Poesia e sentimentos natalinos

Natal e sentimentos natalinos — entre nascimento e renascimento, esperança e recomeço, a poesia. Um ensaio da Prof. Norma Goldstein, com Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira.

por Norma Seltzer Goldstein

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Quando chega o mês de dezembro, muita gente fixa o pensamento no Natal. Lembrete: “natal”, substantivo faz parte de uma família de palavras que inclui “natal” adjetivo, significando nativo de determinado local; “nascer” e “renascer”; “nascimento” e “renascimento”. A etimologia desses termos é marcada pela noção de esperança e recomeço. Vários poemas tematizam essa época. Vamos ler dois exemplos.

Antes da leitura, um rápido comentário sobre o enunciador dos versos. Não vou, aqui, empregar o termo “eu-poético” para designar o papel assumido pelo criador dos versos, ao compor o texto. Essa expressão seria mais ou menos equivalente ao termo “narrador”, no caso de romances e contos. Em vez dela, opto pela aproximação do “eu-poético” com a pessoa que escreve, isto é, opto pelo termo “poeta”, pensando no ser humano presente em cada um desses dois poemas.

O primeiro foi composto por Vinicius de Moraes.

O termo natal, expresso no título, retorna ao longo do poema por meio de alusões, como inspirador dos sentimentos que o percorrem: solidariedade e esperança.

A forma composicional mescla regularidade e irregularidade. Nas quatro estrofes, o verso inicial termina com dois pontos e o quarto verso, com travessão, estabelecendo a unidade sintática do conjunto.

O tema da reciprocidade é enfatizado pelo uso alternado da voz ativa e da voz passiva, como se observa nos versos 2 e 3: Para lembrar (voz ativa); e da voz passiva: para isso fomos feitos; para ser lembrados; para expressar mágoa: para chorar e para causar mágoa: fazer chorar. A opção pelo sujeito “nós”, perceptível na desinência verbal e nos possessivos, soa como convite para que os leitores se sintam incluídos.

Quanto ao número de versos, as estrofes são semelhantes: todas têm sete versos, que são ritmicamente desiguais. O verso inicial da primeira estrofe é uma redondilha maior, possui sete sílabas poéticas:

Há outros redondilhos no poema: os versos 7, 8, 15, 17, 21, 28. Os demais são polimétricos, ou seja, versos regulares de diferentes tamanhos. Por exemplo:

Rimas toantes ocorrem de modo diverso em cada estrofe. Na primeira: lembrAr (rima interna) lembrAdos / chorAr  / dAdos; abrAços (rima interna). Na segunda, rima consoante que se estende ao primeiro verso da estrofe seguinte: esquecER / vER / dizER ; na terceira, rima toante: bErço / esperarEmos; na quarta, uma retomada da sonoridade da primeira estrofe e também, da segunda: milAgre  e esperarEmos.

Outros recursos sonoros estão presentes, destacando-se a aliteração ou repetição do mesmo som consonantal:

Esse recurso sonoro permitiria associar o sentido dos termos fonicamente aproximados, como se o significado de um deles “contaminasse” os demais criando um efeito cumulativo, ressaltando as sugestões temáticas. Ao reler os conjuntos, percebe-se uma nota triste envolvendo os do primeiro grupo e um sopro suave em torno do segundo. O terceiro parece percorrido pela sugestão de paz, silêncio e esperança.

Na estrofe inicial, é ressaltada a reciprocidade como o próprio sentido da existência: Para isso fomos feitos; / Para lembrar e ser lembrados  / Para chorar e fazer chorar / para enterrar nossos mortos. A anáfora – repetição de palavra na mesma posição, em diferentes versos- enfatiza a importância desse sentimento. A mesma preposição “para”, indicando finalidade, além de abrir os quatro primeiros versos, também ocupa a segunda posição nos dois versos finais: Mãos para colher o que foi dado / dedos para cavar a terra.

Na estrofe final, a mesma anáfora reitera o tema que percorre todo o texto: a importância dos laços afetivos entre as pessoas. Retomando a primeira, fica implícita a possibilidade de separação, pois os braços são longos para os adeuses; também há a sugestão de que a vida continua, pois as mãos se voltam para o trabalho — cavar a terra e colher.

Na segunda estrofe, versos de tom melancólico trazem metáforas da perda: uma estrela a se apagar na treva; um caminho entre dois túmulos. Daí as atitudes respeitosas: falar baixo, pisar leve, ver / a noite dormir em silêncio.

A terceira estrofe propõe algo a exprimir em três fases da vida: uma canção sobre um berço; um verso de amor; uma prece para quem se vai. No meio da estrofe, vem uma alusão à data e aos sentimentos que ela desperta: que essa hora não esqueça  / E por ela nossos corações /  Se deixem, graves e simples.

A estrofe final retoma a anáfora da primeira: Pois para isso fomos feitos. Nesta estrofe, é enfatizado o Natal e o que ele inspira: fomos feitos / Para a esperança no milagre, / para a participação da poesia / para ver a face da morte. A morte é citada uma segunda vez:  da morte, apenas / nascemos imensamente. Haveria mais de uma interpretação para a repetição e para a aparente oposição (morte x nascemos). Limito-me a duas. Enquanto seres comuns, pensemos na vida como um ciclo permanente, um “caminho entre dois túmulos”. Ao longo do percurso, cada um de nós deveria plantar algo importante. No plano da espiritualidade, consideremos o destino incomum daquele de cuja morte apenas / nascemos imensamente. Uma interpretação não exclui a outra. Em cada uma delas e em ambas, vida e morte figuram como complementares, sustentadas pelo permanente renascer da solidariedade e do amor.

