por Sergius Gonzaga
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No ano de 1962, ano em que o mundo quase assistiu ao deflagrar da III Guerra Mundial, em função da Crise dos Mísseis (EUA x URSS/Cuba), o lançamento de várias narrativas de autores desconhecidos, ou semidesconhecidos, todos procedentes da América Latina surpreendeu os pequenos círculos de iniciados que costumavam acompanhar a prosa de ficção contemporânea em língua espanhola. Mario Vargas Llosa ganhara com seu primeiro e excepcional romance — A cidade e os cachorros — o prestigioso prêmio Seix Barral, o mais importante da Espanha; Júlio Cortázar, que tinha atrás de si pelo menos dois memoráveis livros de contos (Bestiário, de 1951, e As armas secretas, de 1959) publicara uma pequena obra composta por breves quadros, frequentemente humorísticos — História de cronópios e famas —, em que criaturas fantasiosas, de natureza indefinida, vivem situações insólitas de percepção do cotidiano.
Ainda em 1962 — aquele ano de assombros — Gabriel García Márquez, então desconhecido do grande público, lançara o romance La mala hora (Veneno da madrugada) e o livro de contos Os funerais de Mamãe Grande. Neles, dava sequência a duas novelas anteriores: La hojarasca (A revoada, 1955) e Ninguém escreve ao coronel (1961). Todos os relatos integram um mesmo ciclo ficcional centrado em aldeias perdidas do interior da Colômbia, assoladas por calores equatoriais e dilúvios bíblicos, onde a constante guerra civil entre liberais e conservadores e o colapso do universo bananeiro, depois de um período de opulência, haviam deixado apenas ruínas e deterioro, transformando os protagonistas em espectros subjugados pela fatalidade e por inapagáveis lembranças do passado.
Qualquer pessoa que examinasse o pálido firmamento da ficção mundial perceberia a chuva de asteroides que começava a desabar sobre a terra Tão importante foi o ano para as letras latino-americanas que, meio século depois, a imprensa e o mundo intelectual de Espanha estabeleceram-no como o marco constituinte do boom e celebraram-no com festas, congressos e publicações, fixando assim o cinquentenário de um movimento aparentemente destituído de projeto coletivo, mas que vinha salvar o romance de sua morte anunciada.
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O novo romance histórico
Naquele mesmo ano, aparecera na Espanha um relato de alto calibre artístico, O Século das Luzes, do cubano Alejo Carpentier. Escritor já consolidado, embora pouco conhecido, publicara, em 1948, No reino deste mundo, uma obra-prima daquela tendência que, mais tarde, ele mesmo designaria como real-maravilhoso.
O Século das Luzes era o primeiro romance histórico dentro das coordenadas daquilo que viria a ser chamado de literatura latino-americana, tanto pela globalização decorrente da pluralidade de eixos espaciais — os acontecimentos transcorrem em vários locais: Cuba, França, Guadalupe, Guiana e Espanha —, quanto por sua temática: o sentido da Revolução e da História, em um enfoque que abrange a Europa e a América Latina, transcendendo a qualquer visão provinciana e nacionalista do assunto. Além disso, o texto ergue-se como monumento de linguagem, uma linguagem quase barroca feita de contorções semânticas e sintáticas, derramando-se em efusão incontrolável de palavras.
Igualmente em 1962 viera à luz A Morte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes — outra obra prima inconteste do gênero. Diferentemente de Carpentier, Fuentes colocara a historicidade concreta (no caso, a Revolução Mexicana) mais como pano de fundo, onde se movimenta o protagonista como encarnação individual e contraditória dos desvios, traições e putrescência moral da elite revolucionária que agora comandava o país. A par disso, o escritor mexicano expunha técnica de luxuosa criatividade (três pessoas narrativas correspondentes às três fases da vida de Artemio Cruz) e um estilo complexo e, por vezes, de grande intensidade lírica.
