Rosa Montero e José Luís Peixoto: aproximações literárias

Ao confrontarmos as obras dos dois premiados escritores ibéricos, vemos pontos de contato e abordagens em que parecem responder um ao outro.

A jornalista, ensaísta e ficcionista espanhola Rosa Montero (1951) tem conquistado cada vez mais notoriedade. Em entrevistas como as que concedeu ao El País (23/3/2019) e ao Roda Viva (5/8/2024), entre outras tantas, é possível entender o sucesso de seus livros, entre os quais O perigo de estar lúcida, A ridícula ideia de nunca mais te ver, A boa sorte e Nós, Mulheres (todos publicados pela Todavia). Alguns deles se destacam nas redes e na imprensa entre “os melhores do ano”. De fato, a maneira de tratar questões comuns (e incomuns) à vida de todos é altamente original e necessária, permitindo ampliar a visão e a sensação dos fatos, nesse mundo de brain rot, onde já desde a infância só se procura, clicando, o que dá prazer mais fácil e mais imediato.

O mesmo pode-se dizer do lusitano José Luís Peixoto (1974), escritor, dramaturgo e poeta que tem publicado livros encantadores, festejado por seu humor todo particular que, muitas vezes, parece raiar o absurdo. Entre seus livros, muitos deles premiados, estão Nenhum olhar, Cemitério de pianos, Livro e Galveias.

Ao aproximarmos as obras desses dois escritores ibéricos, vemos pontos de contato e abordagens em que parecem responder um ao outro. Vejamos trechos de dois livros de crônicas representativos desse “diálogo”: O perigo de estar lúcida, de Montero, e Abraço, de Peixoto.

A coisa que logo impacta — além das capas intrigantes — é que ambos os livros trazem
a foto do autor/a a observar o leitor com olhar penetrante.

As observações, conclusões e digressões de cada um, “retiradas do armazém de memórias e de emoções”, se cravam como setas na percepção desse mesmo leitor, que se pergunta: “é mesmo, como é que nunca pensei nisto?”.

Tratando da imaginação “que é acionada sozinha,” as frases de O perigo de estar lúcida sucedem-se numa sequência em que às vezes a cabeça escreve por si só, maravilhosamente, às vezes, o coração:

Há peripécias que são narradas pelo subconsciente; A racionalidade do pensamento impõe um limite ao  conceito cósmico de uma pessoa  No momento em que eu tomo consciência perco o ritmo; A ideologia desgasta a ilusão; Nosso cérebro completa imaginariamente o que vê ; A obra é o melhor que somos? Nela cobrimos a experiência com palavras; A literatura é a prova que a vida não basta; A saída criativa tem sua origem num encontro precoce com o traumático? As pessoas menos criativas fixam demasiado sua atenção; A criatividade é uma viagem a outra dimensão. Os romances nascem do mesmo lugar do inconsciente de onde nascem os sonhos; Os romances são um delírio controlado; A vida é uma miragem de luz numa eternidade de escuridão.

Nesse mar de desconhecimentos, cada um consegue se agarrar ao salva-vidas que são certas memórias (e/ou convicções, que nascem de nós ou somos nós que nascemos delas?) que remontam à infância e/ou constelam sua vida interior. 

Vejamos algumas retiradas de Abraço (Record, 2024), livro de Peixoto:

Há tantos mundos quantas as maneiras de olhar; Querer aprender é como se já soubesse; Sim significa não, há palavras que significam seu absoluto contrário; Eu sei pouco sobre mim; Tu serás a memória repentina de um tempo; As pessoas são universos e formigas; Como escrever um texto literário : as ideias transformadas em memórias; As palavras são bonitas antes de seu significado; A vizinhança com a natureza contrabalança a artificialidade; Sei que tudo é definitivo e nada é eterno; Somos instantes diluídos em séculos de vontades e de destinos; Deixemos que as imagens se dissolvam dentro de nós; Há muito mais do que esperas naquilo que não esperas; As emoções moldam o subconsciente; Amar é um esforço intelectual ;É permitido renascer; Aquilo que desconhecemos é fascinante desde que consigamos ter noção do mistério de sua existência; Conhecer é desconhecer.

