por Jéssica Cristina Jardim
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O mais provável é que os Estados Unidos tenham concretizado sua própria batalha de Hernani no momento da violenta disputa entre os atores shakespearianos Edwin Forrest e William Macready, na Astor Opera House, em 1849. Os acotovelamentos e insultos verbais trocados entre o escandalizado público da Comédie-Française e os jovens partidários do romantismo, diante da representação do drama de Victor Hugo, quase dezenove anos antes, contudo, não tiveram resultados tão letais quanto os do motim de Manhattan. O embate entre Forrest, maior ator estadunidense do século XIX, e seu rival inglês, diferentemente, já não se dava em termos de Romantismo versus Classicismo, mas de próprio versus imposto; de progresso versus conservadorismo; de nacional versus a influência inescapável do antigo colonizador, a Inglaterra.
A inquietação instigada por Forrest pela necessidade de um teatro de expressão nacional já havia se manifestado, décadas antes, na sua proposição de um concurso objetivando premiar a melhor tragédia que tivesse como protagonista um nativo estadunidense. A peça premiada, Metamora, or The Last of the Wampanoags, de John Augustus Stone, teve première em 1829, no Park Theatre, Nova York, e trazia como tema a impossibilidade de convívio entre homens brancos e indígenas, tópica já presente no aclamado romance de Fenimore Cooper, The Last of Mohicans, em que a tragédia se havia largamente inspirado. No entanto, nem mesmo Forrest resistiria à força expressiva do grande teatro elisabetano e ao apelo de um público já ajustado às suas convenções. Nas décadas seguintes à sua tentativa nacionalista, reivindicaria ao menos a proeminência dos atores nativos em cena.
Dificilmente a crítica da época se poderia opor à cultura espetacular do romantismo cênico, que impulsionara grandes turnês de célebres atores ingleses — daqueles que “juravam por Shakespeare”, como Charles Kemble e Edmund Kean. O teatro elisabetano já fincara suas raízes desde os primeiros momentos da história dos Estados Unidos. De fato, uma das mais antigas produções documentadas em um palco estadunidense ocorreria apenas a 1752, em Williamsburg, com The Merchant of Venice. Até o século 19, retornando sempre às casas de espetáculo, como cultura cênica naturalizada e convenção temática, o teatro de William Shakespeare alavancaria também a carreira de atores norte-americanos, como a de Charlotte Cushman e a do próprio Forrest.
Nesse contexto, não que o poeta, contista e crítico literário e de teatro Edgar Allan Poe, atuante jornalista da The American Whig Review, considerasse de todo ruim o drama Tortesa, the usurer, do dramaturgo americano Nathaniel Parker Willis. Mas sua avaliação como sendo “muito à maneira de Romeu e Julieta” de fato nada tinha de elogiosa. Assim como outros críticos de sua geração, Poe considerava negativa a influência não apenas da célebre tragédia de Shakespeare, mas de toda estética do teatro elisabetano sobre o teatro produzido nos Estados Unidos. Parece contraditório repudiarem-se justamente os traços estilísticos de um dos autores mais fundamentais na construção da escola romântica e particularmente do gênero drama. Não esqueçamos a ênfase dada a ele por Victor Hugo no conhecido prefácio do drama Cromwell, e do fato de que Stendhal o colocaria simultaneamente em conjunção e oposição à tragédia neoclássica, em Racine e Shakespeare. Contudo, do ponto de vista da importância dada pelo romantismo ao nascimento de uma literatura nacional, e, obviamente, em um teatro formado no seio de um processo histórico no qual as heranças, mesmo as de um grande teatro como o isabelino, ainda estavam ligadas à repetição da identidade colonizadora e à dependência cultural, a influência do dramaturgo inglês ganharia outras conotações.
Poe, porém, não era totalmente avesso a Shakespeare. O maior problema estaria nas incorreções cometidas por epígonos do dramaturgo inglês, em território americano, os quais, na tentativa de se aproximarem de seu modelo, teriam introduzido digressões em excesso na ação dramática, irrelevantes para a trama em geral. Poe admite o uso de procedimentos ilustrativos, e mesmo de momentos poéticos, mas desde que estivessem articulados, exercendo alguma conexão entre si e visando à construção de um efeito geral na obra. O crítico compreende que uma mera sucessão de incidentes não constitui uma intriga, mas é apenas uma multiplicação de zeros, que não produz “unidade”. De fato, é essa mesma “unidade de efeito” que introduziria um ano depois, em um dos seus mais célebres ensaios, The Philosophy of Composition.
