Edgar Allan Poe, autor de conversas fiadas

Jéssica Cristina Jardim, redescobrindo as facetas pouco visitadas de Edgar Allan Poe, escreve sobre a ironia e a autoironia em sua paródia das Mil e Uma Noites.

por Jéssica Cristina Jardim

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É bem verdade que o leitor mais detido de Edgar Allan Poe (1809-1849) o reconhece não apenas por seus contos de morte, pelas narrativas de horror e pela série detetivesca, mas por um particular humor, por uma disposição para o riso e para a ironia. Sobretudo, para uma peculiar autoironia e um riso amargo, inevitáveis para quem em muitos momentos admitia se dedicar frequentemente a um ofício diferente daquele a que aspirava. Porque se por um lado Poe se tornava entre seus contemporâneos um jornalista e escritor de relativo sucesso, por outro, não hesitava em afirmar que seu verdadeiro ofício era a poesia. Assim, em 1845, aos 36 anos, escreve:

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Acontecimentos independentes de minha vontade impediram-me de realizar, em qualquer ocasião, um esforço sério naquilo que, sob mais felizes circunstâncias, teria sido a carreira de minha escolha. Para mim, a poesia não tem sido uma finalidade, mas uma paixão; e as paixões deveriam merecer reverência; não devem, nem podem, ser excitadas à vontade, com vista às mesquinhas compensações, ou louvores, ainda mais mesquinhos, da humanidade.

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Poe, c. 1849

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Não seria exagero dizer que Poe idealizava as formas de criação artístico-literárias constituídas sob a lógica do campo artístico como um “mundo econômico invertido”, como mais tarde escreveria o sociólogo francês Pierre Bourdieu[1], quer dizer, o campo da arte que opera pela primordial negação dos interesses econômicos. Aparentemente, a carreira de jornalista, suscitada em muito por seus altos e baixos financeiros, se fazia quase que apesar dele mesmo. Estando ligado durante toda sua vida profissional, como colaborador ou como editor, a jornais e a revistas literárias norte-americanos, como o Southern Literary Messenger, de Richmond, a Burton’s Gentleman’s Magazine, a Graham’s Magazine e o The pionner, da Filadélfia, Poe adentrava em um domínio de produção de literatura veloz, muitas vezes voltada apenas aos interesses comerciais dos editores e ao entretenimento de leitores, digamos, não tão exigentes.

Apesar disso, o escritor norte-americano não deixaria de reconhecer a grande transformação intelectual que promoviam os jornais e as revistas literárias, permitindo a difusão do conhecimento. Sensível às profundas modificações sociais ocasionadas pela ascensão da indústria e pelas formas de divisão do trabalho, as quais resultaram em uma diminuição do tempo livre passível de ser empregado para apreciação de arte, em meados do século XIX, Poe não deixaria de reconhecer a importância das adaptações formais linguísticas e estéticas que articulassem o campo de produção e o de recepção dos objetos literários, como escreve na sua coluna “Marginalia”, um “primeiro indício de uma era em que se caminhará para o que é breve, condensado, bem dirigido, e se irá abandonar a bagagem volumosa; é o advento do jornalismo e a decadência da dissertação”.

Não evitando a ironia, e a autoironia, pelo fato de atuar ativamente nesse mesmo campo, em alguns de seus contos, a exemplo de Como escrever um artigo à moda Blackwood, Uma trapalhada, Nunca aposte sua cabeça com o diabo e A milésima segunda história de Sherazade, o escritor refletiu sobre as condições criativas disponíveis, em uma intenção manifesta de superar o estilo de seus colegas jornalistas e de produzir um gênero literário que, embora respondesse à necessidade de público e editores, pudesse ter qualidade estética, mas principalmente qualidade ética. Nessa prática, começou recolhendo as tristes atuações dos maus escritores seus contemporâneos. Suas críticas dirigem-se desde ao editor-chefe da Blackwood, a famosa revista do romantismo inglês, até aos jornalistas que cobravam “um centavo por linha”, nos contos “Como escrever um artigo à moda Blackwood” e “O anjo do bizarro”, respectivamente. A estes, nada mais restaria do que um emprego na North American Quarterly Humdrum (Monotonia Trimestral Norte-americana).

