Pál, Paul, Paulo: As três vidas de Paulo Rónai

Uma resenha de "O homem que aprendeu o Brasil: A vida de Paulo Rónai" (Todavia, 2020), de Ana Cecília Impelizzieri Martins. Por Éder da Silveira.

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Resenha
O homem que aprendeu o Brasil: A vida de Paulo Rónai (Todavia, 2020), de Ana Cecília Impelizzieri Martins.

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por Éder da Silveira

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Um homem de sobretudo preto, sapatos grosseiros desgastados e chapéu é flagrado pelo fotógrafo enquanto lê, em um lugar não muito hospitaleiro. Em volta dele, areia e uma vegetação rasteira. O homem, um judeu húngaro chamado Pál Rónai, percorre com seus olhos um livro aberto, que segura com apenas uma das mãos. A outra, esconde no bolso, para suportar o frio.

A foto, que me toca de forma poderosa, está na capa do livro O homem que aprendeu o Brasil: A vida de Paulo Rónai”, de Ana Cecília Impellizieri Martins. Nesta imagem, Rónai está em um campo de alistamento militar compulsório, para onde foi deslocado com centenas de judeus húngaros com idade para prestar serviço militar. A Hungria, de governo filonazista, criou inúmeras instalações como esta, onde os judeus e demais “indesejáveis” ficavam retidos, supostamente para realizar treinamento militar. Esta foto traduz uma atitude que acompanhará Rónai até o final de sua vida. Mesmo em meio às maiores adversidades, ele sempre acreditará no trabalho intelectual e na força dos livros e das ideias para se amparar e seguir em frente.

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(Acervo Paulo Rónai; Reprodução: Aliás/Estadão)

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Nascido Rónai Pál, em 13 de abril de 1907, o nosso Paulo Rónai era filho de uma família judia de classe média. Como ele mesmo repetiria ao longo de sua vida, nasceu em meio aos livros. O pai era dono de uma pequena livraria e papelaria, que prosperou a partir do momento em que Miksa Rónai dedicou atenção aos livros da área jurídica, uma vez que a loja estava próxima do Fórum de Justiça da cidade. Ponto de encontro de juristas e de amantes de literatura, a livraria de Miksa era o lugar onde o primogênito Pál passava longas horas, todos os dias.

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A Budapeste dos 1900

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A Hungria na qual Rónai nasceu tinha como uma de suas marcas o investimento em educação. Os ginásios húngaros, após a reforma no sistema educacional ocorrida em 1855, passaram a abrigar professores com sólida formação, em sua maioria doutores. A ênfase das aulas recaía sobre humanística, com ensino de grego, latim e alemão, história e história da literatura magiar. Rónai sai do ginásio, aluno aplicado que era, com amplo domínio em língua e literatura latina. Eram 6 aulas semanais de latim, ao longo de 8 anos.

Esta formação humanística, somada ao isolamento linguístico dos magiares, fazia com que as famílias de classe média e da burguesia em ascensão buscassem complementar a formação dos filhos com o estudo de línguas europeias, em especial o francês, língua à qual Rónai se dedicou por muitos anos. De modo algo profético, recebeu um romance de Balzac de presente logo que começou a aprender a língua, definindo-se assim a paixão pelo autor de “As ilusões perdidas”, paixão que o acompanharia por toda a vida.

Estudante de francês da Aliança Francesa, por meio da qual já havia recebido uma bolsa para permanecer alguns meses em Paris, Rónai retorna à cidade luz para estudar na Sorbonne e na própria Aliança em 1928. Neste período de intensa atividade intelectual, dedicou-se à formulação de seu Doutorado em Filologia e Línguas Neolatinas, título que obteria no ano seguinte. No final deste ano, em um gesto carregado de simbolismo, passa a assinar Paul Rónai, afrancesando o seu nome e procurando abrir novas perspectivas para sua vida acadêmica.

Paul Rónai retorna à Budapeste em 1929. Doutor em Filologia e Línguas neolatinas, com um estudo sobre os romances da juventude de Balzac, ele rapidamente passa a se integrar ao mundo intelectual húngaro. Frequenta cafés, que viviam o seu esplendor em Budapeste, colaborava com a imprensa, fazia traduções, atuava como professor de língua francesa e se dedicava ao estudo de línguas, paixão que o acompanhou até o final de sua vida. Tudo parecia estar encaminhado para que ele se estabelecesse em sua cidade natal e tivesse uma trajetória parecida com a de muitos de seus conterrâneos. A Hungria vivia ainda os efeitos das reformas no seu sistema de ensino e Rónai fazia parte de uma geração altamente promissora. Como destaca a autora desta biografia, nasceram na Hungria, entre 1875 e 1905, cinco futuros ganhadores do Prêmio Nobel, em diversas áreas.

