Poesia e criação de atmosfera, com Bandeira e Drummond

A poesia e seu poder de sugerir atmosferas e cenários distintos. Um ensaio da Prof. Norma Goldstein — com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

por Norma Seltzer Goldstein

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Poemas são textos complexos e ricos, abertos a mais de uma interpretação. As duas leituras a seguir são centradas em versos que primam pela criação de uma atmosfera.

A primeira obra é de Manuel Bandeira.[1]

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A estrada

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Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,

Interessa mais que uma avenida urbana.

Nas cidades todas as pessoas se parecem.

Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.

Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.

Cada criatura é única.

Até os cães.

Estes cães da roça parecem homens de negócios:

Andam sempre preocupados.

E quanta gente vem e vai!

E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:

Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,

Que a vida passa! que a vida passa!

E a mocidade vai acabar.

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          1. Bandeira. Ritmo dissoluto, in Estrela da vida inteira. Rio, J Olympio, 1966 p. 92.

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“A estrada” figura em Ritmo Dissoluto, livro de 1924. O título da obra dá pistas relativas ao aspecto formal. No primeiro Bandeira,[2] há traços do crepuscularismo ou penumbrismo, dentre eles, a inovação rítmica, como explica Alfredo Bosi: “Fazendo uma poesia voluntária e sinceramente menor, o crepuscularismo foi responsável pela erosão da métrica […] levando à prática do verso livre, pedra de toque das poéticas modernas”.[3] O mesmo crítico afirma ter sido Bandeira, a partir de Ritmo dissoluto, “talvez o mais feliz incorporador de motivos e termos prosaicos à literatura brasileira”.[4]

A erosão da métrica consistiu num processo relativamente longo em que o ritmo dos poemas foi se tornando solto e as posições dos acentos nos versos, tradicionalmente fixas, passaram a mudar de lugar e, em certos casos, até a oscilar, conforme a leitura. Os temas prosaicos remetem a fatos banais da vida das pessoas dos quais se extraem sugestões poéticas.

A erosão da métrica bem como temas prosaicos percorrem os versos de “A estrada”. Assim que o leitor visualiza o texto, a irregularidade métrica salta aos olhos, porque os versos do poema propõem diferentes leituras, dependendo do leitor. Manuel Bandeira enfatiza como esse efeito é difícil de ser conseguido, resultando: “O verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de nenhum sinal exterior senão o da volta ao ponto de partida à esquerda da folha de papel: verso derivado de vertere, voltar. À primeira vista, parece mais fácil de fazer do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar o seu ritmo sem auxílio de fora.”[5]

O leitor do verso livre não encontra nele o ponto de apoio rítmico geralmente presente nos versos regulares, como ilustram os versos de Camões: Sete anos de pastor Jacó servia // Labão, pai de Raquel, serrana bela. A leitura se apoiará sempre nas mesmas sílabas:

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Se – te a – nos de  – pas – tor – Já – có – ser – vi  [a]

La – bã –, pai – de – Ra – quel,/  ser – ra – na – be– [la].

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No verso livre, a posição do acento é variável, altera-se conforme a leitura, característica evidente em versos longos. Seria possível ler mais de uma vez o verso 12, sem atentar ao sentido das palavras, deixando flexível a posição das sílabas poeticamente acentuadas. E depois fazer o mesmo com o verso seguinte. Essa experiência  evidenciaria a liberação do ritmo tradicional conquistada por Bandeira e por outros modernistas que praticaram o verso livre.

“A estrada” compõe-se de quinze versos, tamanho próximo ao do soneto, que tem quatorze. Metricamente, a semelhança se dilui, pois, neste poema, o leitor vê-se diante do ritmo liberado que cabe a ele descobrir e redescobrir. A inovação rítmica combina bem com o prosaico retrato da estrada de Petrópolis onde o texto foi criado em 1921.

