O som e a fúria de Renata Belmonte: cinco anos de “Mundos de uma noite só”

Assim como Faulkner, a autora resolveu correr o risco de não apresentar soluções fáceis, e seu grande trunfo é contar uma história sem o menor traço de panfletarismo, deixando que a trama e sua complexa rede de personagens falem por si mesmas.

Quando, anos atrás, eu li Mundos de uma noite só, de Renata Belmonte, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos de 2021, vi que estava diante de uma obra incomum, de feitura inusitada e rara força. Ao percorrer as primeiras páginas, me veio à mente O som e a fúria, de William Faulkner. Nos dois livros, a história nos é apresentada de forma complexa, confusa e fragmentada. É preciso certo esforço para acompanhar tantos personagens, tantas vozes, tantas idas e vindas no tempo narrativo e situações que são apenas sugeridas e não explicadas; porém, lentamente, a paisagem vai se desanuviando, as pontas vão se encontrando, e ao final nos vemos diante de um quadro pintado com extrema habilidade.

Escrito entre 2012 e 2013, Mundos de uma noite só foi publicado apenas em 2020, e agora, cinco anos depois, ganha uma nova edição, pela TAG livros. Nos últimos dez anos, muita coisa mudou, e vimos uma espécie de retrocesso naquilo que entendemos como boa literatura: a subjetividade deu lugar à obviedade, a capacidade de fabulação cedeu à necessidade de autoafirmação, e discursos e posicionamentos alheios à literatura nortearam publicações e premiações. Talvez não por acaso, vimos surgir também os linchamentos virtuais da nova Inquisição. De certa forma, a literatura foi empobrecida pelos discursos ideológicos mais rasos, e a ficção — esse universo antigo e rico em experiências e significados — ficou em segundo plano.

A escritora Renata Belmonte.

Não que as grandes questões do nosso tempo não possam — ou não devam — estar presentes na literatura. Se eu tivesse que resumir Mundos de uma noite só em uma frase, eu diria que é uma história sobre como o machismo estrutural estabelece relações de poder que subjugam as mulheres de forma indelével, por gerações. Mas o grande trunfo de Renata Belmonte é contar essa história sem o menor traço de panfletarismo, deixando que a trama e suas personagens falem por si mesmas. Em uma entrevista após o lançamento do livro, em 2020, ela afirmou: “Eu estou cansada de coisas esquemáticas, de personagens desenhados para agradar um certo tipo de público”. Em suma, Renata acredita no poder da (boa) literatura e sua capacidade de trazer realidades à mente, como afirmou Samuel Johnson em seu famoso ensaio sobre Shakespeare. Tampouco Renata cai na armadilha de escrever um livro sobre “mulheres fortes”, porque ao afirmar algo, você afirma também o seu contrário, ou estabelece uma exceção. Não, as mulheres em sua obra são fortes e são fracas, são nobres e são desonestas, são íntegras e são desprezíveis; elas são, afinal, apenas humanas. Mundos de uma noite só traz ainda outra das grandes questões sociais de nossa época, a identidade de gênero; Renata, porém, a aborda sem dizer uma palavra sobre ela durante todo o romance. O leitor só se dará conta disso ao final do livro, levado pela mão hábil da escritora.

Estruturalmente, o romance encerra duas narrativas: uma que transcorre nos anos 2000, onde temos uma jovem, em diferentes idades, vivendo numa cidade grande, refletindo sobre a própria vida, suas inadequações e sua complexa relação com suas “duas mães”; e outra que é um relato que ela encontra, escrito por sua mãe, intitulado Uma valsa para o esquecimento, em que ela narra a história da família do pai da jovem, retrocedendo até a década de 1940, em uma cidade pequena e indeterminada (provavelmente no Nordeste). As duas narrativas se alternam, dando saltos no tempo, compondo um imenso mosaico em que temos, como pano de fundo, a história do Brasil nesses 60 anos.

