por Norma Seltzer Goldstein
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Em quase todos os poemas existe um aspecto lúdico. Alguns exploram particularmente esse aspecto, com tom bem-humorado, crítico e, por vezes, irônico, instaurando ambiguidade e promovendo a cumplicidade do leitor. Como os três poemas a seguir.
O primeiro é de Ribeiro Couto.[1]
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Brincadeira
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Poetas há
Que não compreendem nada fora do que eles chamam de escola.
Fazem versos como os remendões batem sola.
Batem sola! Batem sola!
E começam: “O céu, imenso a arder, é uma imensa corola,
ta ra ta ra ta ti, ta ra ta ra ta tá.
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(Ribeiro Couto, ‘Um homem na multidão’, in Poesias reunidas, Ed. José Olympio, 1960, p.116
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O poema “Brincadeira” figura em obra datada de 1921, ano anterior ao da Semana de 1922. Organiza-se em seis versos, mesclando alexandrinos tradicionais a versos irregulares. O ritmo marcado acentua a crítica bem humorada à rigidez de certos poetas. Dado o contexto, o leitor deduz que o alvo seriam os poetas parnasianos.
A ironia decorre da comparação entre esses poetas =e os sapateiros que batem sola. A sátira é ressaltada, sobretudo, no tom paródico dos três versos alexandrinos, ritmo caro aos poetas criticados: o verso 3; o verso engastado no interior do 5; e o onomatopaico verso final.
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Verso 3:
Fa -zem- ver– sos- co- mo os – re -men- dões– ba – tem – so [la].
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
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Verso no interior do verso 5:
O – céu, – i- men – so a ar – der– , é u – ma i– men – sa – co– ro– [la]
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
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Verso 6:
ta– ra– ta– ra– ta– ti–, ta– ra– ta– ra– ta– tá.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
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O quarto verso duplica o final do anterior, resultando numa redondilha maior ou verso de sete sílabas. O ritmo remete de modo jocoso ao martelar do sapateiro:
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Ba – tem – so – la. – Ba – tem – so [la].
1 2 3 4 5 6 7
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O efeito desses versos poderia ser aproximado ao da percussão, como acompanhamento musical à crítica feita pelos modernistas a uma escola poética obcecada pela forma.
Fiel ao título, a curta composição resulta numa brincadeira valorizada por recursos rítmicos que reforçam o sentido da sátira condensada em seis versos. De certo modo, um alerta para que os leitores atentem a todos os recursos presentes em um poema.
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Em segundo lugar, vem um poema de Cassiano Ricardo.
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Serenata sintética
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Rua
Torta.
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Lua
Morta.
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Tua
porta.
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Cassiano Ricardo, ‘Um dia depois do outro’, in Poesias completas. Liv.José Olympio Ed., 1957, p. 279.
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Na obra de Cassiano Ricardo, em meio a poemas em versos regulares, irregulares ou livres, compostos de forma similar à da maioria dos poemas, despontam algumas criações nas quais se destaca o aspecto visual. Esta “Serenata sintética” é um deles. A obra de que o poema faz parte data de 1947, época em que fazer serenatas era um costume, tanto em cidades do interior, quanto em alguns bairros de São Paulo. Dois ou mais rapazes, munidos de instrumentos, entoavam canções junto à janela das amigas ou das namoradas.[2]
Observando visualmente o poema, o leitor tem a percepção de que o título se alonga horizontalmente, enquanto o poema se estende verticalmente. Essa configuração sugeriria que poema e título se igualam em tamanho. Como, no poema, todos os aspectos devem ser levados em conta, a primeira impressão é insuficiente. É preciso verificar os demais recursos presentes no texto. O primeiro deles é o ritmo.
Como se sabe, a contagem das sílabas poéticas se detém na última sílaba tônica. Sendo assim, em Serenata Sintética, cada verso, metricamente, tem apenas uma sílaba:
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Ru [a]
Tor [ta]
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Lu [a]
Mor [ta]
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Tu [a]
Por [ta].
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O poema todo tem, portanto, seis sílabas poéticas. Agora é a vez de metrificar o título. Eis a contagem de suas sílabas poéticas:
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Se – re – na – ta – sin – té – [ti – ca].
1 2 3 4 5 6
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Seis sílabas, novamente. Ou seja, do ponto de vista métrico, título e poema tem o mesmo número de sílabas poéticas, o mesmo metro ou tamanho. A metrificação confirma a sugestã6 visual: título e poema se assemelham. Cabe ao leitor interpretar essa escolha do criador do texto.
No título, o caracterizador de serenata é o adjetivo sintética. Seria uma cantoria resumida, conforme um dos sentidos do termo sintética? Ou artificial, segundo outro significado da palavra? Considerando a data de publicação, 1947, o termo não deve ter relação com a música mais recente, denominada sintética por ser produzida por meio de sintetizadores.
