‘A Literatura Potencial’

No Estado da Arte, na tradução e apresentação de Brune Carvalho, o primeiro manifesto oulipiano.

por Brune Carvalho

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O leitor brasileiro talvez já tenha ouvido falar no Oulipo, sigla para Ouvroir de Littérature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial), grupo literário experimental fundado na França em 1960 pelo escritor Raymond Queneau e pelo amante da matemática François Le Lionnais. Uma das ideias do núcleo, que se mantém ativo ainda hoje, é rever a história da literatura em busca de restrições, espécies de regras formais que fundamentaram a escrita literária no passado. Isso significa que o desejo de inovação, ao contrário do que muitas vezes pensamos, nem sempre regulamentou a palavra dos escritores. Lembremos a tragédia clássica grega, cujos princípios foram organizados na Poética de Aristóteles. A tragédia clássica respeita as unidades de tempo, espaço e ação: uma peça como o Édipo Rei, de Sófocles, se passa no intervalo de 24 horas, num espaço unificado em que as ações das personagens se encadeiam umas nas outras, com princípio, meio e fim. É pela retomada de formas como essa que se interessa o Oulipo.

O grupo também se encarrega de inventar regras novas que motivem o jogo da criação, possibilitando que a escrita aconteça mesmo quando a inspiração falha, sem perder de vista seu caráter lúdico. Invertendo valores estabelecidos, a Oficina de Literatura Potencial vislumbrava já em seu surgimento as possibilidades que a linguagem de computadores, naquele momento em estado de germe, facultaria à criação, junto de fórmulas advindas da matemática, fazendo proliferar os recursos da escrita. Autores como Italo Calvino, Georges Perec e Marcel Duchamp já passaram pelo núcleo que, atualmente, inclui a professora de literatura e DJ Anne Garréta, a artista visual Clémentine Mélois e o recém-premiado escritor Hervé Le Tellier entre seus participantes. Disponibilizo a tradução em português do primeiro manifesto do Oulipo, que celebra a sua origem mais de sessenta anos atrás.

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O Oulipo em Boulogne, 1975

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A Literatura Potencial

(O primeiro Manifesto)

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Consultemos um dicionário[1] para as palavras: “Literatura Potencial”. Não encontraremos nada. Vergonhosa lacuna. As linhas seguintes gostariam de, senão impor uma definição, ao menos propor algumas observações, simples aperitivos destinados a acalmar os famintos, aguardando o prato principal que saberão escrever outros mais dignos que eu.

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Vocês se lembram das discussões que acompanharam a invenção da linguagem? Mistificação, fantasia pueril, deliquescência da raça e desperdício do Estado, traição da Natureza, ataque à afetividade, crime de lesa-inspiração, de que não se acusa (sem linguagem) a linguagem nesta época.

E a criação da escrita, a criação da gramática, vocês imaginam que isso tenha transcorrido sem protestos? A verdade é que a querela dos Antigos e dos Modernos é permanente. Ela começou com o Zinjantropo (um milhão setecentos e cinquenta mil anos) e só acabará junto com a humanidade, a menos que os Mutantes que o sucederão o substituam. Querela, ademais, muito mal batizada. Aqueles denominados Antigos são, com frequência, os descendentes esclerosados daqueles que, em seu tempo, foram os Modernos; e estes últimos, se voltassem entre nós, ficariam em muitos casos ao lado dos inovadores e renegariam seus imitadores devotos.

A literatura potencial só representa um novo crescimento da seiva neste debate.[2]

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Qualquer obra literária se constrói a partir de uma inspiração (é ao menos o que seu autor dá a entender) que é necessária para acomodar bem ou mal uma série de restrições e de procedimentos que entram uns nos outros como bonecas russas. Restrições do vocabulário e da gramática, restrições das regras do romance (divisão em capítulos, etc.) ou da tragédia clássica (regra das três unidades), restrições da versificação geral, restrições das formas fixas (como no caso do rondó ou do soneto), etc.

