Rogai por nós, Philip Roth

Para o título do seu romance derradeiro, Philip Roth escolheu o nome da deusa grega da vingança e da justiça distributiva. Nada mais preciso. Quando estamos diante de uma epidemia, o destino de Bucky Cantor mostra que é inútil indignar-se contra Deus. O jornalista Elton Frederick escreve sobre Nemêsis (e nosso tempo).

por Elton Frederick

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Onde Deus está quando nos vemos assombrados por uma pandemia? Em um mundo notadamente religioso, a pergunta não é retórica. Deve estar quarentenada na cabeça de muitos dos que creem. Estava na de Bucky Cantor, protagonista de Nêmesis, o último romance de Philip Roth, escritor americano cuja morte completou dois anos no último dia 22. O livro é um desses exemplos em que a invenção literária funciona como guia para uma melhor compreensão da situação em que nos encontramos. Nem sempre conforta, é verdade. A leitura pode, inclusive, reforçar nossas angústias diante da dúvida sobre o que nos espera quando tudo isso passar — considerando a hipótese benevolente de que isso passará.

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(Vintage Books)

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O mal atende pelo nome de poliomielite na trama construída por Philip Roth. O livro narra os efeitos da epidemia em uma comunidade de judeus em Newark (New Jersey), em 1944. É ali que vive Bucky Cantor, um dedicado professor de educação física que rapidamente é alçado à condição de ídolo por seus alunos. Bucky perdeu a mãe no parto que o trouxe à luz, e seu pai desaparece depois de cumprir pena por roubo. É criado pelo avô, que transmite a Bucky valores como a coragem, a disciplina e a responsabilidade, tornando-o “um homem e um judeu de verdade”. São essas características que fazem dele uma espécie de irmão mais velho dos alunos, muitos dos quais convivendo com a ausência dos próprios irmãos que lutavam na guerra.

O livro inicia com as autoridades relativizando o problema e fiando otimismo. Cuidado sim, histeria não. Está tudo lá: as incertezas sobre os vetores de transmissão, o desespero dos pais, a ilusória busca por um local inalcançável à doença. Bucky é um desses homens dotados daquilo que poderíamos chamar de senso de missão. Ressentido por não ter ido à guerra por ser míope, sentia-se impelido a enfrentar um inimigo — qualquer inimigo — usando apenas as próprias forças. A contingência o impediu de lutar por sua pátria; a contingência o salvou de viver em um lar disfuncional. Aquilo que a qualquer um seria uma generosa cota de salvação era, para Bucky, uma ofensa. Duas guerras em que ele sobreviveu sem a necessidade de lutar. Havia agora uma nova batalha, e Bucky queria fazer o seu acerto de contas.

Na medida em que o surto avança, atingindo seus alunos, Bucky é tomado pela dúvida e pelo desespero. De nada servem seu vigor físico, sua disciplina, sua disposição: o mal, além de invisível, é também irrefreável. Marcia, sua namorada, refugia-se em um acampamento de férias nas montanhas, um local supostamente imune à doença. Uma vaga de emprego que parece ter sido feita para Bucky surge no local. Mais uma salvação? “Ficaríamos juntos e você estaria a salvo”, é o convite que Marcia faz ao homem que a ama. Se seus alunos não podem ser salvos, por que não se salvar? Bucky precisava negar a si para aceitar a proposta da namorada, e assim o faz. Como estamos falando da literatura de Philip Roth, haverá consequências, claro.

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Philip Roth

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Nêmesis ensina que as boas intenções não estão imunes à peste. A “tirania da contingência” opera segundo uma lógica que escapa à compreensão dos homens. Na ânsia de fazer o bem, Bucky descobre-se um vetor do mal que buscou combater. Como isso é possível? Há de se ter um culpado e, para Bucky, essa conta é de Deus. “Deus matou minha mãe no parto. Deus me deu um ladrão como pai. […] Deus me deu a poliomielite”, desabafa um homem autopiedoso já nas últimas páginas do romance. “Algumas pessoas têm sorte, outras não. Toda biografia é uma questão de chance e, a partir do momento da concepção, a sorte — a tirania da contingência — comanda tudo. Acredito que era isso que o Sr. Cantor se referia ao condenar o que chamava de Deus”. É a interpretação do narrador  (que se apresenta na parte final).

Conciliar a existência de um Deus bondoso e a presença do mal no mundo é um desafio que remonta a uma longa tradição de enriquecedores debates. Muitas respostas foram e continuam sendo dadas — íntimas ou públicas, rudimentares ou sofisticadas. Seja nas guerras, nas epidemias ou nos dramas particulares, a pergunta continua a se impor aos que creem. “Onde está Deus quando…”. Deve estar na cabeça de muitos moradores de Manaus, a cidade das valas coletivas. Foi Albert Camus, em A Peste, quem disse que “uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre”. O narrador referia-se a Orã, a cidade que recebeu a visita da peste misteriosa, mas poderia ser dita por um manauara sem amor e sem trabalho, mas cada dia mais íntimo das formas de morrer.

Nêmesis não vivencia o fenômeno de A Peste, de Camus, cujas vendas cresceram em proporções epidêmicas. É justo. Publicado em 1947, o livro do escritor franco-argelino transcendeu as referências datadas e mesmo a tentação da interpretá-lo essencialmente como alegoria da ocupação francesa pelos nazistas. O livro é isso e muito mais. No Brasil, a leitura inspirou até o ex-ministro da saúde, Henrique Mandetta, a fazer uma sutil provocação ao presidente, reputando-o “extremamente humanista”. Na obra de Camus, “humanistas” são aqueles para quem os flagelos não estão à altura da grandiosidade dos homens; que o sofrimento que decorre da Peste é um sonho mau que passará. “Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções”. Mandetta é um bom leitor.

Não se trata, obviamente, de apontar o livro que melhor entendeu e descreveu os temores  diante de um inimigo que se alastra invisível e em silêncio sem que nada — ou quase nada — possa ser feito. Bobagem. Cada obra retrata, à sua maneira, as tensões que permeiam uma cidade em que todos são vítimas ou vetores potenciais. Camus e Roth, no entanto, parecem se deparar com um problema comum: o brutal poder das contingências.

No Brasil, não encontramos uma revolta pública como a de Bucky Cantor. Não se vê gente culpando Deus pela pandemia que nos assola. Por aqui, ao contrário, há um estranho alinhamento entre o negaciosmo e alguns segmentos religiosos. Se em outros tempos as pestes foram vistas como exercício da pedagogia divina para admoestar seu povo, o que temos agora são grupos que trabalham para nos fazer crer que a peste não existe; e se existe, não é assim tão grave.

Para o título do seu romance derradeiro, Philip Roth escolheu o nome da deusa grega da vingança e da justiça distributiva. Nada mais preciso. Quando estamos diante de uma epidemia, o destino de Bucky Cantor mostra que é inútil indignar-se contra Deus. Talvez  também seja inútil venerá-lo. A única certeza que temos é que mitos de carne e osso não operam milagres.

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(Foto: Joe Tabbacca/AP)

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