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(Reprodução)

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O segundo poema é da autoria de Manuel Bandeira.

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Duas estrofes com sete versos irregulares compõem os Versos de natal de Manuel Bandeira. À similaridade da organização, contrapõe-se a disparidade temática entre as estrofes. Na primeira, prevalece a realidade. Na segunda, predomina a imaginação.

As duas estrofes desenrolam-se como um diálogo entre o poeta e o espelho, ainda que o objeto, aparentemente, nada responda. O poeta conversa, como se o espelho pudesse ouvi-lo e compreendê-lo.

O poema inicia pela personificação do espelho, mestre do realismo exato e minucioso, a quem o poeta agradece por ver nele fielmente refletida sua imagem. Ele trata o espelho por “tu” e assume os traços da própria idade, empregando o possessivo de primeira pessoa do singular nas metonímias que o descrevem: as minhas rugas, os meus cabelos brancos, os meus olhos míopes e cansados. Nascido em 1886, Bandeira tinha 54 anos ao publicar ‘Lira dos cincoenta anos’ em 1940, idade em que esses traços poderiam estar presentes.

O realismo da primeira parte retrata a imagem exterior do homem ao espelho. A prova de gratidão resulta do fato de se ver como realmente é. O verso inicial, reiterado no quinto, enfatiza isso: Espelho, amigo verdadeiro. Ao agradecer pela fidelidade do retrato, o poeta indica a importância de se ter consciência da realidade e aceitá-la.

Nesta estrofe, está presente apenas uma rima toante: cansAdo / obrigAdo. Além da repetição de verso, destaca-se a repetição de palavras — meus , obrigado — e a aliteração de “S”: eSpelho; refleteS; aS ; S minhaS ; rugaS; oS ; meuS  ; cabeloS ; brancoS; olhoS; míopeS; meStre; realiSmo; minuCioso.       

Em relação aos recursos fônicos, também na segunda estrofe, há apenas uma rima toante: mÁgico / natAl. Ocorre a reiteração do termo “menino” e retorna a aliteração de “S”: MaS,  Se, foSSeS , penetrariaS, deSSe, triSte, deScobririaS , SuStenta, eSSe , Senão,  todoS, oS , anoS, véSpera. penSa, seuS, chinelinhoS,  atráS. Presente em ambas as estrofes, esse recurso sugeriria continuidade, elos entre realidade e sonho, entre aparência exterior e interior, entre velhice e infância.

A conjunção “mas”, indicadora de oposição, abre a segunda estrofe, anunciando o contraste em relação à anterior. Na primeira, prevalece a realidade. Nesta, surge a hipótese de sonho: se fosses mágico. O tema do espelho mágico alimenta a imaginação dos leitores e faz parte do repertório de muitos de nós. Aponto uns poucos exemplos.

Ele figura numa lenda japonesa antiga: o marido chega de viagem e traz o que ele julga ser um quadro, mas é um espelho; a esposa olha no espelho, vê uma moça e fica enciumada; o marido retoma o objeto e diz ver a imagem de um jovem; o casal consulta um sábio idoso que olha no espelho e afirma tratar-se da imagem de um velho. Então o casal faz as pazes.

O espelho da madrasta de Branca de Neve é poderoso: a mando da dona, vigia todas as belas mulheres do mundo. O espelho ficcional de Lewis Carroll conduz Alice a um mundo encantado. No caso mitológico de Narciso, o reflexo de sua imagem na água o enfeitiça. Haveria outros espelhos e outras histórias que não caberiam aqui. A alusão ao caráter mágico do espelho é um recurso ficcional recorrente que, de certo modo, apela à cumplicidade do leitor.

Em que consiste a magia deste espelho? Inversamente ao desempenho da primeira estrofe — em que reflete o lado exterior do poeta —, na segunda, ele desvenda seu lado interior, aquele que só um espelho mágico poderia descobrir: o homem triste, sustentado pelo menino que não quer morrer / Que não morrerá senão comigo. A imagem se amplia, como metáfora estendida em alegoria: O menino que todos os anos na véspera do Natal / Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

Os chinelinhos atrás da porta remetem à lenda de São Nicolau, associado à figura de Papai Noel, considerado protetor das crianças. Na festa de dezembro, diz a lenda, São Nicolau ou seu assistente sempre deixariam algo nas meias — ou nos calçados — das crianças: doces, para as bem-comportadas, carvão, para as desobedientes.

No poema, a alusão aos chinelinhos atrás da porta remete não só ao presente de Papai Noel, mas a outro desejo maior: que o menino que não quer morrer e que sustenta o homem triste seja capaz de renovar, no adulto, o potencial de imaginar, de ter fé, sonhos e ilusões.

Nos versos de Vinicius de Moraes, encontramos inspiração para realimentar os laços afetivos, a solidariedade e a esperança. Nos de Manuel Bandeira, a proposta de reavivar nossos sonhos e acreditar em sua realização. Que essas sugestões nos motivem a despertar nossa criança interior e que por ela nossos corações se deixem graves e simples.

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(Reprodução)

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