Ao contrário das narrativas deste subgênero escritas no século XIX e na primeira metade do século XX, o novo romance histórico, a partir de O Século das Luzes e A Morte de Artemio Cruz mostraria o processo social como um fenômeno impossível de ser racionalizado em toda a sua extensão, à medida em que se apresenta repleto de dubiedades, oscilações e pontos de vista divergentes que bloqueiam o acesso à uma verdade absoluta. Fora isso, os ficcionistas estabeleceriam, no campo da especificidade literária, um uso de arriscadas engrenagens técnicas e um anseio de estilo até então desconhecidos. Nas décadas seguintes, várias obras de elevada maestria dialogariam, de uma forma ou outra com estes romances primordiais.[1]
Excetuando-se a questão do passado mais ou menos remoto, as demais especificações que delimitam o romance histórico caberiam perfeitamente em outro subgênero, quase nunca aludido, e que se distinguiria do anterior apenas por sua proximidade temporal. São obras que lidam com as apavorantes instâncias do poder no continente, descortinando as relações sociais que dele emanam, relações conturbadas e violentas, em que se sobressaem tanto o arbítrio dos tiranos e a implacabilidade do sistema, quanto o idealismo abstrato, o sectarismo, a corrupção ou o simples desencanto dos revolucionários.
A exemplo do romance histórico, toda a vida pessoal adquire uma dimensão pública. Este entrelaçamento entre representatividade e singularidade impede o sujeito de omitir-se, de manter-se neutro face aos acontecimentos, e assim ele é levado a escolher e a participar em uma zona confusa, cheia de riscos e trevas. Normalmente, o desfecho dessas obras dá-se sob o signo da derrota do indivíduo, despedaçado por engrenagens impiedosas.
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O romance político
Tais relatos, quando remetidos para a vida presente ou para o passado próximo dos escritores, comporiam o chamado romance político, pois o contexto em que os mesmos produziram este tipo de fabulação era largamente dilacerado pelas ideologias em choque. Apesar de tudo, em nenhuma das grandes narrativas que giram em torno da órbita política, do maniqueísmo ou do parti pris ideológico destroem a amplitude de perspectivas e a face ambígua da existência e da linguagem.[2]
Portanto, em um único ano, Carpentier e Fuentes inauguravam um modelo ficcional cuja proposta era interrogar os fundamentos históricos das grandes mudanças sociais, por em xeque a coerência ideológica dos protagonistas no fluxo impetuoso dos eventos, operar com linguagens transfiguradas e problematizar a impossibilidade de configuração do real em uma verdade única e inflexível.
Assistia-se a um fenômeno inesperado: pela primeira vez, no século XX, fora dos grandes centros metropolitanos do planeta, constituía-se uma vanguarda apta a processar as inovações formais modernistas, estender o conceito de realismo a limites vastíssimos, produzir narrativas polifônicas, caleidoscópicas, liberadas da tirania cronológica e de um exclusivo ponto de vista sobre a realidade, além de serem timbradas por acentos épicos, poéticos e míticos que já não integravam a natureza do romance europeu.
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A revolução arguida
Alejo Carpentier intentou, em O Século das Luzes, construir um desses edifícios ficcionais que representam determinada época do passado naquilo que ela tem de efetivamente substancial, expondo a confluência entre as convulsões sociais e os destinos particulares. O esforço criativo do escritor cubano redundou em um romance histórico sobre os estertores do século XVIII, quando as ideias revolucionárias desencadeavam acontecimentos grandiosos por toda a parte, inclusive nos países da América Latina, e seu impacto na vida dos indivíduos tornava-se irreversível.
A trama centra-se na profunda amizade de três jovens órfãos, os irmãos, Carlos e Sofia, e o primo, Esteban, herdeiros de um próspero negócio comercial em Havana, e que se divertem com a leitura dos proibidos autores iluministas. A chegada em sua casa de Víctor Hugues, um comerciante marselhês estabelecido em Porto Príncipe e senhor de fascinante retórica revolucionária, que vai arrastá-los à ação política.
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“As pessoas em Cuba estão como que adormecidas, inertes, vivendo em um mundo intemporal, à margem de tudo, suspenso entre o tabaco e o açúcar”[3] —, diz Hugues, ao mesmo tempo que traça panoramas utópicos da “Nova Era” que já se anuncia no horizonte.
Beijados pelo arcanjo da Revolução, Sofia e o primo Esteban percebem a estreiteza de seu universo doméstico e a necessidade de estar à altura dos grandes acontecimentos que se desenham. “Esteban, de imediato tinha a impressão de haver vivido como um cego, fora das mais apaixonantes realidades”, enquanto Sofia “sentia-se distante, arrancada de si mesmo, como que situada no umbral de uma época de transformações”.
