por André Chermont de Lima
Numa das crônicas que integram a primeira leva de suas Memórias, publicadas no “Correio da Manhã” em 1967 (nº 40), Nelson Rodrigues menciona um concurso de composições de que participou na escola primária. O primeiro lugar foi dividido entre ele e outro garoto, tratado como “inimigo mortal”. A sentença que abre a redação de Nelson – “A madrugada raiava sanguínea e fresca” – guarda duas confissões: uma tentativa romântica, precoce de seduzir a professora, por quem o pequeno sentia um “amor desesperado”; e, ao mesmo tempo, o plágio de um plágio, roubada deliberadamente de Raimundo Correia, que, por sua vez, a roubara de Théophile Gautier.
O cronista admite que a dupla qualificação da madrugada (sanguínea e fresca) martirizaria por “muitos e muitos anos” sua “consciência literária”. Paira a dúvida, sobre quem lê, se ele estaria se referindo ao sentimento de culpa causado pelo plágio ou a alguma questão de gosto. Os bons poetas poderiam, afinal, achar as madrugadas sanguíneas ou frescas no século XIX, e as crianças do século seguinte aclamá-los por isso. Mas o fato é que o adulto Nelson Rodrigues soube tirar vantagem do trauma, não para espantar os adjetivos de seus textos, mas para adotá-los com insistência quase obsessiva e genial originalidade. Se duas grandes virtudes se sobressaem às muitas que podemos identificar no estilo rodriguiano, são elas o adjetivo e a metáfora. A primeira, claro, é instrumento frequente da segunda: boa parte da força das metáforas e de outras figuras de linguagem depende, afinal, dos qualitativos. Mas limitemo-nos, neste artigo, a tratar apenas deles.
O “óbvio ululante” se transformou em espécie de sinônimo do próprio autor (ele relata como foi chamado no meio da rua por um lavador de carros: “Óbvio ululante! Óbvio ululante!”), assim como meia dúzia de outras marcas registradas: a “unanimidade burra”, a “baba elástica e bovina”, a “manhã de um azul parnasiano” ou a “saúde de vaca premiada”. Mas essas expressões viraram clichês. Adjetivos inesperados e menos célebres estão por toda parte.
Noutra crônica, também publicada no primeiro volume das Memórias (nº 71), Nelson Rodrigues comenta como a imprensa moderna aboliu o adjetivo e, com isso, “castrou emocionalmente” os acontecimentos. Ele evoca seus primeiros passos no jornalismo, aos 13 anos de idade, quando redigia as notas policiais na redação do pai e se entregava ao estilo de “orador baiano”, um autor “correndo, ofegante, atrás das metáforas mais desvairadas”. O adjetivo, diz, “era minha tara estilística”: “Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jornalismo”, conclui. Nascia o autor hiperbólico da crônica esportiva, o inimigo dos “entendidos” e “idiotas da objetividade”, o improvável jornalista que não se envergonhava de bradar, publicamente, que o imparcial não passava de um “vigarista” e “pior para os fatos”, quando os fatos contrariassem suas opiniões. Ao escrever, noutro texto das Memórias (nº 65), sobre a morte de José Eduardo Macedo Soares, fundador do “Diário Carioca”, um velho diretor de jornal do tipo que não mais se via na imprensa contemporânea, Nelson lamenta: se o Diário ainda existisse, “as manchetes vestiriam um luto desgrenhado e siciliano”. “Não há ninguém mais obscuro, mais anônimo, mais inválido que o diretor de jornal – sem jornal”.
A imaginação de Nelson Rodrigues para o adjetivo não tem limites; ela ultrapassa a coerência e, às vezes, o bom senso. Encanta-nos pelo humor e pela surpresa: a “empolgante falta de escrúpulos” de Geraldo Rocha, o “baiano demoníaco”, é um entre muitos exemplos de paradoxos em suas figuras (nº 31). Quando um único adjetivo basta, ele emprega vários, como na descrição do velho canastrão do teatro, “límpido, líquido, ululante, nato e hereditário” (nº 15), ou ao tratar de certo vizinho falecido, “o idiota morto”, “solene, hierático, como um defunto real” (“Elogio da Burrice”). A hipérbole é o seu selo. E o que dizer de uma “verdade estadual, inapelável e eterna”? Ou de um modesto galinheiro nos fundos da casa de subúrbio, “essa coisa lírica, antiga, paisagística”? “A cava obsessão de umbigos inumeráveis” foi sua descrição do carnaval de 1968.
