por Norma Seltzer Goldstein
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Por que lemos poemas? Há várias respostas possíveis. Uma delas remete ao poder de sugerir uma atmosfera e um cenário especiais, com efeito de encantamento. Vejamos três dessas criações.
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A primeira é de Adélia Prado:
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Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
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(Adélia Prado. Poesia Reunida, S Paulo, Ed Siciliano, p. 36)
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O título dialoga com as artes plásticas, remetendo ao impressionismo, corrente que valoriza a luz natural. O poema compõe-se de seis versos polimétricos — versos regulares de diferentes tamanhos.
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ImpressioNISta
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
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Sonoramente, há uma constante: em todos os versos, o acento rítmico cai na quarta sílaba poética, marcando a unidade rítmica do conjunto: uma ocasião / meu pai pintou [a casa toda] / de alaranja [do brilhante] / Por muito tem [po moramos numa casa] / como ele mes [mo dizia] / constantemen [te amanhecendo].
A abertura anuncia um acontecimento: “uma ocasião”. Os três primeiros versos indicam a decisão paterna. Em posição central, o quarto verso, o mais longo, torna-se uma espécie de eixo horizontal, marcando a mudança do antes para o depois: a casa muda, o ambiente familiar é valorizado pelo “alaranjado brilhante”. O conjunto propõe uma gradação visual, rítmica e sensorial. A cor remete à atmosfera do amanhecer, no sentido próprio e no figurado. Ao calor do sol acresce o do núcleo familiar, cristalizado “por muito tempo”, numa cronologia imprecisa, levando o leitor a sobrepor a ensolarada cena às criações dos mestres impressionistas, distantes no tempo e no espaço, mas presentes na cor luminosa da casa.
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A segunda é a produção concretista de Cassiano Ricardo, em que são associadas palavras e imagem, numa homenagem ao russo Gagárin, o primeiro astronauta a viajar no espaço[1]. O texto organiza-se circularmente, sugerindo uma nave espacial e possíveis viagens interplanetárias. As palavras que o compõem situam-se em dois campos semânticos: por um lado, apontam para o futuro — em relação àquele momento, 1961; por outro, recuperam dados de um passado histórico, a época do imperador romano César.
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GAGARIN
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O leitor percebe os jogos verbais, no arco superior do poema, em torno da palavra “ave”, retomada em “nave”, “belonave” e “astronave”. Desse modo, fica indicada a associação entre o avanço tecnológico e a natureza. A repetição “Belo belo” retoma o nome de um livro e um poema de Manuel Bandeira.
Entre o alto e o centro, do lado esquerdo, surge um efeito de tensão, pelo contraste entre a semelhança sonora e a diferença de sentido, na expressão “bela ave bélica”: o primeiro adjetivo remete à beleza e o segundo, à guerra, já que “bélico” deriva do termo latino “bellum” que significa guerra, combate.
No centro, “pato selvagem ave” indica a formação de uma classe de pássaros que geralmente voam em conjunto. Um exemplo para os seres humanos? Mais uma vez, a natureza se superpõe à tecnologia.
Note-se a economia de formas verbais. A única presente no texto vem na frase final, num jogo intertextual com a época de César, imperador saudado pelos que seriam sacrificados na arena, com a frase latina “Ave Imperator, morituri te salutant” (“Salve, imperador, os que vão morrer te saúdam!).[2] Inversa e positivamente, o poeta anuncia: “os que vão nascer te saúdam”. Esse paralelo sugere uma atmosfera humanista que ultrapassa tanto os limites espaciais, quanto os temporais, interligando épocas, culturas e civilizações.
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A terceira é a imagem de uma aldeia medieval retratada por Cecília Meireles. Em 1934, Cecília Meireles acompanhou o marido, Fernando Correia Dias, a sua aldeia natal, Moledo de Penajóia. O poema Madrugada na aldeia recria a atmosfera nostálgica do modo de vida desse vilarejo, propondo uma viagem imaginária a outra época.[3]
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Madrugada na aldeia
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Madrugada na aldeia nevosa,
com glicínias escorrendo orvalho,
os figos prateados de orvalho,
as uvas multiplicadas em orvalho,
as últimas uvas miraculosas.
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O silêncio está sentado pelos corredores,
encostado às paredes grossas,
de sentinela.
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E em cada quarto os cobertores peludos envolvem o sono:
poderosos animais benfazejos, encarnados e negros.
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Antes que um sol luarento
dissolva as frias vidraças,
e o calor da cozinha perfume a casa
com a lembrança das árvores ardendo,
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a velhinha do leite de cabra desce as pedras da rua
antiqüíssima, antiqüíssima,
e o pescador oferece aos recém acordados
os translúcidos peixes,
que ainda se movem, procurando o rio.
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(Cecília Meireles, Mar Absoluto, 1945)
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O texto descreve um vilarejo ao amanhecer. As plantas — glicínias, figos, uvas — referenciam o espaço externo. Nenhum ser vivo, apenas vegetais. Sucedem-se percepções sensoriais mescladas — visual, táctil e gustativa —, resultando em sinestesia: Madrugada na aldeia nevosa / Com as glicínias escorrendo orvalho / os figos prateados de orvalho / as uvas multiplicadas em orvalho,/ as últimas uvas miraculosas. A ausência de verbos resulta num processo de nominalização que enfatiza o quadro estático. O termo “orvalho” é repetido, numa gradação crescente. O efeito rítmico e a sinestesia sugerem ampliação, como se a umidade do orvalho unificasse toda a natureza.
