O Início da História: Os pioneiros da Literatura Russa moderna

Ao impor o processo de ocidentalização, as reformas de Pedro, O Grande serviram de alicerce para a revolução cultural que culminaria na literatura russa moderna.

por Rafael Frate

A literatura russa nasce a partir de uma revolução cultural. A ideia sustentada por alguns autores, sobretudo James Cracraft nos diversos livros em que afirma que o período de Pedro I, o Grande, como um todo seria tecnicamente revolucionário, talvez encontre sua maior justificação no mundo da cultura. Uma revolução, é certo, dirigida e orientada a partir de cima, de estruturas de poder já configuradas, dos desígnios particulares de um monarca e seus correligionários, mas que de qualquer modo consistiram em “grandes mudanças súbitas na cultura, conduzidas conscientemente por uma minoria ativa, cujo período pós-revolucionário é prontamente diferenciável do período anterior, de modo que produziram mudanças permanentes”.¹ 

Esta revolução cultural, pelo decorrer de um século, lançou os alicerces do grande edifício da literatura russa que seria erigido no decorrer do XIX e do XX. Este caráter fundacional e, portanto, convencional, já que se tratava de um fazer literário orientado pelos preceitos beletrísticos da imitação de modelos e adequação aguda a convenções literárias, é talvez o motivo por que ela hoje seja tão esquecida e ignorada. Nossa expectativa para o que deve ser uma poesia e a imagem que geralmente temos de um poeta e de seu trabalho artístico é bastante diferente do que naquela época se prescrevia, ainda que ela fosse um dos últimos momentos antes da virada romântica que formou nossa apreciação literária moderna.  

Muito do que foi composto lá então soa hoje muito estranho a nossos ouvidos. Um gênero poético composto para ser declamado em ocasiões públicas solenes com o fim de louvar uma figura política é de um absurdo que beira o ridículo. Em que pesem os acólitos e fanáticos de nossas populares seitas políticas modernas, não se pode fazer por aqui esse tipo de poesia e ser levado a sério a menos que em uma chave paródico-satírica. A ode panegírica solene foi, no entanto, o principal gênero poético praticado nesse início, saindo dela as principais formas em que todos os grandes poetas do XIX e do XX compuseram suas obras. Dessas odes solenes vêm diversas máximas, provérbios populares e tópicas retrabalhadas depois que marcaram efetivamente a língua russa.

A série de seis ensaios que se inicia aqui, sobre os primórdios da literatura russa moderna, é uma modesta tentativa de dar a conhecer de uma forma que nos seja palatável este momento tão decisivo quanto fascinante que foi o século XVIII russo e seu fazer literário.

I. Uma revolução cultural

A cultura russa moderna é fundada com as reformas de Pedro, o Grande. A ocidentalização forçada, que teria no antagonismo eslavófilo do século seguinte parte do processo que culminaria na condição do homem cindido e lúgubre de Dostoiévski, teria antes o brilho da naturalidade solar da poesia de Púchkin, como a coroação de um processo que se iniciou com o impulso dado pelos autores pós-petrinos. Vestuário, culinária, modo se ser, religião, cultura burocrática, língua. Todas essas esferas foram em maior ou menor grau reconceptualizadas.

No vestuário, por exemplo os longos cafetãs e casacos de pele deram lugar às casacas da última moda europeia do início do XVIII; as barbas, aos bigodes. Vale lembrar aqui a história de quando o então Tsar retorna de sua viagem à Europa – a primeira da história empreendida por um monarca russo. Ao chegar, uma de suas primeiras ações teria sido a de cortar as barbas de seus mais antigos palacianos. A partir de então, quem não fosse do clero e quisesse usar barba teria que pagar um imposto, mais um dentre os inúmeros criados para alimentar o gigantesco leviatã ao qual tardiamente começava a modernidade.