É certo que a visão crítica da prática de contemporâneos nos periódicos lhe forneceu certo humor em seus escritos, esse sendo aqui compreendido mais como disposição ou estado de espírito do que realmente um caráter risível, mas ainda assim um humor voltado a castigar os costumes. Dizemos isso porque, em grande parte dos contos em que Poe se serve da sátira ou paródia em relação aos seus colegas de profissão, encontramos mais disposição a um provável riso amargo — possivelmente por atentar para a perfeita existência desses literatos que não tinham escrúpulos em descumprir as regras do “mundo econômico invertido” — do que a inegável conjuntura formal que permitiria o riso deliberado, ainda que esse seja sempre factual ou neofactualmente possível. Sem condenar completamente a existência desse tipo de literatura, contudo apenas insistindo na busca por qualidade e por superação, não só das obras de outros, como também das suas, Edgar Allan Poe produziu textos voltados às possibilidades de tipificação que esse domínio discursivo permitia. O conto curto, como se sabe, foi o resultado mais profícuo que encontrou nessa inquirição, em muito, uma tentativa de suscitar uma impressão centralizada no leitor, ou aquilo que nomeou unidade de efeito, um pré-monitoramento formal da expressividade da obra.

O escritor ri do jornalismo barato de seus colegas de “um centavo por linha”, estando, contudo, ele mesmo inserido em um contexto em que, como observa José Ribeiro[2], “a lógica da relação empresa versus consumidor, na qual a imprensa periódica está inserida, faz com que empreendimentos criativos, em busca de novas fatias de mercado (não garantidas de antemão), sejam adotados cautelosamente”. Esse jornalismo, como Poe o vê, desvirtua, barateia ou mesmo vulgariza o conhecimento, e é também fonte profícua de erros, ainda que em casos positivos possa ser de grande valia à difusão do conhecimento. Poe — é importante insistir — não era avesso à ampla produção de publicações jornalísticas, mas admitia que a sua proliferação tornava confuso o acesso a fontes fiáveis.

Mas voltemos ao risível. Pois, ainda que Poe tenha atingido mais notoriedade, nos séculos posteriores à sua morte, pela produção de histórias de crime, mistério e horror, ele plasmou uma singular obra de contos satíricos, humorísticos e grotescos. Essa tessitura textual se configura, para nós, metacomunicativa, pelo fato de Poe utilizar-se de seus contos risíveis como campo de crítica (e de defesa de críticas). Semelhante estratégia ocorre em “Nunca aposte sua cabeça com o diabo”, no qual o Poe-narrador defende-se da acusação de que suas histórias não tenham uma “moral”: ela está lá, porque os críticos literários darão um jeito de encontrá-la: “Quando chegar a ocasião apropriada, tudo o que o cavalheiro pretendia será trazido à luz no Dial ou Down-Easter, juntamente com tudo o que ele deveria ter pretendido e mais o resto que ele claramente tencionava pretender mais tarde — e assim tudo vai dar certo no fim”.

Esse caráter metacomunicativo se tornou para nós uma importante interrogação. Pois esta noção não abrange questões unicamente formais, mas, principalmente, as regras do jogo linguístico-literário que são indispensáveis ao funcionamento do texto, ao estabelecimento de um contexto dentro do qual a obra possa ser compreendida. Dizemos isso porque Allan Poe se utiliza de procedimentos que, elencados a um nível formal, em muito se assemelham aos de seus contos “sérios”, a exemplo de sua aproximação com a literatura fantástica, maravilhosa ou de crimes, além de seu uso particular do grotesco. Sua narrativa constante em primeira pessoa; uma discussão em torno de alguma ideia filosófica; descrições raras de espaço, salvo em casos necessários à diégese; uma possível “unidade de efeito” guiando os procedimentos; estilo retórico, não raras vezes solene. Seu jogo, porém, é elaborado a partir de inter-relações entre tais procedimentos, diante das quais o leitor assume uma postura diferenciada.

Vejamos o caso específico do conto A milésima segunda história de Sherazade, escrito em 1845, em termos gerais, uma paródia ao Livro das mil e uma noites construída a partir da ideia de que o mundo literário teria permanecido em ignorância a respeito do suposto verdadeiro desenlace para a heroína Sherazade — contrariamente à versão orientalista conhecida. Nesta, conforme resume Mamede Mustafa Jarouche[3], tradutor d’As mil e uma noites para o português,

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Um rei chamado Sahriyar […] membro de poderosa dinastia, descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo. Em crise, esse rei sai pelo mundo, iniciando uma busca que é também de fundo espiritual: ele quer saber se existe neste mundo alguém mais infeliz do que ele. A resposta é positiva, com um agravante: ninguém pode conter as mulheres — é o que lhe garante uma bela jovem que trai o marido. Então ele retorna para o seu reino decidido a tomar uma medida drástica e violenta: casar-se a cada noite com uma mulher diferente, mandando matá-la na manhã seguinte.