Comparando os ideários dos dois escritores, encontramos certas semelhanças ainda mais específicas. A ideia de “uma outra pessoa”, por exemplo:

Quem nunca desejou ser outro? — pergunta Rosa. Quem nunca desejou fugir do confinamento da própria vida?  E não porque não gostemos dessa vida, mas porque uma existência única, por maior e melhor que seja sempre será uma espécie de prisão (…) A ficção é uma viagem ao outro e esse é o trajeto mais fascinante que uma pessoa pode fazer (…) o que é ser outra pessoa que não você. Dali em diante, e durante quase duas décadas, a Outra foi uma presença à distância, um pontilhado irregular no tempo. Às vezes sumia por meses, ou mesmo anos inteiros; e de repente, eu recebia um presente ou dois no decorrer de poucas semanas.

E qual é a “resposta” de Peixoto a isso tudo? Uma resposta temperada com aquele humor já mencionado:

Em Paraty as pessoas trocam-se umas pelas outras. Passa uma mulher e troca-se pelo olhar de uma criança que brinca na praça. (…) Há vezes em que a outra pessoa é o eixo de tudo o que é possível conceber (…). Mas a outra pessoa não é apenas uma imagem. É um silêncio morno, monstro, a explodir significados que não somos capazes de entender (…) A voz dessa pessoa dissolve-se devagar na memória, pode durar anos. Nesse caso, a memória é como um poço. E há vezes em que a outra pessoa somos nós. Então, não sabemos nada, exatamente como em todas as outras vezes.

Outro exemplo: ambos contrariam a tendência hodierna (entre outras) ao “desapego”:

Diz Rosa:

Ela me mandava coisas muito diversas: um macaco de pelúcia, por exemplo; uma caixinha de laca pintada com motivos russos; uma pintura de um cachorro uivando para a lua; um papel com um esvoaçante e delicado dente de leão dentro. Objetos sem sentido, mas de que eu gostava.

E Peixoto:

Sou apegado aos objetos que me dão. Olho para eles e sinto a generosidade, vejo a melhor imagem da pessoa que mos ofereceu. Eu e meu carro pensávamos em assuntos diferentes. Quando o homem disse um número [preço de venda], como se me fizesse um favor, aceitei imediatamente. (…) passei a mão pela última vez sobre a cor desbotada do capô e essa foi a nossa maneira de nos despedirmos. 

Na verdade, o que é realmente estranho é ser normal; a normalidade não existe — diz Rosa, no começo do livro dela. E Peixoto responde, no final do livro dele:

O verdadeiro início acontece na convicção. As perguntas que se possam fazer à convicção têm sempre respostas imperfeitas. As convicções só existem quando nos transformamos nelas, somos a sua representação física (…) em qualquer dos casos faremos parte do universo. Desconhecer ainda mais o que julgamos conhecer é metade da tarefa, a outra metade — desconhecer o que já desconhecemos — está concluída.

Dando grandes voltas, os dois autores chegam à segunda verdade, a mais simples e a mais importante, que Jean Cocteau, lembrado por Peixoto, leu em La Belle et la Bête, escrita numa frase em latim, atrás da cadeira do monstro: Omnes monstra, quibus non est amor. Todos os homens são monstros quando não têm amor.

Aurora Fornoni Bernardini é escritora, tradutora e professora titular da USP no Departamento de Línguas Orientais e na pós-graduação no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Graduou-se em inglês (1959-1963) e em russo (1962-1966) pela USP, onde ainda concluiu seu mestrado (1970, sob orientação de Boris Schnaiderman) e doutorado (1973, sob orientação de Alfredo Bosi) sobre o futurismo russo e italiano, e sua livre-docência (1978) sobre Marina Tsvetáieva. Dedica-se também à pintura, tendo realizado exposições individuais e coletivas.

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