Modo de ser, cultura de corte, estrutura burocrática, tudo isso passou por radicais mudanças. A dança, por exemplo, atividade central na cultura cortesã europeia foi introduzida oficialmente na corte russa na época petrina, bem como verdadeiras instituições oficiais da sátira e da galhofa organizada. O símbolo máximo disso é O Todo-Pândego, Todo-Embriagado Concílio dos mais Doidos (Vsepianiêischi Synod), um clube fundado por Pedro e seus amigos mais próximos, que acabou virando órgão oficial de imposição cultural, cuja principal finalidade era tirar sarro do clero, deslegitimando a antiga cultura eclesiástica moscovita em nome da petersburguense secular moderna (e, claro, ficar absolutamente bêbado para dar um tempo das preocupações do Estado).

Faz lembrar o filme Arca Russa, de Aleksandr Sokúrov, uma das maiores odes à Cidade de Pedro I e ao Museu de Catarina II, em que logo no começo, respondendo a seu interlocutor, o Marques de Coustine, diz a propósito de Pedro que, quanto mais cruel o tirano, mais ele é amado pelo povo russo. O personagem-câmera, não sem a habitual ironia de seu povo, responde: “mas foi justamente ele quem permitiu ao povo russo se divertir”. Nessa fundacional fuzarca petrina, a imagética carnavalesca, com seus fogos de artifício e espetáculos de excentricidades e banquetes suntuosos, trazia essencialmente a estética clássica da mitologia pagã greco-romana. Pela primeira vez na região, a imagética que seria um dos pilares da Renascença ganhava na Rússia a condição de orientação oficial do Estado.

De qualquer modo, em nenhuma das reformas petrinas, essa nova orientação artística foi tão importante quanto na recém-fundada língua russa enquanto instrumento de poder e cultura. Já falei em outra ocasião desse detalhe, mas nunca é demais ressaltar: Pedro, o Grande fundou a língua russa moderna. Com a criação de um alfabeto civil que simplificava radicalmente as intrincadas formas das letras cirílicas eclesiásticas, cortando uma série de caracteres obsoletos herdados do grego; com a determinação por se escrever na chamada prostói iazyk, a língua simples; com a praticamente criação de um mercado editorial por meio do estabelecimento de novas casas editoriais e uma indústria de produção de papel; todas essas foram medidas que levaram a essa fundação.

Abecedário de 1709, com correções do punho do próprio Pedro I

Acompanhando a explosão editorial promovida no primeiro quarto do XVIII, em que seis novas casas foram fundadas durante os anos de Pedro, o Grande, triplicando em uma década a produção de quase duzentos anos da única casa de imprensa que havia no reino, subordinada ao Patriarca de Moscou, a imposição do vernáculo sob essa tendência classicizante foi o passo decisivo para o início da produção literária secular russa. O influxo de livros traduzidos a princípio data da primeira metade do século XVIII, e as bases mais profundas da língua são lançadas a partir das experiências mais ou menos bem-sucedidas dessa empreitada. Um dos primeiros títulos traduzidos ainda no reinado de Pedro I era o famoso catálogo de mitos gregos antigos, a Biblioteca de Apolodoro.

Nessa nova língua e literatura, a tarefa de traduzir imitar e emular os clássicos greco-latinos foi central. Todos os principais atores do verdejante campo literário do século XVIII, e inúmeros do XIX em diante, praticaram essas modalidades às vezes traduzindo informativamente, fiéis às línguas de chegada, às vezes em patente emulação, usando-se apenas de reminiscências de seus modelos originais para seus fins poéticos próprios. Os primeiros autores da nova língua russa, ainda escrevendo em algo não muito fácil de decifrar para um falante do russo de hoje, foram os pioneiros de uma concepção literária nova naquelas terras, ainda que não formalmente descoladas do fazer e da língua literária pré-petrina. Falemos aqui dos dois maiores desses pioneiros: Feofan Prokopóvitch e Antiokh Dmítrevitch Kantemir (1708-1744).

II. O teólogo e ideólogo do Imperador

Feofan Prokopóvitch (1681-1736), clérigo, teólogo e homem de letras, foi o maior sustentáculo ideológico do poder absoluto de Pedro, o Grande. Nasceu sob o nome de Eleazar, na Zaporójia, a insubordinada região do Tarás Bulba de Gógol, no sul da atual Ucrânia. O menino pobre, orfanado na primeira infância, seria logo adotado por seu tio monge, diretor do monastério da Irmandade da Epifania em Kíev, fundado no início do século XVI e destruído em 1935 por Stalin. Seria a fagulha para seu interesse com os clássicos e o saber de uma forma geral. Passados alguns anos, o jovem se formaria na Academia de Kíev, a mais antiga instituição de ensino superior da região e parte do mesmo monastério. 