O obituário do irmão Mário Filho está entre suas páginas mais estimulantes – não tão tocantes como as dedicadas à filha Daniela (“a menina sem estrela”) ou às trágicas mortes dos irmãos Roberto e Paulo, mas otimistas, impregnadas de orgulhoso reconhecimento pelo legado deixado pelo cronista. Mário foi um “desses homens fluviais”, diz ele, um rio que banha, umedece e fertiliza várias gerações, “fecundando a aridez do caminho”. Correndo o risco de entrar na confusão entre a metáfora e o adjetivo, não se pode, porém, deixar de mencionar o paralelo com o que escreveu certa vez sobre Vinicius de Moraes, o “ser numeroso”, “coletivo”, sempre andando “em bando”.
No futebol, onde a prosa de Nelson Rodrigues completa de forma perfeita a desejada união entre literatura e jornalismo, a riqueza dos adjetivos é particularmente exuberante. Ao escrever sobre as campanhas de 58 e 62, o autor nos brinda com um “gol fulgurantíssimo” de Nilton Santos; “o divino Gilmar” (que antecedeu “Pelé, o divino”); o placar “magro, esquálido, quase fúnebre” de 1×0 sobre o País de Gales; o “peito largo e inexpugnável” de Vavá; Didi, o “príncipe etíope”; o “múltiplo” Amarildo, que também era o “rútilo epilético”, o “possesso” e o “dostoievskiano”; o escrete com seus “negros plásticos, folclóricos, divinos e líricos”; o “gemido solene e fundo”, “o mugido cívico” da “nação em pileque unânime” depois das vitórias, a “pátria constelada de garrinchas”; e a “juba frenética, incandescente” de leão que a taça Jules Rimet deu ao povo. Nas ruas cheias de “desconhecidos íntimos” e “invisíveis cornetas”, o brasileiro se convertera no “extrovertido ululante”, a distribuir “beijos imaculados”.
Em 1970, a seleção, comandada até a classificação pela “figura folclórica” (expressão que não era lugar-comum à época) de “brios flamejantes” do João Saldanha, tinha à sua disposição a “furiosa plenitude” de Jairzinho e Pelé, o “estilista” Tostão, os passes “límpidos e macios” de Gérson, as “bombas santas” de Rivelino. Tal como nas conquistas anteriores, o brasileiro, que antes raspava, “com infinito deleite, a sua sarna bíblica” (encontramos noutros textos a “sarna imemorial”) e não subia uma escada sem “dispneia pré-agônica”, era agora o heroico e orgulhoso dono de uma “bondade difusa, volatilizada, atmosférica”, “90 milhões de Otelos incendiados de ciúme pela pátria”. Ao escrever sobre a torcida do Fluminense, seu time do coração, exalta numa ponta o cartola, “com o seu charuto afrontoso e ultrajante”, e na outra a “violenta embriaguez clubística” da “plebe épica”.
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Não é pecado acusar o exagero rodriguiano de mau gosto. Muitas das figuras de linguagem e adjetivos empregados pelo brasileiro são, de fato, excêntricos, excessivos. A resposta – também excêntrica – está em suas próprias palavras: “A grande ficção nada tem a ver com o bom gosto” (nº 50). Rodrigues se apoia na cena de Raskólnikov beijando os pés da prostituta Sônia em Crime e Castigo[1]. “Há momentos na vida dos homens e dos clubes”, afirma noutro texto, “em que até a literatura ou subliteratura deve grassar como a varíola. As grandes paixões não se contêm nos limites do bom gosto“ (“O Fluminense Humano e Divino e Mais Divino que Humano”). Não existe maneira de escapar ao subjetivismo, ao gosto pessoal do leitor e julgamento do crítico – a originalidade estética é também de uma relatividade insuperável.