Depois de muitas mortes e pânico entre as famílias, dá-se a intervenção da heroína: ela é filha do vizir mais importante do reino, possui grande cultura e inteligência, chama-se Sahrazad […] e elaborou uma estratégia infalível por meio das histórias que vai sucessivamente, noite após noite, desfiando diante de um rei a princípio assustado, mas depois cada vez mais seduzido e encantado.

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Contrariamente, em A milésima segunda história de Sherazade, o narrador nega que o desenlace tenha sido positivo para a heroína, empenhando-se, assim, em trazer à tona a ‘verdade dos fatos’, a partir das informações encontradas no guia fictício “Dígame Eassinhounão” [“Tellmenow Isitsöornot”], inserido em uma herança enciclopedista do Ocidente, enxergando no Oriente um “outro”, e à moda da produção jornalística do século XIX. Ou — reflexão a ser suscitada — a partir de um insuspeitado guia, a desconstrução de apenas alguns séculos de conhecimento. No conto, Poe torna risíveis as formas de produção e de recepção dos elementos maravilhosos e realistas, a partir de um efeito de estranhamento diegético que termina por colocar à prova os mesmos conceitos, o realismo, o maravilhoso literário, a mimesis e, sobretudo, as formas de produção, acesso e recepção do conhecimento em sua época.

Em um primeiro momento, a leitura do conto em questão poderia sugerir uma defesa das narrativas realistas, dentro daquela que o autor constrói, em forma de paródia, d’As mil e uma noites, e por isso esta estaria perpassada por seu crivo irônico. Afinal, propor uma narrativa maravilhosa a partir de um viés risível não seria de alguma forma afirmar a positividade da narrativa de cunho mais realista? Porém, afastamo-nos dessa compreensão por três razões. A primeira é o uso constante do insólito na obra geral de contos de Edgar Allan Poe, mesmo quando recorria a um esclarecimento final, apelando à objetividade dos fatos. Em segundo lugar, o uso altamente irônico da epígrafe do conto — “A verdade é mais estranha do que a ficção, velho ditado” (“truth is stranger than fiction”) — mas também curiosamente um verso de Lord Byron —, trecho em outras ocasiões citado por Poe em discordância[4], como recusa à supervalorização do real em detrimento da ficção, marcadamente em um início de realismo da metade do século. Como terceiro ponto, a própria organização narrativa do conto, pela dubiedade que o autor estabelece a partir da construção de alguns níveis na narrativa, se materializaria pela existência de três narradores, o autor empírico, o narrador textual (onisciente) e a narradora-personagem. Envolvidos na realidade empírica ou insólita, aqueles níveis são construídos em relação ao contexto de produção literária norte-americano no século XIX.

O narrador do conto, embora se empenhe em esclarecer o erro em que viveria o mundo literário até então, parece, no entanto, em muitos momentos, não ter tido acesso ao próprio livro que critica, As mil e uma noites, pois comete “enganos” e supressões em relação à narrativa oriental. Assim, por exemplo, menciona que a primeira narrativa da obra estaria relacionada a um gato preto e um rato azul, quando, na verdade, aquela intitulada “O mercador e o gênio” inicia a sequência de noites da heroína. Mas muito além de uma brincadeira com a narrativa parodiada, esta é uma resposta de Poe a uma paródia feita de “O gato preto”, no ano de 1844[5], atestando, em certa medida, a problemática recepção de seus pares à elaboração fantástica do célebre conto, além de confirmar as limitações à variação de formas literárias e tipologias narrativas.

Reconstrói-se, desse modo, a narrativa oriental, a “versão usual da história”, permeando-a de ironias, tanto no que diz respeito aos possíveis maravilhoso, ficção científica ou realismo, quanto na apreensão formal dos acontecimentos. Por exemplo, as condições do cumprimento do voto do Sultão, de matar suas esposas ao amanhecer, são descritas em termos ligados automaticamente ao contexto genérico de uma “cultura oriental”, particularmente de sua religião, posta em paridade com a honra masculina traída do personagem, a primeira não mais sendo levada tão a sério:

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Devemos relembrar que, na versão usual da história, certo monarca, tendo bons motivos para sentir ciúmes de sua rainha, não somente mandou matá-la, mas fez um voto — por sua barba e pela do profeta — de esposar todas as noites a mais bela donzela de seus domínios e no dia seguinte entregá-la às mãos do carrasco.

