Poesia e música: diálogos

Diálogos entre música e poesia, num ensaio da Prof. Norma Goldstein — com Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cecília Meireles.

por Norma Seltzer Goldstein

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Musicalidade e ritmo estão presentes na maioria dos textos, tanto em versos como em prosa. Em alguns deles, o diálogo com a música torna-se explícito. Neste artigo, três poetas ilustram essa opção: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cecília Meireles.

Proponho a leitura gradual do primeiro poema:

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Uma coisa triste no fundo da sala

Me disseram que era Chopin.

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Notas soam tristemente nos primeiros versos. Seu criador, Chopin. A abertura inicia um diálogo com o compositor romântico. Ao nos aproximarmos do fundo da sala, é identificada a fonte da coisa triste:

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A mulher de braços redondos que nem coxas

Martelava a dentadura dura

Sob o lustre complacente.

………..

Uma comparação (braços redondos que parecem coxas), duas metáforas (martelar no lugar de tocar; a dentadura dura no lugar do teclado do piano) e uma personificação (o lustre complacente que “olha” tudo lá de cima) situam a cena: uma pianista de braços pesados toca rudemente as teclas de um velho piano, sugerindo um ambiente decadente.

………..

Eu considerei as contas que era preciso pagar,

os passos que era preciso dar,

as dificuldades…

………..

Surge a vida quotidiana com suas questões, criando um contraste entre o efeito da música e os problemas concretos.

Nos versos finais, retorna uma das metáforas acrescida das cores envelhecidas das teclas do piano, seguida da alegoria final que ilustra o efeito da melodia:

………..

Enquadrei o Chopin na minha tristeza

E na dentadura amarela e preta

Meus cuidados voaram como borboletas.

………..

Segue agora o poema completo.

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Música

………..

………..………..………..………..………..………..………..A Pedro Nava

..

……………Uma coisa triste no fundo da sala

……………Me  disseram que era Chopin.

……………A mulher  de  braços  redondos que nem  coxas

…………..Martelava a dentadura dura

05………..Sob o lustre complacente.

…………..Eu considerei as contas que era preciso pagar,

……………os passos que era preciso dar,

……………as dificuldades…

……………Enquadrei o Chopin na minha tristeza

10………..E na dentadura amarela e preta

…………….Meus cuidados voaram como borboletas.

………..

                            (Carlos Drummond de Andrade.  ‘Alguma Poesia’ in Obra completa)

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A obra de que esses versos fazem parte foi composta entre 1925 e 1930. Visualmente, a composição já evidencia não ser completamente regular. Seus onze versos organizados numa única estrofe são polimétricos — versos regulares de diferentes tamanhos — variando de cinco (v. 8) a dezesseis sílabas poéticas (v.6). Rimas e recursos sonoros distribuem-se irregularmente.

Ocorrem rimas toantes e consoantes, internas e externas:

………..

sAla / brAços / dificuldAdes /martelAva / pAssos / cuidAdos / voAram

redONdos / cONtas

considerEI / enquadrEI

pagAR / dAR

prETA / borbolETAS.

………..

Há repetição de palavras e aliterações: dentadura / dentadura / dura; comPlacente / Preciso / Preciso / Pagar / Passo / Preta.

………..

Esses recursos apoiam o aspecto central do texto: o poder da boa música que, independentemente do ambiente e do nível do instrumentista, nos transporta ao mundo sensível da imaginação onde os cuidados voam como borboletas..

O segundo poema traz o nome de um compositor no título. Trata-se de Claude Debussy (1862-1918) criador de uma música inovadora que influenciou artistas de sua época e que exerce influência ainda hoje. Em 1908, ele publicou uma suíte para piano denominada “Children’s Corner”. O poema em sua homenagem faz parte do livro Carnaval, publicado em 1919. Provavelmente, a criança do poema remeta ao Children’s Corner ou “Cantinho das Crianças”, em tradução livre.

Desta vez, o diálogo com a música se dá por meio do aspecto formal do poema, representando as duas mãos ao piano: é como se a esquerda — a que se repete — fizesse o acompanhamento, enquanto a direita tocasse a melodia.

..

Debussy

..

………..Para cá, para lá…

……….Para cá, para lá

………..Um novelozinho de linha

………..Para cá, para lá

05……Para  cá, para lá

………..Oscila  no ar pela mão de uma criança

………..(Vem e vai…)

………..Que delicadamente e quase a adormecer o balança

………..— Psio… —

10…….Para cá, para lá….

………..Para cá e

……….. — O novelozinho caiu.

………..

                                                     (Manuel Bandeira, ‘Carnaval’, in Estrela da vida inteira)

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Seria desnecessário consultar a obra bandeiriana Itinerário de Pasárgada, para perceber que a cena retrata uma criança que se balança, segurando um novelo de linha. Nesse livro, Bandeira indica ser Sacha, filho de amigos, presente também em outros versos do poeta.

