por Renata Velloso
Imagine-se um menino apaixonado por futebol sozinho no meio do campo. As luzes do estádio se acendem prateando as gotas de chuva no gramado. Surge Pelé, que sorri, te pega pela mão e ensina, detalhe por detalhe, tudo o que faz dele um gênio: a coreografia exata de cada drible, de cada passe, como encarar o adversário até o momento de respirar fundo, chutar para o gol e marcar. Parece um sonho. Um sonho que Robert A. Caro realizou para os apaixonados, não por futebol, mas por biografias e livros de história.
Em seu mais recente livro Working, o vencedor de dois prêmios Pulitzer e consagrado pelo ex-presidente Barack Obama com a National Humanities Medal conta de maneira simples, direta e honesta o seu método de trabalho: como faz as pesquisas, conduz as entrevistas e escreve as páginas de suas obras-primas.
Em seu livro de estreia, The Power Broker, que deu a ele seu primeiro Pulitzer, Caro contou a história de Robert Moses o homem que, sem nunca ter sido eleito para qualquer cargo público, idealizou e construiu a cidade de Nova Iorque que conhecemos hoje. Mais do que contar a vida do homem que foi o mais poderoso da metrópole por 44 anos, Caro esmiuçou como ele conseguiu poder para implementar a sua visão, quais interesses ele precisou satisfazer e o que aconteceu com a vida das pessoas que tiveram a felicidade, ou mais comumente a infelicidade, de estar no caminho das suas pontes e estradas. Na sua série subsequente, sobre os anos do ex-presidente dos EUA, Lyndon B Johnson, Caro faz o mesmo percurso, mas dessa vez a nível nacional.
Agora em Working, o premiado autor explica que escolhe seus personagens não pela grandiosidade das suas realizações ou peculiaridades interessantes da sua vida ou da sua personalidade, mas porque através deles é possível contar a história da origem, do uso, e do impacto do poder político na vida dos cidadãos comuns. Em comum, os dois personagens têm, além da controvérsia, um enorme poder de realização. Não são heróis ou vilões puros, mas gênios políticos que sabem utilizar as estruturas do poder para atingir seus objetivos.
A característica mais marcante dos livros de Caro é que ele usa técnicas de ficção para contar histórias reais. Nos seus livros, o leitor é transportado para a cena que está sendo contada. É possível sentir os aromas, as texturas e a tensão de cada passagem. Isso só é possível devido ao seu processo minucioso de pesquisa e entrevistas. Daí a razão porque os seus livros demorarem tanto tempo para serem escritos. O primeiro, por exemplo, levou mais de sete anos para ficar pronto. “Eu escrevo rápido”, defende-se, “o que demora é a pesquisa”.
Caro entrevista seus personagens repetidas vezes, em alguns casos, dezenas de vezes. Em Working ele conta que muitos entrevistados acabam ficando irritados com ele, pela insistência das perguntas. Uma das suas preferidas é: “Mas o que você viu?”, que ele costuma indagar sem se contentar com descrições rápidas ou genéricas. “Muitas vezes o entrevistado nem tem consciência de tudo que ele viu”, explica. Caro quer saber da gota de suor, do tremor das mãos, no gaguejar da voz que um interlocutor pode ter percebido em determinado momento histórico. Ele explica que seu objetivo é descrever a cena da maneira mais precisa possível, para que o leitor tire as suas conclusões sobre o que aconteceu ali sem ele precisar dizer. Por isso quer saber de tudo, do cenário, da iluminação, até da temperatura que estava na sala.
Uma de suas dificuldades durante essas entrevistas é deixar o interlocutor falar, sem interromper. Assim, entre uma anotação e outra, muitas vezes ele escreve para si mesmo a sigla S.U. (do inglês shut up) para lembrar de calar a própria boca. Notas essas que ele faz questão de escrever a mão, sem o uso de gravador, que ele teme intimidar os entrevistados. Caro garante que a prática não prejudica a acurácia daquilo que escreve. Ele conta que ao entrevistar a ex-primeira dama Lady Bird Johnson, ela mesma pediu para gravar a conversa. Ao comparar a transcrição da gravação com as suas anotações pessoais, Caro revela que as frases importantes estavam todas anotadas com precisão, palavra por palavra.
Outra técnica que ele descreve é anotar os silêncios e as pausas que os entrevistados fazem durante as entrevistas, para ajudá-lo a entender as emoções que eles estão tendo naquele momento. E quando chega em casa, religiosamente, independentemente do horário, passa a limpo suas anotações datilografando tudo em sua máquina de escrever Smith-Corona Electra 210, a mesma que ainda usa para escrever seus livros. O autor explica que dispensa a tecnologia do computador porque não faz questão de facilitar a vida e que datilografar o força a ir mais devagar, a refletir antes de escrever, a não pensar com os dedos, melhorando a qualidade dos seus textos. Com isso, ele escreve livros de não-ficção com qualidade literária.