O verso 4, “as últimas uvas miraculosas”, faz uma indicação climática e espacial: a inesperada colheita das frutas, no final do outono europeu, pouco antes do inverno. Os termos “multiplicadas” e “miraculosas” ecoam na memória, evocando o milagre bíblico da multiplicação.[4] Dado o caráter indireto da alusão, é possível pensar na força resultante da aliança entre homem e natureza.
Na segunda estrofe, agora em ambiente interno, prossegue a estaticidade, com o silêncio personificado como sentinela, ecoando no som “s” : O SilênCio eStá Sentado peloS corredoreS, / encoStado àS paredeS groSSaS, / de Sentinela. “Paredes grossas” documentam a morada antiga, com séculos de vida e história. Não seria essa memória a preciosidade maior a ser guardada pela sentinela?
A imagem das pessoas prestes a acordar surge indiretamente, por meio de percepções visuais e tácteis: E em cada quarto, os cobertores peludos envolvem o sono: poderosos animais benfazejos, encarnados e negros. Também os cobertores protegem as pessoas adormecidas. Prolonga-se a repetição do som S: “oS cobertoreS peludoS envolvem o Sono: / poderosoS animaiS benfazejoS, encarnadoS e negroS”.
Note-se a plasticidade cromática resultante da sucessão de cores: a primeira estrofe é matizada pelo tom prata da névoa e do orvalho; na segunda, os corredores sugerem penumbra e ausência de cor; na terceira, os tons fortes dos cobertores se sobressaem, num contraste indicador de mudança: a chegada da luz do dia, da atividade, do ruído, do movimento.
A transição é mais uma vez anunciada, no início da quarta estrofe: Antes que um sol luarento / dissolva as frias vidraças… O sol é dotado de vida, como o silêncio e os cobertores, sua atividade propicia a humana, prestes a começar. Na segunda parte da quarta estrofe, é introduzido o fogo, novo elemento anunciador do despertar. Também aqui é marcante a sinestesia, combinando tato, olfato e visão: ”E ( antes que) o calor da cozinha perfume a casa / com a lembrança das árvores ardendo”. Acrescente-se o efeito auditivo do crepitar da madeira e, ainda, o paladar da bebida ou alimento preparado sobre o fogo. A sinestesia torna-se completa, envolve os cinco sentidos. Há nova personificação: as árvores são dotadas de lembrança. A função da madeira é não só a de aquecer e alimentar; mas também a de relembrar os vínculos entre o homem e a natureza.
Na primeira estrofe, orvalho e plantas sinalizam a presença de dois elementos: a água e a terra; na quarta, surge um terceiro elemento, o fogo. De modo implícito, o ar, o quarto elemento fundamental, figura em todo o texto. Foi mencionada, desde o início, a aliança entre o homem e a natureza. Ela se aprofunda, gradativamente, pela forte presença dos quatro elementos naturais que, como os cobertores, também envolvem o sono e o sonho humanos.
Na última estrofe, a transição da inércia para o dinamismo se completa. De um lado, o termo “recém-acordados”, sugere a movimentação ainda ralentada das pessoas que despertam. De outro, o alimento matinal lhes é oferecido, resultado da ordenha e da pesca, indícios do trabalho e da atividade dos que acordaram, já há um bom tempo: “a velhinha do leite de cabra desce as pedras da rua / antiqüíssima, antiqüíssima”. A rua antiqüíssima caracteriza as pedras pisadas por muitos pés, ao longo de séculos. Configura-se um modo de vida particular, diverso do das grandes cidades. A rima toante em “i” aproxima os termos velhinha e antiqüissima, dando pistas para a identificação entre cenário e personagem. Não se trata apenas da idade da mulher, mas também da função social antiqüíssima que ela exerce.
Nos três versos finais, o “pescador oferece aos recém-acordados/ os translúcidos peixes / que ainda se movem, procurando o rio”. Essa atividade igualmente marca a proximidade com a natureza. Associam-se as percepções visual, táctil, olfativa e gustativa. Acentua-se o diálogo com o texto bíblico, iniciado pela presença dos peixes translúcidos.
O emprego do presente verbal traduz permanência e duração. Retrata-se um modo de viver e de se relacionar com a natureza, cristalizado e perene. Num passe de mágica poética, o lugarejo ultrapassa a localização espacial ou temporal. Ele se cristaliza nos versos que Cecília Meireles compartilha com o leitor.
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Os três poemas propõem leituras que se configuram como viagens imaginárias em direção a tempos e espaços que se oferecem como cenários para que o caminhante os percorra e se prepare para novos encontros poéticos.
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Notas:
[1] Há 60 anos, Yuri Gagarin se tornava o primeiro ser humano a viajar para o espaço. (Matéria de 12/04/2021, TV Cultura.)
[2] SUETÔNIO. A vida dos Doze Césares. Brasília: Edições do Senado Federal, Vol. 171, p. 187.
[3] Este texto retoma parcialmente outro, publicado no D.O. LEITURA, em março de 2002.
[4] Diz o Evangelho que Jesus falava para uma multidão. Julgou-a faminta, mas só havia cinco pães e dois peixes. Ordenou aos discípulos a distribuição dos alimentos que, milagrosamente, se multiplicaram. No final, ele pediu: “Recolhei o que sobrou”. E tinham sobrado 12 cestos de comida. In Biblia Sagrada, Nova Versão Internacional, NVI ,1993, 2000.
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