Apreciar os adjetivos de Jorge Luis Borges é exercício menos arriscado. Perigoso, na verdade, seria comparar dois autores tão diferentes. Quando o recém-falecido Harold Bloom reúne Stendhal com Mark Twain em um dos capítulos de seu livro Gênio, usa a vaga justificativa de que, embora raramente associados, os dois autores “iluminam mutuamente suas capacidades”. Agrupar grandes escritores em categorias, por qualidades comuns, significa reforçar a contradição de expor as tais capacidades como dons individuais, porque os gênios são dotados desse poder centrífugo que repele um ao outro. A originalidade não é, por sua própria natureza, uma qualidade grupal, coletiva: os laços entre artistas inovadores são, no máximo, alianças de ocasião. Rodrigues é Rodrigues, Borges é Borges. Bloom ainda ironiza, no mesmo livro, que formar um clube de escritores homossexuais, como se pertencessem a uma espécie diferente, faz tanto sentido quanto reunir um grupo de escritores heterossexuais.
Borges e Rodrigues são diferentes em quase tudo: estilo, personalidade, trajetória, gêneros que cultivaram. Embora contemporâneos, não se conheceram e, possivelmente, nunca se leram. Havia, claro, o contraste entre a imensa fama do argentino e o desconhecimento do brasileiro fora de nossas fronteiras – suas carreiras despontaram mais ou menos na mesma época, no início dos anos 40, a partir de quando o argentino começou a fazer sua reputação internacional. Conta, também, o desinteresse de Borges pela literatura brasileira, de um lado, e o relativamente limitado universo das leituras de Rodrigues, apegado a um cânone, digamos, tradicional e que nunca demonstrou particular gosto por letras latino-americanas. Talvez por tudo isso, a comparação que ouso fazer aqui tenha seu espaço e sua viabilidade: Borges e Nelson Rodrigues estão, na opinião deste leitor, entre os autores que melhor fazem uso de adjetivos – os adjetivos mais originais e, justamente por isso, mais inesperados. Esse imenso talento poderia ser suficiente, ou bom como qualquer outro, para reuni-los num ensaio. Ainda veremos outros pontos em comum ao final deste artigo.
A importância que Borges atribui ao adjetivo – e em seu uso por outros autores – é explícita em muitos de seus textos, fictícios ou não. No conto “Pierre Menard”, destaca a “conjunção eficaz de um adjetivo moral e outro físico” na frase de Cervantes: “as ninfas dos rios, a dolorosa e úmida Eco”. Admira “a sangrenta lua” e o “sangrento eclipse” em Quevedo (a “madrugada sanguínea” provavelmente o fascinaria); e em Carducci, “o silêncio verde dos campos”. Estes dois últimos exemplos – nos quais Borges deve ter se inspirado para a hipálage “Ítaca verde e humilde”, no poema “Arte Poética”[2] – são extraídos do ensaio sobre a poesia, na coletânea Sete Noites. Uma das ideias-chave do ensaio está na defesa da ambiguidade, semântica ou sintática, no verso: noutras palavras, na escolha ambígua de um adjetivo a acompanhar o substantivo, que também Nelson Rodrigues tanto e tão bem usava, tanto como expressão de uma ideia quanto, arrisco dizer, por impulso puramente estético, alheio ao significado. Para Borges, “a beleza nos espreita” e é “uma sensação física”, um impulso que pouco ou nada depende de processos racionais de seleção e eleição. Como diz J. M. Coetzee, as “ficções ousadamente idealistas [de Borges]” tratam de “mundos criados pela linguagem” e de “personagens presos dentro de textos”. Nada impede, aliás, que o emprego do adjetivo seja uma derivação do encanto do argentino pela intertextualidade (ou, nas palavras de Italo Calvino, a “impessoalidade” da literatura, que consistiria num par de obras originais que se ramificam e metamorfoseiam através da pena de sucessivos autores e do inconsciente coletivo) e pelas combinações cabalísticas de livros e palavras, como na “Biblioteca de Babel”: a “biblioteca febril, cujos fortuitos [3] volumes correm o incessante risco de se transformarem em outros”[4].