Feofan Prokopóvitch como Arcebispo de Nôvgorod.

Com grande talento para os estudos, o jovem empreendeu uma viagem para o ocidente, após tomar contato com membros da ortodoxia eslava que haviam entrado em comunhão com Roma um século antes pela União de Brest, pejorativamente a princípio chamados de “uniatas”. Passaria principalmente pela Polônia, o centro oriental da Renascença, onde tomaria contato com os Jesuítas e suas concepções pedagógicas, até chegar à Itália, onde ingressa na instituição católica para membros do rito oriental em comunhão com Roma, o Colégio de Santo Atanásio, conhecido por Collegio Greco. Mas ele voltaria logo depois, abjurando o Catolicismo em retorno à Ortodoxia Russa, só que sob uma perspectiva, digamos, “reformada”. 

Por conta de sua fidelidade ao Tsar na turbulenta, mas logo vitoriosa Grande Guerra do Norte, o clérigo começa uma longa amizade com o monarca russo e uma parceria que seria central na justificação da ideologia petrina, que o colocava como figura central nos círculos de poder mais íntimos de Pedro, o Grande. Prokopóvitch, também o russo mais culto de sua geração e que, em suas andanças pela Europa, esteve em pleno contato com a obra de Bacon, Erasmo, Lutero, Maquiavel, Galileu, Descartes e também de Hobbes e Grócio, foi um dos principais agentes políticos de Pedro, nas complexas teias do poder moscovita, envolvendo um clero cada vez mais impotente e rancoroso, hierarquias militares ultraconservadoras e uma massa de citadinos e camponeses que seriam mobilizados e contabilizados nos gigantescos empreendimentos a serem realizados.

O amálgama desses autores, junto com a base de cultura clássica de uma boa formação jesuíta, culminaria no Verdade da Vontade do Monarca (Pravda Vôli Monarschei), de 1722, na prática, um tratado político em defesa do absolutismo, que teria sido escrito pela justificação do direito do monarca de nomear quem ele bem entendesse como sucessor, tendo em vista a questão causada por seu filho, o Tsariévitch Alexei, o indolente rebelde reacionário que seria executado por ordem de seu pai em 1718. Esse documento que tradicionalmente se atribui a Prokopóvitch seria um dos principais manifestos a justificar as ações do novo Imperador, que logo em seguida nomearia sua segunda (e para muitos ilegítima) esposa, a provavelmente camponesa Marfa Skavrônskaia, que entraria para a história como  Catarina I, a primeira mulher a assumir o trono russo.

A influência principal de Prokopóvitch foi nas reformas eclesiásticas petrinas. Desde sua convocação a São Petersburgo em 1716, até sua nomeação a Arcebispo de Nôvgorod em 1725, o clérigo sempre esteve à frente dessas reformas, que acabariam por abolir o Patriarcado de Moscou e inaugurar o Santo Sínodo, órgão estatal subordinado a um Oberprokuror laico e a um vice-presidente, cargo que, a propósito, ele ocupou. Por toda habilidade política e controle do logos, foi o pivô da transformação da igreja russa, de par a mero braço do Estado, mas esses feitos não importam a este ensaio. Fiquemos apenas com a posição de Feofan Prokopóvitch como homem de letras e pai fundador do fazer literário russo moderno, que o colocou na mesma condição de muitos outros autores de seu século, o de intermediário entre a insignificância e a centralidade no chamado cânone ocidental.

Ao voltar para a Ucrânia torna-se professor dos cursos de poética, retórica e filosofia da Academia de Kiev, a mais antiga instituição de ensino superior das terras russas. Fundada nos moldes das academias jesuítas da Polônia e Lituânia, esta foi a única instituição onde se podia receber uma formação em latim, a língua franca do mundo cristão ocidental. Cada professor revezava nas cadeiras de cada disciplina e cada um deveria escrever um manual em latim para o seu respectivo curso, de modo que em seus períodos mais produtivos, a academia produzia um desses manuais por ano. Do curso de poética, por exemplo, restaram mais de trinta, todos hoje nos arquivos da Biblioteca Nacional de Kiev, em manuscritos jamais editados. Com sua primeira edição no fim do XVIII e reedição nos anos 1960, o manual de Prokopóvitch é a única exceção. O manual kievano escrito em latim, que deriva de manuais jesuíticos mais influentes, é uma pequena amostra de uma sólida formação clássica, com muito Virgílio, Ovídio e Horácio.