Devemos nos ater às receitas conhecidas e recusar obstinadamente a imaginação de novas fórmulas? Os partidários do imobilismo não hesitam em responder com a afirmativa. Sua convicção não se apoia tanto numa reflexão ponderada mas na força do hábito e sobre a impressionante série de obras primas (e também, ai ai!, de obras menos primas) que obtiveram com as formas e segundo as regras atuais. Assim, os adversários da invenção da linguagem deviam argumentar, sensíveis como são à beleza dos lamentos, à expressividade dos suspiros e aos olhares dos bastidores (e não se pede aqui aos apaixonados que renunciem).

A humanidade deve se repousar e se contentar, a partir de novos pensamentos, em fazer versos antigos? Acreditamos que não. O que certos escritores introduziram à sua maneira, com talento (mesmo com gênio), mas uns ocasionalmente (forjando palavras novas), outros com predileção (contrarrimas), e outros com insistência mas em apenas uma direção (letrismo), a Oficina de Literatura Potencial (OuLiPo) pretende fazê-lo sistematicamente e cientificamente, e por necessidade recorrendo à atividade das máquinas de processamento de informação.

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Podem-se distinguir, nas pesquisas que pretende empreender a Oficina, duas tendências principais voltadas respectivamente à Análise e à Síntese. A tendência analítica trabalha com obras do passado para procurar nelas possibilidades que ultrapassem frequentemente aquilo de que os autores haviam suspeitado. É, por exemplo, o caso do centão que poderia, ao que me parece, revigorar-se por algumas considerações retiradas da teoria da cadeia de Markov.

A tendência sintética é mais ambiciosa; ela constitui a vocação essencial do OuLiPo. Trata-se de abrir novos caminhos desconhecidos de nossos predecessores. É, por exemplo, o caso de Cent Mille Milliards de Poèmes | Cem Mil Bilhões de Poemas ou dos hai-kai booleanos.

As matemáticas — mais especificamente as estruturas abstratas das matemáticas contemporâneas — nos propõem mil sentidos de explorações, tanto a partir da Álgebra (recurso a novas leis de composição) quanto da Topologia (considerações de vizinhança, de abertura e de fechamento de textos).

Pensamos também em poemas anaglíficos, em textos transformáveis por projeções, etc. Outras invasões podem ser imaginadas, principalmente no campo dos vocabulários particulares (corvos, raposas, botos; linguagem Algol de computadores eletrônicos, etc.). Seria necessário um longo artigo para enumerar as possibilidades desde agora entrevistas, e por vezes esboçadas.

Não é muito fácil discernir antecipadamente, só a partir da análise da semente, qual será o sabor de um fruto novo. Tomemos o caso da restrição alfabética. Em literatura, ela pode desembocar no acróstico, sobre o qual não saberíamos afirmar se produziu obras transformadoras (no entanto, Villon e, bem antes dele, o Psalmista e autor das Lamentações ditas de Jeremias…); em pintura, ela dá em Herbin, e é por outro lado melhor; e em música a fuga sob o nome de B. A. C. H. e eis uma obra estimável. Como os inventores do alfabeto teriam desconfiado de tudo isso?

Em resumo o anoulipismo é devotado à descoberta, o sintoulipismo à invenção. De um a outro há inúmeras passagens sutis.

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Uma palavra, enfim, dirigida à intenção das pessoas particularmente graves que condenam sem exame e sem apelo qualquer obra em que se manifeste alguma propensão à brincadeira.

Quando são obra de poetas, jogos, farsas e logros pertencem ainda à poesia. A literatura potencial permanece assim a coisa mais séria do mundo. C. Q. F. D.

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Notas:

[1] Qualquer um.

[2] Como a seiva pode crescer num debate? Nós não nos interessamos por essa questão, que remete não à poesia, mas à fisiologia vegetal.

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François Le Lionnais
1961

In: La littérature potentielle

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Detalhes de capa de ‘Exercices de Style’, de Raymond Queneau

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