por Hugo Langone
O roteiro, conhecemo-lo bem: o interessado abre um volume de arte atual, folheia com pressa suas páginas e se detém, intrigado, sobre a reprodução duma tela. Ali, interrompendo o predomínio do fundo branco, misturam-se cores salpicadas diversas; ou, ainda, revela-se figura geométrica toda negra, ou mesmo mais de uma. Após seus dois segundos de contemplação, ao leitor, cujo adjetivo passou de interessado a desconcertado, duas são as frases possíveis: “Mas chamam isso de arte?!”, ou: “Mas, espere aí: isso até eu faço!”.
Há, no entanto, ainda a versão literária do enredo. É menos popular, decerto: abre o leitor uma dessas obras contemporâneas e, diante dum poema de dois, três, quatro versos que não parecem, no fundo, passar da tradução de uma frase corriqueira em linhas distintas, vê-se obrigado a exclamar algo que é maior do que si: “Ah, acho que isso também eu consigo fazer…”
E, como é alfabetizado, muitas vezes o faz, de fato.
Quem será capaz de pensar de outra forma? Quebram-se alguns slogans e frases de efeito num punhado de versos e… ei-los: uns novos poetas-comediantes, uns novos poetas-atores, uns novos poetas-para-seus-pares. E, por razões evidentes, uns versos curtos e de aparência descompromissada lhes são um tanto convenientes. Também são alfabetizados. Vão lá e fazem.
Não obstante Robert Frost diga que “a permanência na poesia, como no amor, é percebida instantaneamente” (do que se depreende que a impermanência também o é), a boa-nova, como sempre, é que o tempo é juiz implacável, e sobretudo no âmbito estético – e não será, nesse caso, tanto pela opção dos versos curtos e poucos do que pela ausência de certo algo indizível, irrepetível e intransferível, um certo espírito ou inclinação do bom poeta. Antes do como, falta-lhes um o quê. Pois bem, slogans e frases de efeito são hoje publicidade, não poesia. Que se dê àquela o nome desta é o anúncio da devastação de uma cultura – e, cedo ou tarde, o tempo revela os escombros.
Giuseppe Ungaretti, por exemplo: vem ele à mente como escritor que quis os versos breves, corridos, de aparente simplicidade – um de seus poemas mais famosos, Mattina, trazem dois e só. Mas quem há de dizer que se trata de escolha necessariamente mais fácil? O próprio italiano reconhece que a forma o atormenta “porque dela exige que se conforme às variações de seu estado de ânimo”. Ungaretti possui esse quê: o espanto – o olhar agudo – que dá peso à poesia e que só pode ser realçado pelo ofício, sob o risco de perder-se. Ou a forma o captura, ou o poeta morre – até o espanto seguinte. O que a forma há de capturar nesses nomes que, na certeira expressão do resenhista duma dessas novas antologias de poetas contemporâneos, trazem “pinga-pinga de nada sobre nada em linguagem vazia”?[1] Nada.
Adélia, nossa, é outra – e insuspeita: não se pode dizer que tenha fugido, ao menos no grosso de seus versos, da linguagem que nosso interessado reconheceria como sua e do poema de três versos de sua obra contemporânea. Mas poderia ele fazer o mesmo? Olharia para uma rosa e diria: “Agora é definitivo:/ uma rosa é mais que uma rosa./ Não há como deserdá-la/ de seu destino arquetípico./ Poetas que vão nascer/ passarão noites em claro/ rendidos à forma prima:/ a rosa é mística”?
Que poeta-ator, que poeta-para-seus-pares, que poeta que nos faz passar do interesse ao enleio, terá passado essas noites em claro?
[1] Amador Ribeiro Neto, em https://saopauloreview.com.br/critica-como-o-proprio-titulo-do-livro-diz-antologia-poetica-de-adriana-calcanhotto-e-incompleta-mesmo/.
Hugo Langone é poeta, autor de “Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito”. É também editor e tradutor.