Romance e convenção

Romance e convenção: por José Roberto de Luna Filho, um ensaio sobre como as grandes obras têm lições inesgotáveis — e um critério para estabelecê-las como tais.

por José Roberto de Luna Filho

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Em literatura não há valoração objetiva. Não podemos mensurar um poema, dissecar um romance ou mesmo manipular um conto em laboratório. Isso não significa, porém, que tudo valha, tampouco que não possamos discutir quais critérios subjetivos são mais interessantes que outros. Afinal, a subjetividade pressupõe a inserção de um sujeito em uma cultura, nenhum homem é uma ilha, como ensinou John Donne.

Tendo isso em vista, apresento, neste texto, um critério que me parece bastante interessante para valorar os romances: isto é, para separar os que podemos chamar de  bons daqueles que podemos considerar ruins. Claro que esses termos não devem ser tomados em sentido universalista e abstrato, algo relacionado a um conceito seguro do que é belo. Não sabemos, nem saberemos nunca, a natureza do bem. Uso tais termos em sua acepção contingente e aberta. Por isso, caberá a você, leitor, dizer se lhe pareceu também uma boa proposta. Se lhe parecer coisa de pouca valia, tudo bem, é direito. Ao menos você terá refletido sobre a questão, e por isso considerarei que meu trabalho não foi em vão.

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Na escola aprendemos que há várias tradições literárias, cada uma com seus principais autores, estilos, características e contextos históricos. Essa cristalização é tão forte que se, por exemplo, um escritor do século XXI decidir retomar a estética de Flaubert, vamos chamá-lo de “neorrealista”. Se outro escritor retomar Gregório de Matos, vamos chamá-lo de “neobarroco”. Se um outro decidir retomar José de Alencar, vamos chamá-lo de anacrônico (ou neorromântico, para quem simpatize com o escritor cearense). Ou seja, temos em nossa mente bem cristalizadas as características gerais correspondentes às mais distintas estéticas.

Cada um desses movimentos literários teve sua influência na época, sendo contraposto ou superado por inovações estéticas que pareceram mais adequadas às mudanças sociais e históricas que sempre ocorrem. Porém, por mais que reconheçamos as sucessões formais que deram na modernidade, as quais melhor dialogam com os anseios contemporâneos, não paramos de ler vários escritores de um passado remoto. Livros como os de Dante, por exemplo, continuam a dizer algo para nós, mesmo havendo sido escrito em um período tão anterior e distinto ao nosso. Não é errado dizer, então, que coexistem duas visões indissociáveis na literatura: uma que valoriza o progresso e a inovação, pois as obras modernas não podem ignorar as mudanças sociais que exigem novas formas e temas; e uma que não esquece os mestres do passado, pois eles continuam sendo capazes de fornecer valiosos ensinamentos. Aliás, mesmo as teorias que visam à destruição de um suposto cânone literário ocidental e excludente não deixam de buscar no passado novos mestres: daí a revalorização de escritores como Maria Firmina Reis e Lima Barreto. Ou seja, convivemos, sem que isso seja um problema, com a procura por novas formas e com a contemplação dos feitos das obras antigas.

Quando olhamos de modo mais detido a esses movimentos literários do passado, conhecemos vários artistas que foram saudados em seu período por aderirem à estética da moda, mas que depois disso foram completamente esquecidos. Ou seja, em larga medida, a inovação pela inovação não basta: certas obras parecem ter algo a mais a dizer. Falemos do Romance de 1930. Gozaram de sucesso escritores como Aníbal Machado, Armando Fontes, Cyro dos Anjos, Octávio de Faria, Lúcia Miguel Pereira… Quantos deles são conhecidos pelo público moderno? Por outro lado, jamais esquecemos Jorge Amado e Graciliano Ramos.