Tendo cumprido esse voto durante muitos anos, ao pé da letra e com religiosa pontualidade e método que lhe conferia grande mérito como homem de sentimentos pios e de excelente juízo, foi interrompido uma tarde (sem dúvida quando estava rezando), por uma visita de seu grão-vizir, a cuja filha, parece, havia ocorrido uma ideia. (grifos meus)

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Buscando restabelecer uma suposta “verdade dos fatos”, pela existência do “Dígame Eassinhounão” — o qual, a partir apenas de uma consulta, de uma leitura e de uma recepção ingênuas, pode desconstruir todo um conhecimento literário e cultural secular, baseado não se sabe exatamente em quê —, o narrador começa:

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Tendo tido ocasião, no curso de algumas investigações sobre o Oriente, de consultar o Dígame Eassinhounão, obra que é de algum modo pouco conhecida […] não foi pequeno o meu espanto ao descobrir que o mundo literário tinha até então permanecido estranhamente em erro a respeito da sorte da filha do vizir, Sherazade, tal como é descrita nas Mil e uma noites, e que o desenlace ali dado, não totalmente inexato, até certo ponto, merece pelo menos censura por não ter ido muito mais além.

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É importante observar o grifo do autor sobre este último termo — “desenlace” —, centro da proposição de uma nova organicidade o conto, e indicativo da plena eliminação dos obstáculos ao enredo. O narrador não o indica, porém, como incorreto, mas apenas como precipitado. Ora, uma das razões para que tal conclusão não funcione é, para o narrador, o fato de ela ser idealizada em relação à realidade empírica: “é, sem dúvida, excessivamente mais própria e agradável, mas, infelizmente, como a maior parte das coisas agradáveis, é mais agradável que verdadeira”. Quando conclui sua apresentação do conto e passa a palavra para Sherazade, a narrativa desta será, contudo, permeada por uma boa pitada de realismo, em sentido negativo, introduzido nas reações do Sultão. Suas contínuas interrupções, seu ronco, sua descrença em relação ao que escuta, sua tosse para advertir sua esposa de que está indo longe demais em termos imaginativos, vêm em contrapartida ao elemento maravilhoso que permeia cada excerto da narrativa, seja em sentido temático, seja textual.

Isso torna o encaminhamento do “plano” da Sherazade de Poe menos simples do que pareceria na narrativa oriental — pois, sob qual pretexto conseguiria a heroína a atenção de seu marido e a suspensão de sua pena capital? Apenas pela adequação do Sultão ao jogo literário, sua compreensão de que a narrativa da esposa inscreve-se na ficção, servindo, portanto, para o deleite estético e artístico. Tal não ocorre no conto poeiano, pois a ilusão da narrativa é chamada constantemente à consciência da realidade empírica. Se o sultão em As mil e uma noites é um bom leitor, ou melhor, um bom ouvinte, pois compreende a ficcionalidade do texto literário, sem buscar apenas sua comprovação, n’A milésima segunda história de Sherazade, porém, ele deseja apenas ver um espelhamento da realidade empírica:

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— Conversa fiada! — exclamou o rei.

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Sherazade narra, assim, uma sequência de fatos impressionantes, maravilhosos, a seu marido e a sua irmã, que comporiam uma suposta oitava aventura de “Simbad, o Marujo”, ocorrida em sua velhice. O fundo desse enredo será, contudo, um diálogo com a modernidade, por um viés cientificista, cujos acontecimentos são apreendidos com estranhamento pelas palavras da narradora, mas, sobretudo, virtualmente, por seus ouvintes. Os acontecimentos “modernos” serão assim narrados à moda das Arabian nights, promovendo uma visão dos objetos descritos e um gradual reconhecimento de seu caráter empírico por nós, leitores de Poe. A narrativa, portanto, não visa a um imediato reconhecimento, mas um estranhamento inicial e a progressiva visualização e compreensão de objetos bem conhecidos do século XIX e de curiosidades da natureza. É exemplo marcante a descrição de um navio a vapor pelo olhar da heroína, e pelo reconhecimento quase automático de Simbad de se tratar de um “monstro”. De fato, o estilo da descrição parece ser mais adequado a um monstro marítimo e se utiliza dos termos que integram a descrição maravilhosa de uma criatura que ultrapassa a compreensão do real, como os espinhos, a barriga, seu incomensurável tamanho:

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Quando aquela coisa chegou mais perto, nós a distinguimos perfeitamente. Seu cumprimento era igual ao de três das mais altas árvores que existem e era tão largo como o grande salão de audiências de vosso palácio, oh, o mais sublime e munificente dos califas! Seu corpo, diferente do dos demais peixes comuns, era tão sólido como um rochedo e de um negror gelatinoso em toda a parte que flutuava acima da água, com exceção de uma estreita lista, cor de sangue, que o circundava completamente. A barriga que flutuava abaixo da superfície, e a qual só podíamos vislumbrar, de vez e quando, ao erguer-se e cair do monstro, ao sabor das ondas, estava inteiramente coberta de escamas metálicas, de uma cor semelhante a da Lua em tempo nebuloso. As costas eram chatas e quase brancas, e delas se erguiam mais de seis espinhos com cerca de metade do comprimento de todo o corpo.

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Ou ainda:

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[…] Deixando aquela ilha, disse Simbad — pois Sherazade, deve compreender-se, não deu atento à incivil interrupção de seu marido —, deixando aquela ilha chegamos a outra, onde as florestas eram de sólidas pedras e tão duras que reduziam os machados mais bem temperados, com que tentávamos derrubá-las.

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[Nota de rodapé do autor:] ‘Uma das mais notáveis curiosidades do Texas é uma floresta petrificada, perto das cabeceiras do rio Pasigno. Consiste de várias centenas de árvores, em posição ereta, todas transformadas em pedra. Algumas árvores, agora crescendo, são parcialmente petrificadas. Este é um fato espantoso para os filósofos da natureza e deve levá-los a modificar a teoria existente da petrificação’.

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De fato, o “monstro” é, para Poe, em outras narrativas mais ligadas ao fantástico, além de um indicativo de proporções agigantadas, signo do estranhamento e da incompreensão diante da narrativa, da natureza de um objeto ou de um ser. Assim, em outro conto, intitulado “A esfinge”, temos a descrição de um “monstro”, assim como em “O gato preto” temos autodescoberta de um narrador-personagem como “monstro”, pelos crimes que jamais havia imaginado antes poder cometer. Adotando um procedimento semelhante ao de Voltaire em alguns de seus contos filosóficos, como “Zadig” e “Babouc” — o deslocamento da realidade da Europa do século XVIII a um lugar longínquo, geralmente um país oriental, para demonstrar por meio de um efeito de estranhamento o absurdo das relações sociais européias —, Poe organiza a narrativa de modo que a ilusão de seu leitor também seja chamada à realidade. Por meio do mesmo estilo ao qual nos referimos acima, voltado ao maravilhoso, exclamatório, altamente descritivo, pondo na boca de Sherazade alguns acontecimentos modernos, porém, estranhos, Poe insere notas de rodapé atestando sua “veracidade” — indicando suas fontes — “Kennedy”, “(Murray, p. 215, Phil. Edit.)”, “Magazine Colonial de Simmona”. No entanto, em alguns momentos, Poe deixa-as de lado, ou menciona fontes deliberadamente incorretas, deleitando-se em um jogo de confusão com o leitor:

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— Foi justamente depois dessa aventura que encontramos um continente de imensa extensão e prodigiosa solidez, mas que, não obstante, se apostava inteiramente no dorso de uma vaca azul-celeste que tinha nada menos de quatrocentos chifres.

— Isto, agora, eu acredito — disse o rei —, porque já li antes algo dessa espécie num livro.

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[Nota de rodapé do autor:] A terra é sustentada por uma vaca de cor azul, tendo chifres em número de quatrocentos. (Alcorão).

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De acordo com Braulio Tavares[6], tradutor do conto para o Português, esta imagem não se encontra no Alcorão. Como resultado, temos que, se por um lado podemos dar “credibilidade” a algumas das informações e fontes que Poe menciona — o que demanda de seus leitores certa ‘crença’ no escritor e algum posicionamento sobre suas intenções em elaborar desta forma seu texto —, por outro, o autor pode brincar com essa mesma credibilidade sobre a qual se encontra apoiado. Simultaneamente, Poe ironiza a limitação das possibilidades crença de alguns de seus leitores, pois o Sultão apenas pode crer “naquilo que já leu num livro” — livro este dotado de estatuto de realidade.