A composição do texto desenvolve-se por meio de uma sequência de paralelos. Nos dois primeiros versos, entre a avenida urbana e a estrada, com valorização desta última. A seguir, o poema amplia-se para os locais em que essas vias se situam. Nos versos 3 e 4, a reiteração do pronome indefinido “todo,a,s” funciona como indício da desindividualização dos grandes centros. Outro recurso linguístico acentua o caráter impessoal da cidade grande: a escolha de verbos de ligação, sugerindo situação estática: “Nas cidades todas as pessoas se parecem / Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.”

O segundo paralelo aponta, mais uma vez, as vantagens da roça. O pronome indefinido, no trecho, é “cada”. Além do efeito desse emprego, a sugestão de individualidade é reforçada por dois recursos sonoros: primeiro, a aliteração do som “q”: “Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma. /  Cada criatura é única”.  Em seguida, a rima toante — semelhança da vogal tônica — em dose dupla: cAda – trAz – Alma; e, ainda: criatUra Única. Essa escolha aproxima o sentido dos termos que rimam, destacando o caráter singular dos habitantes locais.

O terceiro paralelo recorre aos cães da roça, comparados às figuras típicas das grandes cidades: homens de negócio sempre preocupados. O tom irônico acentua a inferioridade da grande cidade, novamente.

Na sequência, cessam as comparações e a roça reina sozinha. O tom muda, o ritmo torna-se ralentado, traduzido no verso 10 pelo caráter impressivo que faz meditar. Esse verso termina com dois pontos, para anunciar o essencial presente nos quatro versos finais: coisas simples e valores.

A sucessão de paralelos bem construídos recria o cenário calmo e humanizado do lugarzinho percorrido pela “estrada”. Sem muito esforço, os leitores conseguem visualizá-lo e até ouvir o som do riacho. Poderiam até imaginar estarem inseridos nessa atmosfera que aproxima o ser humano da natureza.

Muitos dos sonetos regulares são arrematados pela chave de ouro, uma espécie de conclusão às ideias apresentadas nas estrofes anteriores. Eis o arremate deste poema: o murmúrio da água sugere que a vida passa! a vida passa! E a mocidade vai acabar.  Esses versos não seriam a chave de ouro deste quase anti-soneto?

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Manuel Bandeira

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A criação seguinte é da lavra de Carlos Drummond de Andrade.[6]

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Mãos dadas

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Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

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Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

 a vida presente.

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Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do mundo. In. Rio de Janeiro. Aguilar Editora, 1964, p. 111

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Mais uma vez, trata-se de versos de tamanho e ritmo irregulares, organizados em duas estrofes, nas quais recursos rítmicos e sonoros propõem que o leitor crie seu próprio ritmo de leitura. Neste poema, uma série de recursos linguísticos engenhosos, como o emprego das formas verbais, complementa o sentido do texto.

Os dois versos iniciais trazem uma recusa expressa em primeira pessoa: o eu-poético anuncia temas de que quer se afastar, na forma verbal negativa do futuro do indicativo: “não serei” e “não cantarei”. O sentido usual do futuro do indicativo indica afastamento entre o momento da escrita e eventos posteriores. Essa escolha permite uma segunda interpretação: além de o poema se situar cronologicamente distante – do passado e do futuro -, fica explicitado, também, um posicionamento ideológico em relação às preocupações daquele momento. Nos dois primeiros versos, observe-se a última palavra:

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Não serei o poeta de um mundo cadUco.

 Também não cantarei o mundo futUro.

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Semanticamente, os dois termos que rimam são opostos. “Caduco” remete ao ultrapassado, antigo, superado, opondo-se, ao “futuro”, portanto. Os dois termos apresentam, contraditoriamente, um conjunto de semelhanças:  a) ocupam a mesma posição no verso; b) qualificam o mesmo substantivo, “mundo”; c) pertencem à mesma categoria gramatical: são adjetivos; d)   apresentam rima toante em “-u”. Surge, assim, um efeito de tensão.