As serenatas costumavam ser relativamente demoradas e ocorrer ao ar livre, em noites de lua. Os dois termos do título levam o leitor a questionar: esta serenata, em vez de longa e natural, seria curta e artificial? Ressurge o efeito irônico do título: os versos do poema seriam um tipo novo de “serenata”? O fato de a cantoria se igualar ao título, em tamanho, seria uma crítica ao modo de viver, já um tanto apressado, em 1947?
A sonoridade é bastante explorada: rimam os versos ímpares [ Rua – Lua – Tua ] e também os pares [ Tor – Mor – Por ]. Ao ler em voz alta, os recursos fônicos destacam-se fortemente.
Não é empregado nenhum verbo, trata-se de texto marcado pela nominalização. A ausência de verbos sugere estaticidade, expectativa. Pairam incertezas: o caminho é sinuoso; a iluminação, reduzida; a porta, indecifrável. “Rua torta” indica um percurso cujas curvas dificultam que se veja claramente o que vem pela frente. “Lua morta” significa lua nova, isto é, ausência de lua, pouca luz. “Tua porta” é o ponto de chegada, a moradia da pessoa a ser homenageada pelas canções. A porta estaria aberta ou fechada?
Em contraste com o aspecto semântico, a escolha composicional reduzida ao essencial cria um efeito ambíguo: a dúvida estaria instalada apenas no interior do poema? Ou também na realidade social, na qual tudo deve ser rápido e mesmo as homenagens correriam o risco de ser curtas e apressadas?
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O terceiro poema é de Marina Colasanti.
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Sem que se diga
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Sísifo empurrava sua pedra
Morro acima. E chegando no alto
A pedra rolava, a pedra rolava.
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Semelhante é o destino das mulheres.
Sem que se diga ‘maldição’
Refazem camas.
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COLASANTI, M. Rota de Colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
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Dois tercetos em versos irregulares compõem o poema sem rimas, com sonoridade manifestada por repetições e aliterações [reiteração de consoantes].
A primeira estrofe retoma da mitologia grega o mito de Sísifo, condenado à interminável tarefa de empurrar sua pedra morro acima, vê-la retornar ao ponto de partida e recomeçar. A repetição no verso 3 — A pedra rolava, a pedra rolava — enfatiza o caráter repetitivo da situação eternamente inalterada.
No segundo terceto, esse mito é aproximado do papel da mulher na nossa sociedade. O paralelo apoia-se fonicamente em aliterações:
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Semelhante é o destino das mulheres.
Sem que se diga ‘maldição’
Refazem camas.
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O sentido do verso 4, Semelhante é o destino das mulheres, propõe uma crítica à visão machista ainda vigente entre nós. “Destino” — na evocação de um mito grego — configura um modo de existir que a mulher não escolheu, mas teve de aceitar, mesmo que a maldição não seja explicitada. A alusão ao fato de refazer camas propõe um jogo ao leitor: qual a razão da escolha dessa tarefa e não outra, dentre as muitas da vida doméstica?
Talvez os leitores homens nem se detivessem nesse ponto. Já as leitoras mulheres muito provavelmente observem a alusão ao duplo papel socialmente reservado a elas próprias: o de serviçal e o de objeto do desejo masculino.
O título “Sem que se diga” é enfatizado por sua repetição no verso 5, agora acrescido do objeto direto do verbo dizer: “maldição”. O tom se eleva, a ambiguidade se acentua e propõe que leitores e leitoras desvendem uma visão crítica sobre o papel da mulher, num tom que mescla sátira, crítica e protesto irônico.
Os três poemas incitam a interpretação do leitor. Brincadeira ironiza diferentes concepções de poesia, opondo a modernista à parnasiana. Serenata sintética aponta um evento tão cercado de ambígua incerteza, que o processo se estende ao contexto. Sem que se diga retoma uma maldição da antiguidade para transitar em direção à crítica satírica do papel social reservado à mulher, ainda em nossos dias. Nos três casos, um número reduzido de versos — recheados de recursos engenhosos — consegue levar o leitor a esboçar um leve sorriso e a perscrutar pistas para a interpretação do poema.
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Notas:
[1] Ribeiro Couto (1998-1963) é o mais significativo representante de nosso Penumbrismo, tendência poética pré-modernista caracterizada por tom melancólico, temas quotidianos, atenuação dos sentimentos e desarticulação rítmica do verso que teria preparado o caminho para o verso livre modernista.
[2] Atualmente, há algumas cidades em que esse hábito virou atração turística, como é o caso da mineira Diamantina e da fluminense Conservatória.
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