A grande questão que se impõe nesse momento é a possibilidade ou o proveito em se buscar a verdade empírica dentro da verdade textual, ou uma perfeita correlação entre ambas. Desconfiar da última seria o papel do legítimo leitor de literatura? A relação com a verdade empírica se dá enquanto matéria literária, na forma de referente, ou seja, enquanto possibilidade — na premissa aristotélica, “o que poderia acontecer”, em um caráter mais universal do que particular. O fato de os acontecimentos referidos nas notas de rodapé terem ou não se sucedido, não seria o mais fulcral ao estatuto de verdade textual, ou de verossimilhança interna, mas sim o não existente “compromisso” de verdade entre o autor, seus enunciados e o processo de recepção. É indiferente se as informações são fiáveis ou não na realidade, pois em literatura dificilmente seriam pertinentes. Assim, o fato de as referências ao Alcorão, ou de as citações retiradas dos Magazines Asiáticos e manuais de fisiologia, serem verdadeiras ou falsas em relação à realidade empírica não interferiria no estatuto literário do texto. No entanto, o Sultão, ainda um mau leitor, não pode tolerar a continuidade de um jogo de regras que não considera legítimas:

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— Pare! — disse o rei. — Não posso suportar isso e não o suporto! Você já me provocou terrível dor de cabeça com suas mentiras. O dia também, pelo que vejo, está começando a raiar. Há quanto tempo temos estado casados? Minha consciência está ficando perturbada de novo. E, depois, essa última história do dromedário… Pensa que sou maluco? Em resumo, você pode muito bem levantar-se e ser estrangulada.

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A condenação da narradora-personagem Sherazade, pela incompreensão de seu marido no tocante ao caráter ficcional de sua invenção — o qual se confunde para ele com a “mentira”, ou seja, a má-fé na narrativa —, termina por recusar o reconhecimento da ficcionalidade da produção literária, e ainda suas amplas possibilidades de suscitar a imaginação, a fantasia, o maravilhoso, e possivelmente uma mais específica ficção científica, da qual Edgar Allan Poe é considerado um dos fundadores, baseada na mescla do imaginário romântico, de seu gênio e trabalho poético e da difusão de novas tecnologias em meados do século XIX. Como autor aspirando à liberdade formal e criativa, recusando o julgamento de autor de “conversas fiadas”, e como crítica a seus contemporâneos, Poe não poderia ser mais incisivo. O consolo amargo que emana do texto (intra e extratextualmente), sugerindo-se o desprezo de um grupo de leitores e críticos que visa apenas à verificação da verdade empírica dentro da verdade textual, estaria situado no deleite estético perdido, no prazer verdadeiramente literário que resta, assim, para uns poucos privilegiados:

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[Sherazade] recebeu, contudo, grande consolação (enquanto apertava o fio de seda estrangulador) ao refletir que a maior parte da história permanecia ainda inacabada, e que a petulância do bruto de seu marido tinha ceifado para ele uma mais justa recompensa, privando-o de muitas aventuras inconcebíveis.

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Poe

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Notas:

[1] BOUDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

[2] RIBEIRO, José. Imprensa e ficção no século XIX: Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym. São Paulo: Editora UNESP, 1996.

[3] JAROUCHE, Mamede Mustafa. “Prefácio”. In: Livro das mil e uma noites. Vol. 1: Ramo Sírio. Trad. Mamede Mustafa Jarouche. 3ªEd. São Paulo: Globo, 2006.

[4] “‘A verdade é mais estranha do que a ficção’ é de tal modo um refrão para sempre na boca dos desinformados, que estes o citam como poderiam citar qualquer outra proposição que lhes parecesse paradoxal – pela mera propriedade de paradoxo. Pessoas que leem nunca citam o ditado, porque puros truísmos não merecem ser citados. Um amigo meu uma vez leu-me um longo poema sobre o planeta Saturno. Ele era um homem de gênio, mas suas linhas foram um fracasso, é claro, uma vez que as realidades do planeta, detalhados na mais prosaica linguagem, envergonham e confundem bastante todas as fantasias acessórias do poeta.”[4] (Poe, em Marginalia)

[5] De acordo com Thomas Mabbott (em POE, Edgar Allan. The Collected Works of Edgar Allan Poe — Vol. III: Tales and Sketches [Org. MABBOTT, Thomas Ollive], 1978).

[6] TAVARES, Braulio. “Posfácio – A sombra luminosa (A milésima segunda história de Sherazade)”. In: POE, Edgar Allan. Contos Obscuros de Edgar Allan Poe. TAVARES, Braulio (org.). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010.

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