Personagens e ambientes físicos têm uma força especial em Borges, graças, em boa medida, aos adjetivos. Peço perdão por reproduzir duas amostras, no original e com alguns cortes – a descrição de Beatriz e Carlos Argentino em “O Aleph” e a viagem de Juan Dahlmann em “O Sul”:
“Beatriz era alta, frágil, muy ligeramente inclinada; había en su andar (si el oxímoron es tolerable) una como graciosa torpeza, un principio de éxtasis; Carlos Argentino es rosado, considerable, canoso, de rasgos finos (…); es autoritario, pero también es ineficaz (…). Su actividad mental es continua, apasionada, versátil y del todo insignificante. Abunda en inservibles analogías y en ociosos escrúpulos.”
“Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de [avenida] Rivadavia. Dahlmann solía repetir que ello no es una convención y que quien atravesa esa calle entra en un mundo más antiguo y más firme (…). Todo era vasto, pero al mismo tiempo era íntimo y, de alguna manera, secreto. En el campo desaforado, a veces no había otra cosa que un toro. La soledad era perfecta y tal vez hostil…”
Em “A Morte e a Bússola”, o sítio abandonado onde se desenrola o clímax do conto é ladeado por um “cego riacho de águas barrentas”; o herói chega numa “dessas tardes desertas que parecem amanheceres”, “pisando em confusas gerações de rotas folhas rígidas” até a casa, abundante em “inúteis simetrias e em repetições maníacas”. Buenos Aires é a “cidade junto ao rio imóvel” (“Juan López e John Ward”) e a Argentina, o objeto de uma ode à “nostalgia de facas ignorantes e velha coragem” (“A Manuel Mujica Lainez”). Admiramos, igualmente, a adjetivação nos ambientes internos e sufocantes como o labirinto da Biblioteca de Babel, com suas “léguas de insensatas cacofonias”, onde os homens nascem e morrem: “minha sepultura será o ar insondável”. Essa expressão lembra, de certa forma, o personagem inglês de “Tlön, Uqbar e Orbis Tertius”, que gosta de olhar as “cores irrecuperáveis do céu”.
O “Poema Conjectural” é outro exemplo de ambientação física no cenário de crueza e brutalidade da guerra civil pós-independência, que se manifesta através das últimas palavras do herói Francisco Laprida. “Onde o escuro rio perde o nome”, a “noite lateral dos pântanos me acossa…”, perseguido pelos “cascos da morte quente”, que virá sob a forma “da íntima faca [el íntimo cuchillo] na garganta”. Seu “peito inexplicável” (aqui vem à mente o “peito inexpugnável” de Nelson Rodrigues), no entanto, guarda um “júbilo secreto”, porque ele, ao fim, se encontrará com seu “destino sudamericano” – o cúmulo de ironia travestido de pomposo civismo.
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Talvez por pura falta de algo melhor a dizer, muita gente, no Brasil e na Argentina, cai na tentação de resgatar o posicionamento político dos dois escritores como forma de jogá-los numa espécie de limbo, onde têm assegurado seu lugar numa história morta da literatura, sem direito à atualidade e à relevância. A falaciosa admiração pelas ditaduras que correram paralelas em seus países não passa disso, duma falácia, motivada pela lógica fácil do “inimigo do meu inimigo é meu amigo”: tinham uma antipatia inequívoca, é certo, pela esquerda de um modo geral e, no caso de Borges, pelos peronistas. Se apoiaram os golpes de 1964 e 1976 num primeiro momento, assumiram posturas contrárias mais tarde. Mas esta é apenas uma digressão; o “conservadorismo” da linguagem borgeana, muito bem apontado por Umberto Eco (que o chamou de “arquivista delirante” da cultura, alguém que nunca pretendeu colocar a língua numa crise), não tem parentesco com suas visões políticas, da mesma forma que o “reacionarismo moral” de Nelson não tem nada de reacionário, mas antes uma crítica à hipocrisia e aos costumes retrógrados da sociedade brasileira – ou de qualquer sociedade.
