espírito, ou nada disso, e acabará por se resumir a uma longa reflexão pouco objetiva mas uma interessante granada de ideias.
A ideia de metáfora contradiz aquilo a que quero chegar, então me pouparei de qualquer esforço de encontrar alguma imagem para esse meu exercício que parte de Malraux, Pamuk e Ogawa e atingirá, com sorte e alguma disposição, uma versão modificada da pergunta de James Wood. Não se trata de como a ficção funciona, mas do que ela é feita.
Tirando a poeira de Malraux, se é que fica empoeirada uma obra sempre consultada, de maneira mais ou menos consciente, ainda que apenas em um exercício mental. Malraux fala do Museu Imaginário, portanto, não um tema ou locus para essa concepção de museu, mas uma qualidade. O Museu Imaginário se funda por uma prática, enriquecida pela contemporaneidade, de carregarmos as imagens mentais coletadas com tanto ímpeto em nossas viagens, nas consultas à infinidade de materiais que temos atulamente. A obra original não perde sua aura, porém a própria noção de aura adquire outra potência.
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Nesse sentido, Malraux destaca na concepção do Museu Imaginário a importância do esboço, que deixa de ser descartável e passa a ter, ele mesmo, valor, embora nunca alheio à obra final. Por vezes, os esboços, lembra Malraux, são selecionados pelos artistas, que passam então a contar a história de sua produção por meio delas, e também sobre esse metatexto exercem algum tipo de controle. Esta parece ser uma característica emblemática das obras de Pamuk e de Ogawa enquanto aproximações ao Museu Imaginário, pois são narrativas, acima de tudo, da concepção e construção de seus respectivos museus. Há uma dicotomia bastante contemporânea, pensando em uma era de questionamento permanente das narrativas oficiais e como isso tem transformado o universo museal, que é a revelação dos procedimentos como desvelamento da construção narrativa, deixando à mostra, justamente, que ela é isso, construção, discurso.
Mas, se é discurso, é um discurso que remete especificamente ao tempo. Romances são obras do tempo, assim como museus, que dispõem artefatos históricos ou artísticos à disposição da temporalidade. Em uma concepção mais ortodoxa de museu, falamos da cristalização dos objetos rumo à eternidade garantida pela sua exposição, pelo atestado de relevância para certo caráter nacional, ou ainda, para a/uma História da Arte. Com a reformulação do que entendemos por museu, também se transforma essa característica, mas não seu atrelamento ao tempo. Falamos da narrativa, da impermanência, ainda que no invólucro da permanência que se quer acreditar. O imaginário, é bom lembrar, também garante permanência das coisas, ou pelo menos a igual ilusão de permanência, desejo de permanência, da memória.
Ilusão de permanência, ilusão de narrativa, parece que estamos chegando onde prometi que eventualmente chegaria. Mas, antes, uma parada estratégica em La Jetée, filme de Chris Marker, de 1962 (na íntegra e legendado em inglês, aqui), uma preciosidade da história do cinema em seus 26 minutos de duração. No filme, uma história narrada sobre fotografias que se mostram sucessivamente, criando assim uma fotonovela de ficção científica, na qual um prisioneiro francês da Segunda Guerra Mundial é utilizado como cobaia para um experimento de viagem no tempo. Esse homem primeiro vai ao passado, no qual ele perfaz uma busca incansável pela mulher que avistou na pista do aeroporto Orly, em Paris, se relaciona com ela e, então, é lançado ao futuro.
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Duas coisas chamaram a minha atenção na última vez que assisti ao filme de Marker, já com Malraux em mente. A primeira, é o momento em que o homem, ao retornar ao passado em meio à frenética Paris pré-guerra, percebe nas suas recordações texturas, superfícies, materiais, antes de pessoas e coisas. O acesso da memória, então, se alterna entre o visível e o tátil, com a experiência sendo primordialmente no campo da visão, mas sem prescindir do tato. Penso que o tato, aqui enfatizado pelo destaque à materialidade das coisas remetendo a suas propriedades, é muito mais sintoma de uma busca desesperada por preencher aquele vazio denotado por Didi-Huberman em O que Vemos, O que nos Olha – a escuridão a ser preenchida quando, em nosso papel de observador, a coisa observada mostra sua agência –, do que uma maneira de apreensão da realidade por si só.