A trajetória do personagem Luiz Antonio Grimaldi, o patriarca da família, é emblemática dessa relação de poder. Nascido em uma família de posses e influência política, ele, jovem idealista, flerta com o comunismo durante a década de 1940; porém, duas décadas depois, ele já migrou para o establishment e é o governador do estado, dando continuidade ao nepotismo inabalável do coronelismo nordestino (vários políticos brasileiros de trajetória semelhante poderiam vestir essa carapuça). Luiz Antonio é um pai ausente e um marido infiel, e à esposa, a Senhora de Menezes Grimaldi, forçada à submissão pela dependência financeira, só resta o silêncio. Há uma passagem bastante amarga no livro, em que ela, no ápice da humilhação, tenta se desvencilhar dessa dependência, mas é barrada pela própria mãe, pois é assim que as coisas eram à época. O feminismo foi uma construção lenta, que perdura até hoje — e, como em toda construção social e histórica, como explica o materialismo dialético, os ajustes são feitos conforme o tempo avança, em movimentos pendulares —, e esse pêndulo hoje se aproxima perigosamente da beligerância pura, do ódio cego, quando vemos mulheres sem o menor pudor de cancelar outras mulheres. Talvez o pêndulo volte ao centro, e quiçá uma síntese seja alcançada para que se consiga ao menos o cessar do fogo amigo. De qualquer forma, houve um avanço na luta feminina no último século. A neta da Senhora de Menezes Grimaldi, que narra a história no tempo atual, poderia ser beneficiária dos avanços dessa luta. Porém, ela ainda sofre por sua condição, e parece acreditar que vem de uma linhagem de mulheres predestinadas à infelicidade, que morrem cedo, que não atingem o seu potencial. Esse sentimento de inadequação da personagem principal — em parte reflexo da inadequação da personagem de nome Lágrima, uma de suas “mães” — é a espinha dorsal do livro.

Mundos de uma noite só é, conforme afirma a própria autora, um romance de formação — que é, por definição, uma narrativa de superação; no caso de Mundos, porém, essa superação não se dá como um aprendizado, como um vir-a-ser. A solidão da personagem principal, diante de um mundo que ela não aceita e não compreende, herdeira de relações familiares degeneradas, parece fixá-la no tempo. Em determinada altura, ela afirma que “das pessoas da minha vida quase nada sobrou. Partiram todas em busca de castelos de areia e acabaram afogadas em sonhos de maré alta”. À narradora resta, então, uma última esperança: contar a sua história. Se há uma salvação, ela virá pela palavra. Essa é a mensagem final do livro: ao dominar a palavra, domina-se a vida. Afinal, não é a linguagem o que nos difere das feras e nos dá a consciência? Como afirma o filósofo alemão Éric Weil, quando cessa a razão, triunfa a violência.

Romance ganhou nova edição pela TAG Livros.

Porém, à parte as discussões políticas e privadas do romance, ele é, acima de tudo, uma história fascinante, contada por uma escritora segura, que deu a si mesma o tempo para amadurecer. Renata Belmonte despontou para a literatura nacional ao ganhar dois prêmios literários com dois livros de contos, escritos quando ela tinha vinte e poucos anos. Entre estes e Mundos de uma noite só, muitos anos se passaram, e entre a escrita do seu primeiro romance e sua publicação, foram sete anos de espera. Que escritor, hoje, nesta época imediatista, esperaria tanto tempo para ver o seu livro ganhar o mundo? (Curiosamente, James Joyce também teve que esperar sete anos para publicar o seu primeiro livro de contos, Dublinenses, finalizado em 1907 e lançado em 1914.) A literatura é inimiga da pressa e, ouso dizer, inimiga da juventude. Salvo raras exceções, os grandes escritores e as grandes escritoras que povoam a mente de todos os amantes da literatura são velhinhos e velhinhas de cabelo grisalho. Escrever bem é mais que uma técnica; é principalmente o que se viveu, o que se experimentou, o que se traz na alma. E isso requer tempo e maturação. 

Em determinado momento, a narradora de Uma valsa para o esquecimento, o livro dentro do livro, afirma que o que ela está prestes a contar “pode parecer algo que só existe em ficção”. Por outro lado, em A personagem do romance, Antonio Candido afirma que “quando, lendo um romance, dizemos que um fato, um ato, um pensamento são inverossímeis, em geral, queremos dizer que na vida seria impossível ocorrer coisa semelhante. Entretanto, na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida.” Renata Belmonte sabe disso, visto que teceu com mão firme uma tapeçaria tão intrincada, mas nos dá essa piscadela, como se reafirmasse, em uma frase, o pacto entre autora e leitor. Assim como Faulkner, ela resolveu correr o risco de não apresentar soluções fáceis. E assim como o autor, ela acertou em cheio. Vencida a verdadeira montanha-russa que é a trajetória dessa família, ao longo de seis conturbadas décadas, ao final, ao leitor só resta a constatação de que essa é uma história tão estranha — e tão triste — que só poderia ter acontecido na vida real.

Marcelo Nunes é escritor e editor-chefe da Editora Nauta.

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