Ponto bem mais relevante de convergência é a absoluta fluidez da realidade em seus textos. Creio ter conseguido chamar atenção suficiente para a proximidade entre o texto jornalístico e a ficção rodriguiana. Ler os contos do argentino – talvez não sem ironia batizados de ficciones – é, nesse sentido, uma experiência análoga à leitura das crônicas do brasileiro. Como diz o crítico Clive Griffin, o “gênero que ele [Borges] desenvolve (…) paira em algum lugar entre o ensaio e o conto, e tem uma grande afinidade com o conte philosophique francês do século XVIII”. Outros críticos recordam a “técnica de verossimilidade” usada para enxertar elementos reais na fantasia – e vice-versa. São muitas as ficções em que ele próprio, o escritor, é o protagonista, e em que “convida” figuras em carne e osso para participar dos enredos. Listo poucos exemplos: “Tlön…”, “O Zahir”, “O Aleph” “O Outro”, “Pierre Menard, Autor do Quixote”, quase todos os relatos de O Informe de Brodie. Às vezes, o autor-personagem contracena com inspirações da vida real, como Beatriz Viterbo e Carlos Argentino, n’ ”O Aleph”, respectivamente sua amiga Norah Lange e o poeta Neruda.
A estrutura de seus livros é também inclassificável. “História do Guerreiro e da Cativa” seria o único conto baseado em fatos reais em O Aleph, embora o formato, a linguagem e, paradoxalmente, a inclusão do toque autobiográfico pudessem confundi-la com qualquer obra de ficção. O espelho está na História da Eternidade, onde “Aproximação a Almotásim” será o único relato fantasioso. Também a última seção do livro O Fazedor é uma compilação de fragmentos transcritos de autores fictícios. Quem abre uma página de Borges nunca tem certeza do que lê.
Os adjetivos cumprem papel importante nessa confusão entre jornalismo, crônica, ensaio e narrativa de ficção. Quando, ao descrever certo gol de Pelé contra o Benfica (“Gols de Antologia”), Nelson Rodrigues assegura que o jogador, “numa penetração fulminante, driblou cinco adversários e entrou com bola e tudo”, e sua coxa aparecia “forte, crispada, vital, como a anca de um cavalo negro”; ou quando se revolta contra a expulsão de Garrincha na final de 1962 (“Garrincha, Passarinho Apedrejado”), com a justificativa sumamente vaga de que “não há no mundo ninguém tão terno, ninguém tão passarinho como o Mané” e que portanto não poderia levar o cartão vermelho, o desavisado leitor se vê diante de estranhos poemas em prosa, não de crônicas. O próprio autor admite que o tal gol de Pelé “foi muito além de todos os adjetivos”, como se precisasse manter-se sempre a uma distância segura da objetividade.
Uma última e curiosa coincidência aparece na peça teatral “Senhora dos Afogados” e no conto “Emma Zunz”, de O Aleph. Na primeira, a personagem Moema declama que os “afogados têm os olhos brancos e a boca obscena”. Rodrigues revela nas Memórias (nº 51) que a fala tem origem no suicídio de um caricaturista de “A Manhã”, o diário do pai de Nelson, nos anos 20. O adolescente e outros colegas da redação correram para ver o corpo do afogado que, depois de três dias, fora devolvido à praia do Leblon: “muitos anos depois, fiz esta imagem para uma das minhas tragédias”. Em “Emma Zunz”, um daqueles contos extraordinários em que Borges usa o formato linear e objetivo de relato policial para nos deixar desorientados, o patrão de Emma, Aaron Loewenthal, cospe sangue de seus “lábios obscenos” ao morrer. Embora obra sem dúvida fictícia, o enredo de “Emma”, como Borges revela no posfácio de O Aleph, foi-lhe dado pela amiga Cecilia Ingenieros (sua noiva por um curto período) e consta, junto à já mencionada “História do Guerreiro e da Cativa”, como uma das duas peças do livro que ele diz não pertencerem “ao gênero fantástico” – talvez porque alguns dos fatos narrados tenham realmente ocorrido com Cecilia. O escritor e professor de literatura Efraín Kristal chega a arriscar que “Avelino Arredondo”, conto de O Livro de Areia sobre o assassinato do presidente uruguaio Juan Idiarte Borda em 1897, é uma espécie de “Emma Zunz” reescrita: “a história de um ato terrorista cometido por um indivíduo isolado (…), numa nota política. Como Emma, Arredondo está determinado a matar um homem poderoso que, segundo ele, cometeu graves injustiças”.