Hugues propicia aos adolescentes não apenas a conscientização política, mas a passagem à vida adulta no sentido afetivo e sexual. A Esteban revela a existência da zona de prostituição em Havana. Com Sofia estabelece as primícias de uma relação física na noite em que a capital cubana fora atingida por terrível ciclone. Em um romance no qual os símbolos adquirem contínua importância, o ciclone parece traduzir a reviravolta ocorrida na alma dos jovens e anunciar o torvelinhos desses tempos “dirigidos para o universal e o desmedido”.
Fundem-se, então, em um só movimento narrativo, o ardor juvenil, o desejo de aventuras, a descoberta erótica, a ânsia pelo mundo, a fé incondicional na ideologia, a vontade de poder e o cataclismo histórico que é a Revolução Francesa. Victor Hugues participa do movimento revolucionário de modo lateral, pois perseguido politicamente em Havana, homizia-se, junto com Esteban, em um navio amigo que acaba rumando para a França.
Hugues não tarda a ganhar a confiança dos jacobinos, sendo ungido à condição de promotor público. Exerce seu ofício com tamanha impiedade que consegue a instalação de uma guilhotina no próprio prédio do tribunal para que os inimigos do povo fossem justiçados logo após a leitura das sentenças. Por sua fidelidade aos dirigentes jacobinos, é nomeado comissário (interventor) em Guadalupe.
A pedido de seu antigo mestre, o jovem Esteban, que fazia trabalho político na fronteira com a Espanha, acompanha-o nesta viagem de retorno ao continente americano. Na proa do navio, a guilhotina brilha junto a uma prensa que vai levar aos habitantes da ilha as boas novas da libertação dos escravos e da instauração de princípios mais fraternos entre os homens.
Endurecido pela ideologia e revelando insuspeito talento militar, Hugues enfrenta e derrota os ingleses que haviam estabelecido uma ponte na colônia francesa. De imediato, impõe sem qualquer condescendência, o “Grande Terror”. Enquanto o sangue jorra aos borbotões, Esteban participa de expedições corsárias que se apoderam das cargas de embarcações de outras nacionalidades, em um processo de pirataria que rapidamente converte Guadalupe na mais próspera entre todas as províncias europeias da região. Diante de tanta riqueza, Victor Hugues atenua seus escrúpulos revolucionários e começa a se corromper, levando Estevão a abandoná-lo e retornar à Cuba.
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Traição e desencanto
Mais do que um romance crítico sobre os extravios ou as conquistas da práxis revolucionária, O Século das Luzes é um texto de complexa dialética, em que a História ocupa lugar exponencial, submetida a uma atordoante rotação e captada em suas faces contraditórias, mediante um sistema narrativo que vai do mais minucioso realismo à pura alegoria. A História é objeto de culto de três dos quatro protagonistas que vivem as ideias de transformação social com uma intensidade quase doentia, entregando-se a ações tão imprevistas e desintegradoras de seu idealismo febril, que acabarão sendo conduzidos, inexoravelmente, ao cinismo ou ao martírio. Em meio ao fragor dos acontecimentos, o largo alento épico, que até então envolvera os seus atos, principia a se deteriorar e, pouco a pouco, metamorfoseia-se em tragédia.
Esteban é o sonhador muito próximo da utopia iluminista: crê em uma humanidade redimida de seus vícios, de sua barbárie e das forças irracionais que a encarceram nas trevas. Contudo, a Revolução Francesa, com seus círculos sanguinolentos, suas massas ferozes, suas lideranças impiedosas, tão tirânicas quanto as do Ancien Régime, e que acabam tendendo à hipocrisia política e, em vários casos, à corrupção, levam-no à desorientação e, logo depois, ao mais completo ceticismo:
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“Esta vez a revolução fracassou. Quem sabe, a próxima será melhor. Porém, quando ela irromper, se quiserem me agarrar, terão que me procurar com lanternas ao meio-dia. Devemos nos cuidar das palavras demasiadamente belas; dos Mundos Melhores criados pelas palavras. Nossa época sucumbe por um excesso de palavras.”