Outro detalhe que não me escapou de La Jetée é o fato que o protagonista, em sua última ida ao passado, vai com a mulher a um museu. É só depois desse passeio, em que observa os itens expostos e a mulher, por entre as vitrines, que o responsável pelo experimento dá essa etapa por encerrada, partindo para viagens rumo ao futuro. O museu, então, sintetiza o passado e o organiza, deixando tudo que importa dele pronto e embalado para ser transportado para outros tempos. Essa é a habilidade do Museu Imaginário, seu caráter portátil, como qualidade e, antes de tudo, como requisito para sua funcionabilidade. Portátil, aliás, como são as fotografias impressas e os livros, protegendo um pouco mais a memória de seu aspecto perecível, o que é mostrado em La Jetée de maneira pungente com as transições de uma fotografia para a outra, indicando que o curso natural na história é o de um inevitável apagamento, fazendo dos acontecimentos carvão a ser queimado para que o trem siga nos trilhos.
As fotografias em sequência, em La Jetée, também reforçam o olhar duplo sobre as coisas, daquilo que vemos e do que nos conduziu ao momento presente. No breve espaço da transição, quando é possível indentificar em uma imagem confusa duas cenas ao mesmo tempo, somos interpelados pela arqueologia da cena e do próprio processo fotográfico. Uma imagem que é registrada pela câmera, revelada, montada. É um pouco o esboço que nos convida ali a combinarmos imagem e som para montar a história. Como nos romances de Pamuk e Ogawa, também em La Jetée há permanentemente a arqueologia da coisa – da foto – exibida, o conjunto de esboços.
Se olhar para um objeto exposto, uma obra de arte, é imediatamente olhar para como ela foi feita, ou melhor, para um registro do interior da mente do artista, me refiro a algo que remete ao que Arthur Danto explica ao descrever a transfiguração do objeto em obra de arte, no procedimento incensado por Marcel Duchamp com os ready-mades. Pois, por mais acidental que um objet trouvé pareça, ele nunca o é de fato, por mais que os detratores da Arte Contemporânea queiram acreditar que sim. Basta pensar no deboche de um odiador convicto, que argumenta contra a arte que bastaria pegar qualquer coisa (manifestação geralmente feita de fato segurando nas mãos o que estiver a seu alcance) e chamá-la de arte para que ela se tornasse uma obra de arte de valor milionário.
Basta conhecer um pouco da História da Arte, ou então ter um mínimo de boa vontade, para saber ou deduzir que o urinol de Duchamp, como tantos outros, e como a xícara de chá de Füsun ou os tantos objetos do museólogo japonês, são peças escolhidas. Variam os processos e o grau de imporância que eles têm, porém jamais são irrelevantes. Pode ser a escolha ou o ato de coletar, mas a descrição da obra, e a maneira como ela é exibida, sempre revelam e convidam a esse olhar. Para Danto, é nesse procedimento que reside a transfiguração. O objeto canaliza toda a História da Arte e, assim, torna-se obra de arte. Essa é a transfiguração que o torna outra coisa. O urinol não serve mais para que um sujeito qualquer se alivie. Ou serve, mas esse ato terá outra leitura. É dessa transfiguração que falam Pamuk e Ogawa. E também Cesar Aira que, para falar disso, recupera o conceito benjaminiano de “aura”: a realidade concreta da obra não se restringe a ela, mas recupera em si o tempo que envolveu sua concepção e execução.
Em O Museu da Inocência, a ideia do romance como obra de arte do tempo por excelência se afirma na sobreposição de tempos, como a sobreposção das fotografias no filme de Chris Marker. Há o tempo da narrativa amorosa, o tempo de cada objeto, o tempo da construção do museu, o tempo da leitura e o tempo do passeio imaginário do leitor enquanto visitante fictício. E todos esses tempos remetem às suas origens e corroboram com a investigação arqueológica de cada um, invididualmente. É o leitor, em seu trânsito pelo museu guiado por um narrador que repete “exibo aqui”, indicando as vitrines expostas, que performatiza a busca pela construção das coisas, e é esse trajeto sobre os aspectos temporais dos objetos que consolida o que acostumamos a chamar de suspensão da discrença, ou ainda, para simplificar, o aspecto prazeroso da ficção, prazeroso porque ocorre sem sobressaltos.
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