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(Reprodução)

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Tudo aquilo que havia sido construído, no entanto, começou a desmoronar na década de 1930. Com a ascensão de Hitler ao poder e a progressiva perseguição aos judeus na Alemanha, que passou a contaminar os países que progressivamente se alinharam ao nazismo, as tensões e o temor por uma conflagração eram iminentes. Dedicado às aulas, em escolas e particulares e às atividades intelectuais, em especial a tradução, Paul Rónai encontrou, em 1938, uma obra que seria a chave de sua nova vida: a tradução francesa de “Dom Casmurro”. Como anotaria muitos anos mais tarde, em um artigo publicado no Correio da Manhã, uma “literatura que tinha romancista daquele porte não podia deixar de interessar-me”. Em um exagero retórico, poderíamos dizer que o Bruxo do Cosme Velho salvou a vida de Rónai.

A partir do interesse que Dom Casmurro despertou em Rónai, a busca de obras de literatura brasileira foi um movimento natural. Ele, que ministrava aulas particulares de francês para membros da diplomacia brasileira em Budapeste, passou a buscar livros de autores brasileiros e se empenhou em aprender o português. Logo, estaria em contato com Ribeiro Couto, que além de poeta era membro do corpo diplomático brasileiro, sediado na Holanda. Em 1939, publica a primeira coletânea de poetas brasileiros em húngaro, livro que foi seu cartão de visitas para a burocracia brasileira, que permitirá, em 1941, que ele entre no Brasil, inicialmente como bolsista e, logo mais, como cidadão naturalizado brasileiro. Nascia assim, oficialmente, Paulo Rónai.

Na biografia ora em tela, que supre uma lacuna imperdoável com este húngaro que tanto fez pelas letras brasileiras, Ana Cecília Impellizieri Martins narra em detalhes esta parte da vida de Rónai, que fiz questão de recontar com um pouco mais de vagar, dada a importância que estes passos, quais sejam, a sua sólida formação humanística, seu aprofundado estudo de línguas estrangeiras e sua descoberta da língua e da literatura brasileiras, assim como demonstra a contribuição estupenda deste homem discreto para a cultura nacional.

Desde o momento em que se estabelece no Brasil, Paulo Rónai procura tecer uma rede de contatos no meio intelectual e literário carioca. Já nos seus primeiros meses no país, conhece amigos que o acompanharão pela vida toda, como Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Hollanda e Cecília Meirelles. Buscando trabalhar em meios onde já tinha afinidade, tentar dar aulas de língua (francês e latim, em especial), traduzir literatura e colaborar com a imprensa. Martins descreve o empenho com que trabalhou, as jornadas extenuantes e a vida modesta que levou entre nós.

Como a autora da biografia destaca, o nome de Rónai está ligado a, pelo menos, dois empreendimentos editoriais que, por si sós, bastariam para deixar o seu nome gravado por décadas e mais décadas na nossa literatura. Ao lado de Aurélio Buarque de Hollanda, Rónai trabalhou na publicação de “Mar de Histórias”, uma coletânea do conto universal, vinda à lume em um espaço de quase quarenta anos, em dez grossos volumes. Um trabalho de tradução e de apresentação de autores e obras da literatura universal que, em sua imensa maioria, jamais haviam sido vertidas para o português.

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(Editora Nova Fronteira)

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Como se não bastasse, Rónai assume uma tarefa gigantesca, batizada pela autora de “operação Balzac”. Fruto da paixão do húngaro abrasileirado pelo autor francês e do caráter visionário dos editores da Editora Globo, da família Bertaso, a operação consistia em publicar, em português, toda a Comédia Humana de Honoré de Balzac, projeto verdadeiramente ciclópico. Cabia a Rónai revisar as traduções, coordenadas por ele, uniformizá-las, redigir notas e apresentações para cada um dos 89 romances que formavam a Comédia Humana. Como precisou Martins, a “tarefa se prolongou por quinze anos, deu origem a dezessete alentados volumes, num total de 12 mil páginas, 7 mil notas de rodapé” (Martins, p. 220).

Ao longo de 384 páginas, escritas em prosa escorreita e elegante, Martins nos conduz a uma verdadeira aventura intelectual, mostrando como um erudito da envergadura de Rónai foi formado na Europa do entreguerras e como os ventos o trouxeram para o Brasil, assim como outros exilados incríveis, como Herbert Caro e Otto Maria Carpeux. A obra, fruto de uma tese de doutorado em Literatura Brasileira, tem como uma de suas chaves o acesso que a autora teve a documentação inédita ou pouquíssimo conhecida do autor, como os seus diários, anotações pessoais, cartas e recortes que ele zelosamente guardou em pastas.

Ana Cecília Impelizzieri Martins, com esta biografia de um dos nomes mais importantes de nossas letras na segunda metade do século XX, lança luz sobre a vida de um homem, cuja vida foi atravessada pela intolerância e incompreensão e que se dedicou a traduzir. Ao nobre ato de fazer com que diferentes culturas se aproximassem por meio da literatura. Um homem que, nas palavras da autora, viveu lutando contra Babel.

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A Babel de Pieter Bruegel, o Velho (1563)

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