Passeando por diferentes dimensões, essas duas imagens semelhantes – a morte manifesta através da obscenidade da boca – despontam de confrontos de seus criadores com episódios reais (ou com relatos ou impressões ou ideias de terceiros) que se impregnam das cores do drama e da imaginação para se transformarem nas figuras insólitas e nos adjetivos que tanto admiramos. Mas não param na primeira folha impressa e publicada; seguem seus trajetos, transmutando-se noutros textos, onde Emma/Cecilia se converte em Arredondo e Nelson em Moema e assim por diante. Tais imagens, quando resgatadas como testemunhos desses passeios, são o que resta de mais sólido no meio desses labirintos desbotados.
Notas:
[1] Há aqui um equívoco no relato de Nelson, que pinta Sonia beijando os pés do protagonista, e não o contrário. É curioso como Dostoiévski despertou, pelos mesmos motivos estéticos, a admiração de Nelson e o desprezo de Nabokov (que detestava seu conterrâneo justamente por considerá-lo deselegante, novelesco).
[2] Hipálage é figura de linguagem, essencialmente de uso literário, na qual uma qualidade que deveria ser logicamente atribuída a determinado objeto é transferida para outro, a ele associado. “Silêncio verde dos campos” é um exemplo bastante didático. Outro é a “cansada barba retangular” do personagem inglês de “Tlön, Uqbar e Orbis Tertius”.
[3] O adjetivo espanhol azaroso, de difícil tradução, pode significar aleatório e fortuito, arriscado, audaz e temerário ou simplesmente azarado.
[4] O estilo mais seco do Borges tardio deriva, segundo o próprio autor (no prólogo de “O Informe de Brodie”), do cansaço das “variações e novidades” e da renúncia às “surpresas” do suposto barroquismo que adotava antes. Autodenominar-se barroco nos parece uma excentricidade borgeana.
Bibliografia:
Bloom, Harold. “Genius: a Mosaic of 100 Exemplary Creative Minds”. Nova York, Warner Books, 2002
Borges, Jorge Luis. “Ficciones”, “El Aleph”, “El Informe de Brodie”, “Siete Noches”, “Obra Poética”. Madri, Biblioteca Borges/Alianza Editorial, 2004-8
______________ “El Libro de Arena” e “Historia de la Eternidad”. Buenos Aires, Emecé Editores, 1975 e 2005
Eco, Umberto. “Between La Mancha and Babel” e “Borges and my Anxiety of Influence” in “On Literature”. Londres, Vintage Books, 2006
Coetzee, J.M. “J.L. Borges, Collected Fictions” in Stranger Shores”. Penguin Books, 2002
Rodrigues, Nelson. “Memórias – A Menina sem Estrela”. Rio de Janeiro, Agir Editora, 2009
_______________ “O Óbvio Ululante – Primeiras Confissões”. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2017
Rodrigues, Nelson e Castro, Ruy (seleção). “À Sombra das Chuteiras Imortais” e “A Pátria em Chuteiras – Novas Crônicas de Futebol”. São Paulo, Companhia das Letras, 1993 e 1994
Rodrigues, Nelson e Rodrigues Filho, Nelson (org.). “O Profeta Tricolor”. São Paulo, Companhia das Letras, 2002
Williamson, Edwin (ed.). “The Cambridge Companion to Jorge Luis Borges”. Cambridge, Cambridge University Press, 2013