Parece-me que existem dois tipos de romance: os que são verdadeiramente originais e os que, copiando os originais, criam uma convenção. A forma não se justifica a si mesma, os grandes escritores elaboram uma estética que é cheia de significados, que efetivamente rompe com a visão que temos do mundo que nos rodeia. Daí que podemos ler Os sofrimentos do jovem Werther e encontrar muito do estilo de um Iracema no que concerne ao trato da natureza e do amor idealizado. Mas, naquele caso, a descrição da natureza possui um significado filosófico mais profundo, pois aponta para a relação entre o mundo e a subjetividade. Quando Werther se encontra em harmonia consigo mesmo, as paisagens que o cercam são também bucólicas. Quando seu espírito se desconcerta, porém, as paisagens se tornam obscuras, violentas. Além disso, o amor de Werther não é um amor pela mulher idealizada apenas, pois seu desejo por Carlota é indissociável de sua personalidade heroica, que queria mudar e conquistar o mundo. Os piores romances românticos se resumem a uma involuntária paródia dos grandes romances. São estas obras menores que cristalizam um estilo, tornam-no uma convenção imitável. Os livros de Goethe, por sua vez, permanecem cheios de viço. Vejamos mais alguns exemplos.

Dom Quixote possui uma forma convencional em vários episódios que remetem certamente às novelas de cavalaria do período. Porém essas cenas convencionais, que parecem querer situar o leitor em um gênero conhecido, são marcadas por profunda ironia. Ironia que tem como alvo, antes de tudo, as próprias convenções literárias da época. O riso que proporciona Cervantes ecoa até os dias de hoje, pois ele não nos ofereceu uma resposta estética. Ofereceu, sim, a capacidade de rir, com certa melancolia, do descompasso que sentimos diante da realidade, a qual é sempre diferente ao que esperamos.

Balzac e Flaubert são conhecidos pela pintura tão fidedigna que fizeram da realidade. E por essa técnica de captura do real foram muito imitados e criticados. Mas é importante perceber que a técnica, nos romances desses escritores, não consiste em prática mecânica e desprovida de sentido. Nem mesmo é igual (não deveriam ser estilos iguais, já que se trata da mesma realidade?): no caso de Balzac, a descrição da vida burguesa do século XIX nos remete à mistura quase mística que há entre os homens e as coisas. Mais que para o conceito de reificação, aponta para a humanização das coisas. Daí a descrição tão marcante da pensão onde se passa a ação de O pai Goriot. Em Flaubert, a descrição da realidade já obedece a outro sentido. A riqueza de detalhes nos remete, paradoxalmente, à mediania e planitude que marca a vida no superficial mundo burguês. Só a arte é capaz de encantar essa realidade tão mesquinha. Ao fazê-lo, Flaubert iguala os sujeitos das mais distintas classes sociais em uma mesma mediocridade. Se isso é ruim para os que se creem superiores, é bom para os que são visto como inferiores, pois passam a ser vistos com maior complexidade e individualidade do que se espera. A estética desses escritores, então, vai muito além do que costumamos enxergar como “realidade”.

Para tratar de um exemplo brasileiro, pensemos em Rachel de Queiroz. Havendo iniciado sua carreira em uma ambiência cultural que favorecia o estilo de romance mais próximo à reportagem, foi capaz de recusar essas convenções e desafiar as fronteiras entre o social e o individual. Foi capaz de trazer à tona sujeitos que não faziam parte da gramática literária brasileira (e nesse sentido ela retoma o movimento realista), mas foi capaz de acrescentar a esse projeto a radical individualidade de suas personagens femininas, perdidas sempre entre o que se veem obrigadas a fazer e o que gostariam de fazer. Rachel foi capaz de perceber que o desconcerto entre mundo e sujeito é maior para as mulheres, que estão presas também a opressivas amarras culturais. Essas amarras são precisamente as convenções: isto é, aquilo que deve ser feito em determinada situação, independentemente das vontades individuais.

Muitos outros exemplos podem ser aqui explorados, mas creio que esses são suficientes para expor a minha ideia. Em suma, pretendo dizer que os grandes romances não criam técnicas e estilos estanques e desprovidos de sentido. Os grandes romances permitem ao leitor explorar seus inesgotáveis sentidos a cada página. Temos a impressão, ao ler as grandes obras, que não há sequer uma vírgula que seja desnecessária. Por isso, esses romances sempre têm algo a nos dizer, não importando o avanço do tempo. Às obras menores, resta a inércia epigônica.

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Posse de Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras, 1977

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