Esse clima justifica o que vem proposto a partir do terceiro verso: estar preso à vida, olhar os companheiros taciturnos, mas esperançosos; considerar a enorme realidade. A conjunção adversativa “mas” acentua o contraste: Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. A rima toante em U, tacitUrnos / nUtrem,  produz nova tensão entre o aspecto semântico e o sonoro, acentuando a gravidade do momento: nesse contexto, seria possível nutrir grandes esperanças?

Os dois versos finais da primeira estrofe trazem um apelo, com forma verbal na primeira pessoa do plural do modo imperativo:

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O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

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Esse sujeito “nós”, implícito, compreenderia o poeta associado a outras pessoas. A quem o apelo seria dirigido? Aos contemporâneos do momento da publicação? Ou, mais amplamente, aos leitores de todas as épocas?

Ainda que seja possível levar em conta o ano da publicação do livro do qual o poema faz parte — Sentimento do mundo, 1940 —, época difícil da 2ª Grande Guerra, esse tipo de olhar seria válido em qualquer momento da história humana. Ele depende tanto das ocorrências exteriores quanto de uma visão de mundo humanista. O enunciador do texto olha menos para si próprio e mais para o contexto. Como outros grandes criadores, o poeta mostra-se consciente do mundo que o cerca e interessado pelos seres que o habitam.

A segunda estrofe compõe-se de cinco versos. Os quatro primeiros enumeram novas recusas do poeta que poderiam ser interpretadas como alusões a temáticas de escolas literárias precedentes.

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Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

 a vida presente.

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 “Não serei o cantor de uma mulher de uma história” aludiria ao lirismo medieval, assim como ao relato renascentista camoniano. “Não direi os suspiros ao anoitecer” remeteria ao sentimentalismo romântico. No período árcade, o bucolismo valorizava a natureza de modo idealizado, à distância, tal qual a “paisagem vista da janela”. Os versos seguintes relembrariam o tema da evasão, presente em movimentos estéticos do final do século XIX e início do XX: “não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, / não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins”.

Como na estrofe inicial, a série de negativas emprega o futuro do presente, conotando distanciamento entre o eu-poético e os temas rejeitados. Em contraponto, vem a reafirmação do posicionamento do eu-poético, alinhado com a posição anunciada desde o título:

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O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

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A escolha do verbo de ligação acentua a estaticidade e a opção pelo momento “presente”, adjetivo reiterado pela tripla enumeração. Vale a pena observar os substantivos que esse caracterizador acompanha: tempo, homens,[7] vida. A matéria do poeta engloba o contexto, seus habitantes e a valorização da vida. Tanto os recursos linguísticos quanto os composicionais desvendam um posicionamento humanista e propõem uma atmosfera solidária, consciente e engajada com o contexto. Não só daquele, mas de todos os períodos históricos.

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Drummond

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Notas:

[1] Esta análise retoma outra anterior, publicada em GOLDSTEIN, N. Do Penumbrismo ao Modernismo- O primeiro Bandeira e outros poetas significativos, S.P. Ed. Ática, 1983, p.163-165

[2] O chamado primeiro Bandeira começa no primeiro livro e segue até Ritmo dissoluto.

[3] BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. S P Ed. Cultrix, 3ªed., 1985, p. 300.

[4] BOSI, Alfredo, o.c. p. 409.

[5] BANDEIRA, M. Itinerário de Pasárgada. Rio de Kaneiro, Liv. Sâo José, 1957, p. 231.

[6] Esta análise amplia e complementa outra, publicada em “Carlos Drummond de Andrade”, in PIMENTEL, Edith [org;] O escritor enfrenta a língua. S. P., FFLCH-USP, 1994, P.95-104.

[7] Quase desnecessário explicitar que o termo “homens”, neste caso, remete a seres humanos.

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