A repetição do verso de “acompanhamento”, cinco vezes e meia, tem particular efeito rítmico. Além da reiteração da preposição “para”, ocorre rima toante: PAra / cÁ  /  lÁ. A aliteração está presente no verso parentético: Vem  e  Vai. Ocorre nova rima toante no interior do verso 3: novelozInho / lInha e rima consoante entre os versos 6 e 8: criANÇA / balANÇA.

O verso 09, iniciado por travessão, pede silêncio, a criança está quase a adormecer. O emprego do travessão convida o leitor a se sentir incluído na cena.

Aos recursos organizacionais e fônicos, junta-se o efeito visual da interrupção no verso 11, justificada por um segundo travessão no verso final: a criança adormeceu, abriu a mãozinha e o novelo caiu.

Descrição delicada de uma cena, com leve toque impressionista, “Debussy” possivelmente teria sido do agrado do compositor homônimo, caso tivesse podido conhecê-lo...

No terceiro poema, de Cecília Meireles, a canção é figurada como companheira da criadora dos versos.

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Canção do caminho

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……….Por aqui vou sem programa,

………..sem rumo,

………..sem nenhum itinerário.

………..O destino de quem ama

05…….é vário,

………..como o trajeto do fumo.

…….

…………Minha canção vai comigo.

………….Vai doce.

…………Tão sereno é seu compasso

10…….que penso em ti, meu amigo.

  ………Se fosse,

………..Em vez da canção, teu braço!

…….

………..Ah! mas logo ali adiante

………… tão perto!  —

15…….acaba-se a terra bela.

………..Para este pequeno instante,

……….. decerto,

………..é melhor ir só com ela.

…….

………..(Isto são coisas que digo,

20…….que invento,

………..para achar a vida boa…

………..A canção que vai comigo

………..é a forma de esquecimento

……….do sonho sonhado à toa…)

…….

(Cecília Meireles. ‘Vaga música’, in Obra Poética)

………..

Quatro sextetos compõem o poema, segundo uma organização regular: alternam-se versos de duas sílabas (versos 02, 05, 08, 11, 14, 17, 20) e versos de sete sílabas (os demais). Os curtos ocupam a segunda e a quinta posição, nas três primeiras estrofes e apenas a segunda, na última.

As rimas consoantes são regulares, ao longo do texto:

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………..Por aqui vou sem programa………A

………..sem rumo,………………………………….B

………..sem nenhum itinerário………………C

……….O destino de quem ama……………..A

05……é vário,………………………………………..C

……….como o trajeto do fumo……………….B

….

O esquema das rimas repete-se nas outras estrofes, com ligeira variação: ABC ACB

Vaga música, publicado em 1942, a partir do título, enfatiza a presença da musicalidade na obra de Cecília Meireles.

O emprego da primeira pessoa verbal — vou — marca a presença da caminhante que segue o destino vário daqueles que amam:  sem programa, / sem rumo, sem itinerário. O paralelismo — repetição da mesma construção sintática — acentua a abertura a múltiplas possibilidades para determinadas pessoas: as que amam e têm o destino vário.

Na segunda estrofe, a primeira pessoa se faz presente nos pronomes minha e comigo e anuncia a companheira do percurso: a canção doce de compasso tão sereno que resulta num apelo: penso em ti, meu amigo. Os versos do centro do poema expressam um desejo: — Se fosse, /  em vez da canção, teu braço!  Este último termo pode ser aproximado daquele com o qual rima, compasso.  Ausente o amigo, o leitor é levado a supor não a coincidência rítmica, mas o descompasso ou a alternância entre a canção e o braço do amigo. A presença simultânea de ambos seria inviável?

A ausência do amigo é compensada por ser curta a distância e breve, o instante. Nesse contexto, torna-se preferível seguir apenas com a canção. No fim do percurso, acaba a terra bela, metáfora que sugere o encanto do caminho embalado pela música. Note-se a rima entre “ela” — que retoma canção — e bela, adjetivo caracterizador de terra, associando os dois termos pela aproximação sonora. A presença da canção influencia e embeleza o percurso.

Esse percurso existe, efetivamente?

A estrofe final vem toda entre parênteses, como comentário às três anteriores que não passariam de invenção, criação, faz de conta: coisas que invento / para achar a vida boa. Surge ambiguidade, ao se comparar a estrofe final às anteriores. Nas três primeiras, em um percurso imaginário, uma canção personificada substitui um ausente; na última, é dada uma explicação para as anteriores, com base na realidade: era tudo invenção.

Qual o peso da invenção? E o da canção?

Comparando o espaço reservado à invenção — três estrofes — e à justificativa centrada na realidade — uma estrofe —, fica evidente qual delas importa mais. Quanto à canção, é como se fosse mágica, tendo múltiplos efeitos: supera, consola o desejo não realizado, torna-se o próprio esquecimento do sonho sonhado à toa.

Pode-se questionar: o sonho teria efetivamente sido à toa? Ou, ao contrário, ele seria pleno de significação, já que inventar e criar é uma forma de achar a vida boa? Ampliando a pergunta: poemas e canções podem dar novo sentido à vida da poetisa e de seus leitores?.

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