por Hugo Langone
Ao “Por que escreves?” que invariavelmente, em algum momento de seu ofício, escutarão os autores, tantas respostas deverão ser obtidas quanto forem os indagados. Ou, antes, tantos percursos de resposta, tantas intuições, tantas experiências. Em certo sentido, porém, à parte a substância do que dirão, dotada como sempre estará de milhares de nuances particulares, há por trás da pergunta isto: que ela só pode ter sentido à luz de um “Por que a literatura?”. Sim: para que o porquê da escrita seja pergunta razoável, deve ser em razão de que o ofício tem por resultado qualquer coisa de relevante. Desejo saber por que escreves, inquieta-me por que dedicarias a isso o tempo, porque aquilo que escreves descortina algo, produz qualquer impacto — é algo que me diz.
Ora, todavia não é como se a descoberta da segunda pergunta facilitasse o encontro de uma resposta. Seria possível repetir, como Northrop Frye e tantos outros, a indagação do porquê, num ponto determinado, a linguagem alcança um peso tal, uma medida, uma sonoridade, que já não se pode mais dizer que repousa (e é como se repousasse, altiva, olhando-nos desde o alto) no mesmo patamar da linguagem com que vamos nos comunicando aqui e acolá ao longo da vida. A imensidão do panorama que se desvela diante da mera pergunta dá já mostras da dificuldade do caminho, e que tantos homens bons tenham partido daí é a prova da sua fecundidade.
No entanto, para quem de fato escreve, para quem de fato suscita tanto a primeira quanto a segunda pergunta, não estaria mais próximo o primeiro caminho? Não seria mais fácil — e por que se haveria de iniciar o percurso da maneira mais árida? — olhar para onde se está, questionar-se a si mesmo, para que um “Por que escrevo?” venha a desembocar num “Por que isso pode dizer respeito a outrem?” e, por fim, chegue àquele plano mais genérico, à literatura como algo que tem algo a dizer ao homem e do homem?
Nesse caso, pois, pode-se partir do momento primeiro, o mais íntimo: aquele em que algo vem; ou, antes, em que o artista, o autor, o descobre, em que depara-se com ele. Sim: vem, descobre-se. Há mesmo, e muito claramente, a sensação do movimento. Vamos-lhe ao encontro enquanto jaz ali, à espera; ou, então, aproxima-se destes estagnados que somos, destes alheios: eis-me, respondemos, porque me chamaste.
Qualquer que seja o caso, ninguém dirá que é precisamente o encontro, esse deparar-se, o que faz do contato uma conclusão irresistível, inevitável. Não: cedemos a atenção, centramo-nos nisto que nos chama, porque traz consigo um não sei quê de resplendor, um não sei quê de brilho. É assim que se sobressai, entre tantos, de qualquer outro encontro, de qualquer outro chamado: não é ignorado, não pode ser — e o tom do chamado vem sob medida. Sabe que ouvido é este que o escutará.
Pouco mais se poderia falar quanto a isto. Deste algo que vem ao autor, que surge, que percebemos como fulgor, apenas duas notas talvez se distingam como padrões. Primeiro, que, fora a luminosidade, não se pode prever muito: é possível que este algo chegue como som, como palavra, como ideia. Quem saberá? Anuncia-se, ouvimos, e então nada mais faz senão esperar que tateemos. “Há algo aí” – e vamos, às apalpadelas. Depois, que não é paciente, que oferece poucas oportunidades: ou o aceitamos e nos demoramos nele ali, ou muito provavelmente se perderá. Exige muito esforço nosso conservar seu brilho, recuperar o frescor e a imediatez do encontro, e ao fim é muito maior o número de nossas perdas do que daquelas que aproveitamos: o texto que nasce, ou que ao menos se estrutura, muito tempo depois da manifestação desse quid passa, ao autor, a sensação da sobrevivência.
Neste ponto já se vislumbrará que não pode proceder a acusação de que tudo isso é por demais abstrato, de que talvez se aplicasse a composições sublimes da história literária e artística, mas que hoje, quando o olhar da poesia — da literatura e das artes como um todo — se ocupou do homem real e da vida tal como a vivemos, resumir o processo da escrita assim não pode ser nada além de um pedantismo saudosista. Todavia, falou-se que “é possível que chegue como som, como palavra, como ideia”. São precisamente todos muito concretos. É preciso que ressoe no autor uma palavra como “uvaia” ou “manacás” para que note como essas sílabas deslizam gentilmente pela boca, no primeiro caso, ou pareçam lépidas, no segundo, conferindo ao poema ou peso, ou leveza. As plantações de limão, a parede com chapiscos e os cacos de vidro sobre o muro vieram à cabeça de Montale dotados de resplendor, mas ainda assim não há, fora essa luz, qualquer altivez extraordinária naqueles arbustos a exalar seu perfume cítrico. O raciocínio, naturalmente, poderia prosseguir e se aplicar a ideias ou valores, a paixões, a uma virtude qualquer — ao que for.