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Mas se ele, o intelectual hesitante, é a consciência crítica da Revolução, Victor Hugues representa o seu oposto, o sujeito que se ajusta às instâncias do novo poder, nem que para isso precise abandonar os ideais que até ali o norteavam. Carismático, arrojado, fanático se necessário, participa das alucinantes execuções promovidas pelos jacobinos e consegue sobreviver a todos os expurgos, pois sempre parece vislumbrar, no enfrentamento mortal das correntes revolucionárias, aquela que vai triunfar.
Depois de curto ostracismo durante o período girondino, quando perdera o comando de Guadalupe, cai nas graças de Bonaparte que o nomeia agente do Diretório em Caiena. Seu realismo prático é absoluto. “Revolução não se discute, se faz.” — diz a Esteban quando este o questiona a respeito de suas ações, já que o jovem não compreendia como o homem que lhe despertara a paixão pelos cenários idílicos do porvir pudesse examinar a realidade com pragmatismo tão feroz.
A traição final de Victor Hugues ao ideário iluminista dá-se quando, por imperativo político e econômico, ele restabelece a escravidão na Guiana, ordenando que os negros fujões fossem guilhotinados. Culmina assim sua jornada de decomposição ética, virara um triste simulacro daquilo que fora no passado. No entanto, não abandona o discurso messiânica, bradando que as alterações no curso da História conduziam-na inevitavelmente (apesar das idas e vidas dos acontecimentos) à redenção dos povos.
A exemplo de Esteban, Sofia também é uma radical utópica, mas não desfrutara a oportunidade de viver no centro desencadeador daquela era de vertigens. Impotente, acompanha vagamente as peripécias dos revoltosos e dos novos donos do mundo, o coração dividido entre a rebeldia e a conformidade em relação à ordem patriarcal. Por um lado, ousara entregar secretamente sua virgindade a Victor Hugues; por outro, adaptara-se ao cotidiano burguês ao casar-se com um jovem liberal.
É neste momento que Esteban — decepcionado com o processo revolucionário — retorna à Havana e tenta convencê-la dos horrores gerados em nome da “Cidade do Futuro”, porém Sofia o contesta duramente, lembrando-lhe que as grandes conquistas humanas só eram obtidas com dor e sacrifício, que os erros e excessos seriam corrigidos mais adiante e que era preciso ter fé nas ideias de mudança.
Meses mais tarde, após breve enfermidade, seu marido morre e ela, de imediato, foge em um cargueiro que estava de partida para Caiena. Quer encontrar o sentido da vida, tanto na dimensão subjetiva (concretizar o amor que nutre por Victor Hugues), quanto na objetiva (realizar sua utopia igualitária). Mantém-se desta forma na urdidura do romance a permanente conexão entre a camada sentimental e os relevantes fatos históricos do período. Com isso, os protagonistas não se tornam entes abstratos, a expor versões sobre o significado da Revolução e do futuro, mas surgem singularizados por suas aventuras pessoais e conflitos íntimos.
Sofria restabelece o vínculo amoroso com Hughes, mas ao perceber seu embrutecimento e seu intolerável realismo político, abandona-o, não sem antes traí-lo com um jovem oficial francês. “Voltava a ser dona do próprio corpo, fechando com um ato voluntário, o ciclo de uma larga alienação.” Peter Elmore interpretou assim este gesto de Sofia:
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“A ruptura final com Victor Hugues entranha também uma liberação de toda tutela patriarcal, de toda a sujeição a uma autoridade masculina. […] O ritual erótico equivale quase literalmente a uma declaração de independência. […] O que em outra novela seria um ‘affaire’ de alcova, se converte dentro do politizado universo de O século das Luzes em metáfora do contrato social e símbolo da revolução.[4]
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No final da narrativa, um cubano de aparência burguesa (Carlos) vasculha uma casa em Madrid e com alguns criados recompõe os últimos momentos de Sofia e Esteban, que ali tinham vivido juntos, aparentemente como irmãos e não como amantes. O primo revolucionário fora preso em Havana, enviado para uma prisão na capital espanhola, de onde Sofia conseguira resgatá-lo. Durante o levante popular madrilenho contra Napoleão (1808), ela conseguira induzi-lo à última ação política: ambos haviam se misturado às massas insurrectas nas ruas da cidade e tinham desaparecido, provavelmente fuzilados, a exemplo, das cenas lancinantes que Goya registrara em suas famosas telas, Dois de maio e Três de maio.