Outro aspecto marcante da obra de Caro é a profundidade da sua pesquisa. Para isso, conta com a ajuda da sua esposa, Ina, que divide com ela a tarefa de vasculhar o maior número possível de documentos. Caro é obcecado por virar todas as páginas dos documentos históricos em busca da verdade. Foi assim que descobriu que Robert Moses alterou em várias milhas o desenho de uma estrada que estava projetando, a Northern State Parkway, para desviar de um campo de golfe recém-inaugurado pelo multimilionário Otto Kahn. Essa descoberta contradizia as alegações de Moses que seus projetos eram técnicos e que ele nunca fazia alterações para satisfazer interesses pessoais de quem quer que fosse.
Foi também revirando documentos que Caro consegui entender como o então jovem e inexperiente senador LBJ tinha conseguido tanto poder dentro do legislativo em tão pouco tempo. Apesar do cuidado de manter esse tipo de informação secreta, Caro encontrou em umas das caixas, entre as mais de 45 milhões de páginas de documentos que compõe a biblioteca do ex-presidente, anotações que comprovavam que LBJ recebia recursos financeiros do magnata do petróleo texano George Brown e repassava esse dinheiro para seus colegas congressistas segundo suas necessidades eleitorais, e claro, segundo o grau de lealdade política.
Mas a imersão de Caro e de sua mulher Ina vai muito além dos papéis. Para contar a história da infância de LBJ, por exemplo, o casal se mudou para a região de Hill Country, no Texas, onde Lyndon Johnson cresceu. Foi a maneira que o casal encontrou de conseguir o respeito e a confiança das pessoas que conviveram com o ex-presidente durante a sua infância. Antes disso, para eles, Caro era mais um dos jornalistas-turistas que chegavam, faziam um monte de perguntas e nunca mais colocavam os pés por lá. Foi só indo morar na inóspita e abandonada região que ele, um bicho urbano nascido e criado em Nova Iorque, conseguiu entender a solidão da infância de LBJ e a importância que ele tem para aquela população. Johnson prometeu e levou a eletricidade para aquele povoado do interior do Texas, o que provocou um impacto indescritível na vida das pessoas, especialmente das mulheres. Antes da chegada da energia elétrica, enquanto os homens trabalhavam no campo, as mulheres cuidavam da casa e cabia a elas tirar dos poços as latas de água necessárias para a família. As mulheres carregavam diariamente dezenas de litros de água nas costas, fazendo com que com o passar dos anos adotassem uma postura curvada. “Vou trazer a energia elétrica para que vocês não fiquem como as suas mães”. Johnson prometeu, e cumpriu, para as jovens texanas. Só estando lá, convivendo com o povo e tentando carregar ele mesmo uma lata de água que Caro conseguiu entender o tamanho que LBJ tinha ali.
Com essa mesma sensibilidade, Caro conta a história de James e Helen Roth, um casal de fazendeiros e sua família que comprou uma propriedade no estado de Nova Iorque, em 1922. O terreno era de difícil cultivo, então os Roths trabalharam duro na terra, limpando as pedras e madeiras, puxando com as mãos o arado até que pudessem começar a produzir. Mas em 1927, a pequena fazenda que dava sustento para família Roth estava no caminho da mesma Northern State Parkway. O projeto da nova estrada cortaria as terras da família ao meio, tornando-as improdutivas. James Roth, desesperado, foi até a prefeitura da cidade e implorou para que o projeto fosse desviado cerca de 200 metros. Com isso, ainda seria possível salvar a produção das suas terras. Mas, ao contrário do que tinha feito pelo campo de golfe do multimilionário, para a família de agricultores, Moses não desviaria seu projeto nem um centímetro e o casal foi obrigado a se mudar e recomeçar a vida em outro lugar.
São essas pessoas, os cidadãos comuns, que mais interessam a Caro. Segundo ele, é impossível contar a história dos poderosos, sem entender a história dos sem-poder. E o mais fascinante para ele é compreender como o governo, ou como as decisões políticas que os burocratas tomam em seus gabinetes, mudam a nossa vida, para o bem ou para o mal. No momento, o autor de 83 anos está escrevendo o último livro da sua série sobre LBJ e ainda promete uma autobiografia.
Para os jornalistas e escritores, que se dedicam a relatar a verdade, Working é um livro obrigatório. Ele demonstra o grau de respeito e seriedade que devemos ter com a história que estamos contando. Ao ler o livro, me lembrei de uma frase que do pianista brasileiro Arthur Moreira Lima disse a um jovem aspirante a músico. “Eu daria a vida para tocar como você”, falou o estudante, no que Moreira Lima respondeu “pois é, eu dei a minha”.