A tudo isso deve o autor estar atento. Reside precisamente aí sua principal atividade: ter o olhar, a escuta, o espírito apurado, com certa receptividade natural; depois, reside aí também – não o reconhecerão todos? – o mistério: por que goza este ou aquele desta sensibilidade, dessa inclinação natural, de tal modo que trair esse estado de atenção, negar o raio que lhe atinge, consiste mesmo em trair uma vocação? Sim, é preciso evitar o erro da glamourização desta vocação particular em detrimento de qualquer outra, e portanto a pergunta talvez deva mesmo ser – e de fato o é – mais ampla: por que as sensibilidades e as inclinações de cada qual, independentemente de quais sejam?
De todo modo, ela existe, há o mistério dessa receptividade. Mas deve-se atentar ao que muito bem notou a senhorita Flannery O’Connor: que olhar e juízo se confundem, que no escritor o ver é julgar. Não se dão, por conseguinte, um olhar, uma escuta e uma atenção absolutas e únicas, como se pairassem acima das particularidades da natureza. De fato, porque falamos de juízo, descobrimos a janela que leva à multiplicidade de respostas. Não é formado o juízo, para além de todos os parâmetros morais inegociáveis e imutáveis e comuns, daqueles elementos pessoais que cada indivíduo vai acumulando ao longo da existência, de suas experiências, do ambiente, da estrutura familiar? Ou mais: de sua constituição física, do temperamento e das inclinações naturais, de umas características genéticas, da facilidade com que cede ou resiste às opiniões alheias? E, no âmbito da própria criação, não se deveriam mencionar as vozes desses autores passados e contemporâneos, dos artistas de outros campos e ofícios, que compõem nosso leque de referências?
Tudo isso condicionará a forma da atenção, e por isso teremos o denominador comum do chamado junto a tantas reações quantos forem os autores. Ora, mas o que isso revela? Que há uma força de atuação, um impacto, sobre um indivíduo que sabe conservar a própria atenção e vê-se misteriosamente inclinado a perceber tal luminosidade. É bem verdade que nesse movimento e nesse encontro já se experimenta algo, certo júbilo contido. Se há qualquer coisa de curiosa no mistério da criação, está em que a imagem mental do que deve ser criado já é fonte de gozo, como se a tarefa fora concluída ali mesmo. Todavia, ainda estamos aí no âmbito do chamado e do encontro, do fulgor – dentro, portanto, do próprio indivíduo. Poderia vir daí a explicação do passo subsequente? Por que escrever, por que legar a experiência íntima às palavras?
A dúvida se agrava porque o passo da técnica é para todo autor o mais árduo, o passo do qual ele certamente prescindiria se fosse possível. Os que incessantemente repetem que arte é técnica, que trata-se de fazer algo, podem correr o risco do reducionismo, de esquecer que sobre a técnica deve resvalar aquele mesmo fulgor que no princípio se mostrara irresistível ao artista. Não se transmite a luz que não se tem – e, ao menos para o autor, tudo se dará apesar da técnica, da fabricação. Por que, então, dar-se o trabalho? Já não se tinha antes a experiência em plenitude?
Em certo sentido, a parte imprescindível de fato estava lá; por outro lado, fora tão imprescindível quanto breve: já se mencionou o esforço necessário para que perdure. Desse modo, talvez não seja sequer adequado falar em plenitude da experiência. Poderíamos aplicar a palavra a realidade tão fugaz? Porque nosso coração inquieto anseia pelo repouso na experiência duradoura, deve-se portanto escrever, aproximá-la da durabilidade da letra. No fundo, consiste tudo numa extensão da experiência — ou melhor, na saudade mesma do encontro. A este encontro a técnica jamais fará jus; ao mesmo tempo, para o artista será uma necessidade, um senso de dever para consigo mesmo. Trata-se mesmo de um grande paradoxo, uma vez que consiste no dever para com uma frustração, tenha ela o grau que for. Talvez isso ajude a explicar por que o autor sempre achará, no fim das contas, que existe algo a ser retocado, polido, naquilo que faz.