Ele foi um nos nomes da modesta expressão da Latinidade em terras russas, compondo em latim além deste manual alguns poemas como o Epiníkion ou Poema Triunfal sobre Tão Grande Vitória, composto algumas semanas depois da vitória em Poltava, atualizando pela primeira vez no decorrer do século, o modo laudatório associado ao poeta grego antigo que em melhor estado nos chegou, Píndaro, cujas odes celebravam as vitórias dos tiranos nas grandes competições esportivas do mundo grego antigo. O nome do antigo tebano seria associado aos gêneros mais elevados da poesia praticada no decorrer do século, como a Ode Solene, o panegírico oficial de que já falamos endereçado ao monarca por conta de algum episódio importante em seu reinado. Citemos apenas os dois primeiros versos dele:

Si quando licuit sane nunc poscere centum 
ora licet, centum línguas optare sonoras. 

(Se outrora foi, agora certamente pedir cem
bocas é possível e desejar cem línguas sonoras.)

A tópica e sua imitação bem efetuada foram o princípio básico de qualquer poesia praticada há até bem pouco tempo. Filiar-se a um determinado modelo, longe de ser uma afronta a uma individualidade a ser autenticamente expressa, era uma forma de garantir autoridade a um escrito impessoal que por seu próprio engenho se apropriaria do modelo para seus fins particulares e que, por sua vez, visaria se tornar um modelo de autoridade. O poeta nesses dois primeiros versos se filia a uma conhecida tópica dos leitores de épica antiga: nem se eu tivesse um x número de vozes, línguas ou bocas, eu poderia narrar tamanho fato. Homero é, naturalmente, o primeiro e não conseguiria narrar um feito na Ilíada nem se tivesse dez línguas, dez bocas e um ânimo de bronze (Il. II, v.489): aqui começa o famoso Catálogo das Naus, aquela longa e gloriosa lista na metade do canto dois de comandantes, povos e navios, que normalmente decidimos pular. Mais tarde Virgílio, na famosa descida de Enéas aos infernos, dá a palavra à Sibila de Cumas, que aumenta para cem o número de vozes e bocas, com um ânimo de ferro, que seriam insuficientes para narrar um tamanho assunto, no caso todos os monstros que eram punidos nas profundezas dos ínferos (E. VI, v. 625).

O uso do lugar comum no poema por Prokopóvitch refletia a particularidade do fazer poético que não é mais nem relevante, nem apropriada ao nosso gosto hoje em dia. Mas para ele e a ideologia que se formava no início de seu século, era simplesmente fundamental. Se o novo império quisesse impor um esplendor que se coadunasse com o de seus pares absolutistas europeus, ele precisaria voltar e projetar os modelos estéticos deles mesmos. Nada foi mais apropriado a isso que a imagem da Roma Augustana, nas artes plásticas, na urbanística, nas cerimônias. Sendo as belas letras um dos principais instrumentos para a propagação dessa visão imperial, é necessário escrever como os antigos escreviam e como atualizavam suas tópicas. Prokopóvitch, ao usar esta, particularmente iguala o feito de Pedro em Poltava à grande expedição de troia a que Homero dá a magnitude no catálogo do Canto II e que Virgílio mais brevemente expõe na lista de gigantes e titãs no Tártaro. Nada melhor para louvar seu monarca do que emprestar das autoridades.