Poe parece pensar o conceito de “unidade de efeito” inicialmente para o teatro, pois o traz em esboço em The American Drama, de 1845. Esse tema, que desenvolverá como um princípio axiológico norteador dos procedimentos de uma obra e que serve de confissão de autor sobre seu próprio processo criativo para o poema The Raven, é repetidamente aproximada da ideia de “situação teatral”, nestes termos — apanhado de dados textuais e cênicos constitutivos de um contexto para a ação dramática. Na verdade, a própria construção do seu ensaio mais significativo se faria por aproximação com uma metáfora de cunho teatral. Ele escreve, em The Philosophy of Composition:
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Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a ideia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores […]; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário.”
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Na crítica presente em The American Drama, de 1845, publicada na American Whig Review, Poe reivindicaria para o drama nacional a necessidade imperiosa de abandonar os antigos modelos do drama elisabetano e recorrer à “fonte da natureza”, que não se contaminaria ao longo da história, já que identificava um princípio estático no drama, em um embate resumido em Invenção versus Imitação. Parece óbvio dizer que o romantismo norte-americano, como para todas as nações anteriormente colonizadas, emularia procedimentos e tendências estéticas e de pensamento oriundos da explosão européia, em um jogo simultâneo de aproximação e negação. Não apenas na América do Norte, esse conflito se resolveria frequentemente como recorrência dos temas ligados à cor local. Mas Poe dá um passo adiante, não apenas se referindo aos temas diretamente ligados à cultura estadunidense, e sim propondo um procedimento criativo controlado, com precisão quase matemática, no qual Sentimento e Gosto — suscetíveis às convenções de palco e às expectativas de um público já habituado ao drama elisabetano — fossem subjugados à Razão.
Essa equação, contudo, não seria simples de ser resolvida. O próprio Poe havia tentado uma década antes a escrita de um drama inacabado que viria a ser publicado nos números do Southern Literary Messenger, entre 1835 e 1836, e que em 1845 viria a público novamente, ainda em fragmentos, na primeira edição de The Raven and Others Poems. A impressão é de que Poe o consideraria antes um poema — para ser lido — do que um drama — para ser encenado: mesmo porque repudiaria veementemente em Henry Longfellow a ideia de um poema dramático. O drama Politian iria em sentido diametralmente oposto ao seu projeto de maturidade para o drama americano, por se tratar de um drama histórico, ainda que baseado em um crime contemporâneo e cometido nos EUA, mas transportado à Roma do século 16, e que curiosamente alternaria uma dicção trágica com a manifestação de um heroi romântico, indivíduo descentrado e em estado de paixão:
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“… Now I have seen Politian
And know him well — nor learned nor mirthful he.
He is a dreamer and a man shut out
From common passions.”
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Porém, aquilo que não materializou na criação dramática, Poe o presentificou pela crítica, pela teoria, e, sobretudo, pela pessoal e apaixonada defesa do teatro em seu país. Sensível ao moralismo que afastava a sociedade do teatro, Poe faz, no The Broadway Journal, em julho de 1845, seu louvor a essa arte, unido à percepção de suas prováveis contribuições morais e intelectuais à cultura nacional. O escritor atesta sua repulsa ao preconceito que afasta os atores e a sociedade dos palcos, para ele, “hipocrisia desprezível” que desconsiderava tudo que o teatro elevava e enobrecia no espírito de uma nação. O teatro, para Poe, é enobrecido por suas amplas e inigualáveis facilidades em desenvolver o gênio, cabendo ao verdadeiro ator, o ator de talento, saber ignorar a mediocridade geral. Órfão ainda criança, Poe foi adotado pelo rico casal Allan, que o enviou para academias na Inglaterra e na Escócia, onde pôde estudar línguas, artes e literatura, leu clássicos do teatro, como Shakespeare, Calderón, Corneille e Racine, e praticou teatro amador. No entanto, Poe jamais esconderia ser o filho de uma atriz de teatro popular, mulher que, em suas palavras, “não hesitou em consagrar ao drama sua breve carreira de genialidade e de beleza”. Embora as vicissitudes de sua vida o tivessem conduzido a um caminho diverso ao da vida nos palcos, Edgar Allan Poe exibiu sua ascendência teatral com orgulho, reconhecendo-se como fruto da bela e dura realidade daqueles que lançavam as raízes do teatro nos Estados Unidos.
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A autora deste ensaio, Jéssica Cristina Jardim, é também autora de do livro Dramaturgos, críticos e ratos: reflexões sobre o teatro em Edgar Allan Poe, pela Editora UNESP. O livro está disponível para download gratuito e impressão sob demanda, no site da editora.
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