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Romance de superior fatura, O século das Luzes, apresenta uma ressonância épica que acaba submetida ao domínio do trágico, por desvelar a impotência dos indivíduos diante de forças superiores e incontroláveis, compondo uma espécie de crônica da errância e descaminhos de três criaturas que mergulharam no caudal histórico e foram por ele levadas de roldão. É também um painel abrangente de anos turbulentos (1791-1808), um relato de paixões transgressoras, uma discussão (secundária) sobre os vínculos entre as metrópoles e as colônias e, sobretudo, um questionamento da ideia de Revolução.
Trata-se de obra que permite várias abordagens, muitas vezes conflituosas entre si, e que põem em relevo a índole polissêmica da narrativa. Decisiva nessa impressão de variedade e ambiguidade é a postura do narrador que não emite juízos sobre as vivências e os dilemas morais e ideológicos dos personagens, conseguindo com isso apresentá-los de maneira isenta e verossímil.
É interessante lembrar que várias análises apontam para o fato de que a obra contem uma visível tendência alegórica. Isso não quer dizer que as circunstâncias objetivas da Revolução Francesa não tenham sido apresentadas com rigor, e sim que o romancista sutilmente transforma as biografias individuais e a experiência social em arquétipos de uma situação universal. Toda a revolução é universalista — pensa Carpentier — e, em consequência, ela pode ser tomada como emblema de certas ações humanas que ultrapassam a sua época.[5]
A posição do romancista explica a ausência de alusões à datas e a eventos históricos relevantes nas primeiras sessenta páginas do texto, sem contar a própria página introdutória em que a guilhotina (não designada como tal) refulge na proa do navio de Victor Hugues com sua dupla simbologia: a da imposição de uma ordem mais progressista e a do horror das matanças promovidas pelo Estado. Esta mesma perspectiva ambígua alimenta toda a narrativa.
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Um mundo movediço
Soma de estrépito, fúria e ideais decompostos pela força corrosiva da realidade, a Revolução se parte ao meio: fruto dourado da utopia ou simples manifestação do terror totalitário? Entre a crítica acerba de Esteban, a crença ardente de Sofia e o cinismo prático de Victor Hugues, o leitor só encontra perplexidades. Ou seja, entre as promessas da História e a sua realização há abismos e impasses, mas nenhuma palavra conclusiva a respeito do significado das ações humanas realizadas em nome da aurora dos povos.
É surpreendente que Alejo Carpentier — erigido em mito literário por Fidel Castro e pelos funcionários culturais do nascente regime — não expressasse um elogio aberto à natureza transformadora dos processos revolucionários. Suas dúvidas sobre a pureza incondicional dos militantes, sobre o princípio dos sectários de que os fins justificam os meios e sobre a moralidade dos banhos de sangue percorrem subterraneamente O Século das Luzes. E, ao que tudo indica, demonstram a existência de traços de ceticismo em relação a grandiloquente retórica da esquerda mundial que via na nova ordem cubana, uma luz incandescente projetada na esmaecida ideia de Revolução.
Contudo, há outra análise, tão viável como as anteriores: a cegueira e o desconcerto dos personagens envolvidos no drama revolucionário seriam inerentes a primeira etapa vulcânica de mudanças, e que, apenas à distância, muito além de seu próprio turbilhão, a História revelaria algum sentido oculto.[6]
Sob este ângulo, a figura-chave para a decifração do texto passaria a ser Carlos, o irmão de Sofia que, embora compartilhando do mesmo projeto, nele não atua e, portanto, não conhece a dolorosa travessia dos sonhos ao pesadelo. A própria trama do romance abre e fecha com sua presença determinante: em ambas as situações é ele que organiza o caos produzido pela morte do pai e, depois, pelo desaparecimento de Esteban e Sofia.
O pai, um comerciante espanhol, parece tipificar a velha oligarquia metropolitana; já os dois primos são a face paradoxal de uma militância vanguardista que acaba engolfada pela destruição que ela mesma provocara. Carlos ultrapassa-os, deixando para trás tanto o velho sistema colonial quanto o extremismo igualitário, tornando-se um abonado burguês liberal, um “criollo”, um desses homens que, nos anos posteriores, participariam dos levantes independentistas da América hispânica. Ou seja, a Revolução, apesar de sua carga de terror, sofrimentos e injustiças, de alguma forma arremessaria a História para a frente.