Prokopóvitch escreveria também versões para este poema e muitos outros na língua franca da ortodoxia oriental, o eslavônico, ou eslavão, que, por isso mesmo, acabaram na total obscuridade. No entanto, no gênero em que o eslavônico continuaria importante, o da homilia, o homem foi sem dúvida a voz mais eloquente de sua geração. Seus sermões cheios de verve e estilo são belíssimos exemplares do gênero literário mais praticado durante todo o período eslavônico, que vai de meados do século XI até a ascensão de Pedro I.  Foi em um desses sermões, antes da gloriosa batalha de Poltava que o jovem clérigo captou a atenção do jovem Tsar e seria em um deles que ele o colocaria, em latim mesmo, como Pater Patriae e Pontifex Maximus da Igreja Ortodoxa Russa, ecoando algumas das atribuições que Otávio Augusto recebeu. Mas essa era a língua de prestígio anterior que seria agora relegada agora a uma função exclusivamente eclesiástica e descolada do uso comum.

Hoje, toda essa obra repousa no mais profundo oblívio, e o nome de Feofan Prokopóvitch é só uma nota de rodapé nos manuais modernos de literatura russa. Em todo caso, com sua sólida latinidade e sua inteiração das tendências políticas e filosóficas de seu tempo, Prokópovitch foi quem proclamou pela primeira vez a imagem do César da primeira Roma, do monarca absoluto divinizado, do retorno à antiguidade clássica como elemento modernizador do agora Império. A ideia da translatio imperii, muito difundida com chamada Terceira Roma, epíteto dado à Moscou da Verdadeira Ortodoxia em meados do século XV, volta à Rússia, mas não se aplicando mais a Moscou e nem mais como terceira. O que se construiu ou trasladou foi a Primeira Roma, tomando corpo revivida na figura de seu representante máximo o Imperador de Toda a Rússia e sua nova capital. 

III. O novo satirista antigo

O segundo autor deste ensaio, mais jovem, ainda que contemporâneo dos outros nomes da 1ª geração da poesia russa, tal como Feofan Prokopóvitch, não pode ser enquadrado nela. Antiokh Dmítrevitch Kantemir é um autor que geralmente aparece na seguinte proposição: Se Lomonóssov é o verdadeiro fundador da literatura russa, a história da literatura russa começa com Kantemir. Tomemos, no entanto, as palavras do pai da crítica russa, Vissarion Belínksi: “Kantemir não tanto inaugura a história da literatura russa, quanto encerra um período das belas letras eslavônicas.”

Antiokh Kantemir (1708-1744)

Kantemir foi um diplomata mandado a princípio em missão em Londres e depois em Paris, lugar onde passou boa parte de sua breve vida adulta, onde produziu quase toda sua obra e onde morreu. Foi, portanto, um funcionário do Império Russo inaugurando uma longa lista de autores que atuaram agentes estatais. Quase todos os grandes do século XVIII foram também funcionários públicos, o que leva ao fato de que boa parte da literatura produzida durante o século, e aqui entenda-se fundamentalmente poesia, foi oficial, de um modo ou outro atrelada ao Estado.

Antiokh Dmítrevitch era filho de outra potência intelectual de sua época, o Hospodar Dmítri Katemir, Voevoda da Moldávia, então vassalo do Império Otomano. Hiperpoliglota com domínio de 11 línguas, historiador, geógrafo, etnógrafo e cientista, o governante da região otomana foi um mais um desses polímatas iluministas relativamente comuns até o séc. XIX. Sua talvez principal obra, História do Crescimento e Retração do Imperio Otomano, foi uma das inspirações da famosa obra de Edward Gibbon, o Decline and Fall of the Roman Empire. Caçula mais amado de seu pai, o menino Antiokh teve de onde buscar sua formação.

Após a malfadada deserção da Moldávia em favor do Império Russo, a família emigra se instalando na corte do novo império. Antiokh é um dos primeiros a estudar na Academia de Ciências, aberta oficialmente por Catarina I, Imperatriz da Rússia, esposa de Pedro I, a primeira de uma série de grandes mulheres que governaria o Império até o fim do século. O jovem, bastante talentoso em idiomas, é logo mandado para missões diplomáticas, primeiro para a Inglaterra e depois para a França. Foi lá onde escreveu quase toda sua obra, boa parte da qual o seu país só teve acesso em meados do XIX, na primeira reunião de suas obras completas e com os primeiros trabalhos filológicos mais sérios feitos com seus primeiros autores. 