Este, como sabemos, é o ponto da interseção. Já não nos encontramos mais no âmbito exclusivo do escritor. Uma vez articulado, no que ele diz poderá tomar parte outra pessoa. “Poderá”, uma vez que, se sincero consigo mesmo, se verdadeiramente dotado daquela vocação a que já se fez referência, não verá na comunicação uma realidade indispensável. Poderá se afigurar indispensável por outras razões, boas ou más (entre elas, a vaidade), mas não pela vocação.
O que há, portanto? Por que a experiência nascida de algo tão íntimo ressoará em alguém de fora, de todo alheio ao processo que culminara naquilo que ele agora tem diante dos olhos? É perfeitamente plausível, a depender do grau dos esforços empreendidos e da capilaridade dos meios, que certos escritos circulem e encontrem leitores, mas não se trata disso. Pode-se repetir: por que a experiência alheia ressoará?
Aqui, o que seria possível dizer sem que se transmita, em comparação com os filósofos da beleza, com os teóricos da literatura e da literatura comparada, com os historiadores da arte e certos sociólogos e antropólogos, a impressão da superficialidade? Por outro lado, não é nada superficial a vida interior do homem, e é precisamente nela que sente ele a experiência da leitura, da arte, querendo se imprimir. É isto o que experimentamos todos diante das grandes obras do espírito humano. É isto, ademais, o que permite que possamos chamá-las grandes.
Ora, jaz aí, parece-nos, a resposta àquele “Por que isso pode dizer respeito a outrem?”. A luminosa experiência do autor não é mais que um lado da experiência artística; também por parte de quem lê, de quem contempla, há a experiência luminosa que abre o indivíduo a algo que lhe é claramente maior. Surge de fato a ironia: a materialidade da letra, para o leitor, não figura mais como obstáculo, mas torna-se precisamente a ponte que o aproximará da experiência original de quem escreve. Apenas aproximará, naturalmente, pois também aqui as bagagens, os “elementos pessoais” acumulados pelo leitor ao longo de toda a sua vida, fazem desta uma experiência pessoal e intransferível. A experiência da escrita e a experiência da leitura se refletem e correspondem tanto quanto o negativo e o positivo de um filme. Ambas as partes contribuirão com seus traços e especificidades, prejudicarão ou farão jus à experiência que é ponto de partida para o autor e, para o leitor, local de chegada.
Os interesses, portanto, se interseccionam: a experiência diz respeito aos dois. Para que se entenda o porquê, basta perscrutar algo mais que podem compartilhar – e chegaremos, como denominador comum, a esse coração de carne que pulsa em todo e qualquer homem, em toda e qualquer mulher. Pois este coração não foi feito para si, mas para abrir-se a algo maior, para entregar-se. O autor escreve sob o impacto de uma experiência luminosa que o chama e transcende; o leitor, ante os resultados do bom autor, será levado a encontrá-la. Em comum está essa vocação do coração humano a algo imenso – seu chamado à magnanimidade. Mas não só. Também está a consciência de sua pequenez ante tudo aquilo que não pode dominar, que só pode contemplar assombrado. A experiência artística recorda ao homem sua vocação à grandeza e sua pequenez, as quais convivem e devem conviver em tensão. Eis, portanto, não apenas o porquê de a experiência criadora de um indivíduo vir a expressar algo a outrem, mas também o porquê de a literatura ser algo incontornável. Não se trata, como ultimamente se vem dizendo, de um consolo em meio a contingências que assumem, muitas vezes, a aparência das urgências e necessidades. Atribuir isso à arte seria apenas mais uma face do desespero. Não: a literatura, ao lado de suas irmãs, da música, da arquitetura, das artes plásticas, é precisamente o lembrete de que o coração do homem busca por natureza, e pode encontrar, um sentido. Ele não precisa assumir postura defensiva, não precisa criar consolos e refúgios, contra um mundo que nada respeita do que é humano; antes, vê, precisamente do meio deste emaranhado de atividades e preocupações, algo que se encontra muito além e que lhe é independente. Algo que o convoca, a que, se fiel, dá seu sim.
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Hugo Langone é poeta e doutor em Teoria Literária, autor dos livros Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito (7Letras, 2015), A descida do monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura pagã (Filocalia, 2017).