Carlos Fuentes nega a intenção alegórica da narrativa de Carpentier, pois para ele
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“cada revolução é irreproduzível, mas reconhece que há no texto uma simbologia que lhe empresta dimensão equívoca, gerando significados labirínticos. Também celebra os recursos experimentais que permitem ao autor cubano “propor, ao mesmo tempo, verdades antagônicas e uma visão realmente dialética da vida. Apenas a linguagem da imaginação é capaz de romper essa fatalidade, liberando os espaços simultâneos do real”.[7]
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A abertura imaginativa, percebida por Fuentes, tem seu fundamento na consecução textual deste romance, isto é, em sua inventividade técnica, que expande o número de perspectivas sobre a natureza do movimento revolucionário. Por conseguinte, O Século das Luzes apresenta alguns procedimentos formais inovadores que, muitas vezes, se interpõem entre o texto e o leitor, exigindo deste uma participação ativa para compreendê-lo em toda a sua complexidade.
Carpentier estava consciente de que a validade universal de seu relato dependia de uma linguagem própria e de uma maneira peculiar de composição. Para isso, montou uma estrutura cujos alicerces eram os do romance do século XIX, mas modificada por vastas descrições, monólogos joyceanos, contínuos efeitos pictóricos e teatrais, registros de viva erudição em áreas diversas (ocultismo, arte náutica, paisagem marinha, filosofia, pintura etc.), uso preponderante dos estilos indireto e indireto livre, eventuais mudanças de vozes narrativas, de visões divergentes em torno dos motivos do texto; e um suporte verbal esmerado, frequentemente sentencioso e, às vezes, preciosista.
Em decorrência da perícia da orquestração formal e da reivindicação da própria escrita como suporte determinante de sua constituição, O Século das Luzes, desde que foi lançado, tornou-se um dos paradigmas da nova narrativa latino-americana e um dos grandes romances históricos da literatura mundial.
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Notas:
[1] Eu, o Supremo (1974), de Augusto Roa Bastos; O outono do patriarca (romance histórico-mítico, 1975) e O general e seu labirinto (19…), de Gabriel García Márquez; A guerra do fim do mundo (1981), O paraíso Sonho do celta (2010), de Mario Vargas Llosa. Tampouco Carlos Fuentes deixaria de debruçar-se outra vez sobre a temporalidade mexicana, em obras de complicada simbologia, a exemplo de Terra Nostra (1975), ou de um realismo mais direto como em Gringo velho (1985), e em A campanha (1990), que envolve um périplo do protagonista por países hispano-americanos, na época da Independência. E o próprio Carpentier voltaria à máquina do tempo para escrever O recurso do método (1974), sobre um ditador latino-americano que, no início do século XX, vive metade do ano em Paris, fascinado por sua paisagem cultural e social da cidade-luz, e a outra metade em seu país de origem, onde se ocupa em prender, torturar e a executar seus inimigos.
[2] Neste subgênero poderíamos destacar: Conversa na Catedral (1969), História de Mayta (1984), Quem matou Palomino Molero (1986) e A festa do bode (2000) e o recente Tempos ásperos, de Vargas Llosa; O livro de Manuel (1973), de Julio Cortázar; Graças pelo fogo (1966); de Mario Benedetti; Consagração da primavera, de Alejo Carpentier; e Cristóbal Nonato(1985), Años con Laura Díaz (1999), La silla del Águilla (2003) e Cristóvan Nonato Carlos Fuentes.
[3] Carpentier, Alejo. El siglo de las Luces. Santiago do Chile, Editorial Orbe, 1972. (Todas as citações foram extraídas desta edição)
[4] Elmore, Peter. La fabrica de la memoria. México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 1997.
[5] Em entrevista a Claude Fell sobre o romance, Alejo Carpentier declarou: “Os personagens são sempre atuais, suas preocupações são as mesmas que as de nossos dias. Eu penso que o homem tem um comportamento eterno e único em meio de circunstâncias cambiantes.”
[6] No fim de sua vida, Carpentier produziria um fracasso relato laudatório da Revolução Cubana (A consagração da primavera), mas o ponto de vista unívoco e a tendência verborrágica diminuem brutalmente a eficácia estética do texto.
[7] Fuentes, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. México, D.F., Editorial Joaquín Mortiz, 1969.
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