É uma obra bastante peculiar. Em primeiro lugar, Kantemir inaugura um gênero literário até então desconhecido na Rússia: a sátira. Com veia horaciana, intermediada pelo Vate de Luis XIV, Boileau, Kantemir é o primeiro a fazer poesia essencialmente secular, irrestritamente alinhada à ideologia modernizadora petrina, e fundamentalmente tendo como alvo a cultura eclesiástica moscovita, sempre posta com os habituais epítetos de obscurantista, retrógrada, atrasada. Sua primeira sátira, por exemplo, é um ataque direto a ela com o título Sobre os detratores do saber: à minha própria mente, em que a ironia inicial recai sobre inutilidade da escrita e do contribuir para o saber. Essa primeira sátira de Kantemir é o primeiro exemplar de uma prática poética exclusivamente secular na Rússia e por sua temática, tom e proposta, é um dos marcos na fundação da literatura moderna do país. 

Belínski em seu artigo sobre o poeta afirma que todos concordam ser Lomonóssov o pai da literatura russa, mas que também todos começam a história da literatura russa começa a partir de Kantemir. O que leva ele a ter esse aspecto duplo, de ser o primeiro a praticar um fazer literário secular, mas ainda assim não ser considerado o seu principal fundador? A resposta está na forma e na língua em que escrevia. Kantemir, nas palavras de Belínski, não tanto inaugura a história da literatura russa, quanto encerra definitivamente a era das letras eslavônicas. É mais um autor que representa esse aspecto januário de olhar ao mesmo tempo para o passado e para o futuro: de um lado, sua obra inaugura um gênero totalmente revolucionário em seu contexto, em outro, ele ainda escreve como os antigos doutos da Velha Moscóvia.

Suas sátiras são escritas em uma língua ainda extremamente arcaizante, e, não obstante as tendências vernaculares e o tema em que escrevia, do gênero baixo por excelência, permanece, pela forma, um poeta do passado. Lomonóssov é o pai da literatura russa sobretudo pelo fato de que ele o primeiro a escrever na forma russa por excelência, o tetrâmetro iâmbico, o mesmo do Oniéguin de Púchkin. Lomonóssov, na verdade, deu a palavra final em uma questão que trataremos no nosso próximo artigo: a escolha do sistema métrico da poesia russa.

Kantemir escrevia em um metro que possuía uma história de já uns bons 400 anos que seria mais adaptado a uma língua cuja fonologia era bastante diferente da russa, principalmente quanto à questão da tonicidade. O moldavo escrevia em um sistema que tivera uma breve passagem no século XVII moscovita, herdado da literatura polonesa, a mais influente do mundo eslavo então. Assim como o português, o que valia era o número de sílabas no verso, com uma ou duas tônicas fixas. Assim, por exemplo, um metro de doze (ou treze) sílabas teria o prestígio do verso por excelência, como o alexandrino francês (de 12 sílabas) ou o decassílabo heroico português (de dez sílabas, sem contar a final). O sistema silábico foi usado por Kantemir em todas as suas obras, inclusive em traduções. É mais uma das coisas que o deixou no passado. 

A adoção posterior do sistema sílabo-tônico, em que a unidade mínima de composição é o pé métrico (combinação de sílabas átonas e tônicas), pelos pioneiros que reformaram a poesia russa, foi a principal mudança que colocou a poesia de Kantemir no passado. Não há como negar, no entanto, sua importância e sua posição no panteão de grandes autores dessa nova instituição que se formava, a literatura russa.

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Estes brevíssimos perfis são uma modesta introdução a dois pioneiros do fazer literário russo. Sua condição ainda prematura, despreocupada com certas questões formais do verso russo, sobre o uso de diferentes registros linguísticos, sobre um uso ingênuo de modelos, colocam tanto Prokopóvitch como Kantemir, em uma posição de prefiguradores do que viria. Quem faria o papel de estabelecer a verdadeira fundação literária da língua russa, seriam os poetas da Primeira Geração: Trediakóvski, Lomonóssov e Sumarókov. É dela, de suas questões e seus méritos que falaremos no próximo artigo.

NOTAS:

¹ Cracraft, J. The Petrine Revolution in Russian Culture, pg.12. Harvard UP, 2004.

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