por André Chermont de Lima
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“Júlio César” é a melhor peça “romana” de Shakespeare. Embora escrita relativamente cedo, antes dos grandes monumentos como Hamlet ou Macbeth e antes dos outros dramas ambientados no mundo clássico (à exceção da sanguinolenta “Titus Andronicus”), já revela o autor no auge da sua maturidade e inspiração. O texto, como sempre, nos engole, conquista e maravilha:
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“Banhem as mãos.
Em quantos séculos vindouros
Será reencenado nosso grande feito
Em línguas do futuro e em terras por nascer!”
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Ou:
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“Soubesse um pobre humano
O fim do dia, antes que o dia acabe!
Mas basta que este dia chegue ao fim,
Para que o fim saibamos.
À batalha!”[1]
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Por trás desses milagres, porém, “Júlio César” dá ao espectador (ou ao leitor, o que é mais provável nestes tempos de teatros fechados) certa sensação de superficialidade. Se fugirmos um pouco à sedução dos diálogos e nos ativermos ao enredo e à construção psicológica dos personagens, a impressão é a de que falta alguma coisa — em especial no crescendo dos atos primeiro e segundo, que conduz, no terceiro, ao famoso assassinato no interior do Senado, aos pés da estátua de Pompeu.
A peça pode ser resumida em poucas linhas: Vencedor da guerra civil contra seu rival Pompeu, César retorna a Roma. Circulam rumores de que será coroado rei antes de partir em campanha contra o Império Parta. Assustado com a iminente queda da República, um pequeno grupo de senadores e patrícios, liderado pelo senador Caius Cassius, planeja assassiná-lo. Cassius logra convencer o jovem Brutus, protegido de César, a juntar-se à conspiração. O ditador, em visita ao Senado, é apunhalado e morto. Diante da população atônita, Brutus faz um discurso no Capitólio expondo os motivos que o levaram ao ato extremo. Marco Antônio, homem de confiança de César, rebate da tribuna, acusando o grupo de assassinar o grande líder sem justificativa, movido pela ambição e pela inveja. Revela-se que César determinara, em seu testamento, que parte de sua fortuna fosse distribuída ao povo, fato que sela o destino dos inconfidentes. Hostilizados pela plebe, Brutus e Cassius fogem da cidade com suas legiões e são perseguidos por Marco Antônio e Otávio, sobrinho-neto de César, os novos líderes de Roma. Derrotados na batalha de Filipo, os conspiradores preferem matar-se a serem capturados.
Quase todas as peças de Shakespeare ambientadas na antiguidade clássica — além de “Julio César”, “Antônio e Cleópatra”, “Coriolano” e, parcialmente, “Timon de Atenas” — derivam da leitura livre que fez das “Vidas Paralelas” de Plutarco,[2] coleção de 50 textos biográficos de grandes personalidades do mundo greco-romano escrita ao longo de vários anos entre os séculos I e II d.C. — de Rômulo a Cícero, de Teseu a Alexandre, sempre em pares, um romano e um grego. Os textos são factuais, objetivos, raramente mergulham em reflexões sobre os legados dos “biografados” (com o perdão pelo uso contemporâneo do termo). Como observa Carpeaux, Plutarco é um grande artista da narração, e foi graças a ele que muitas personalidades históricas pré-cristãs se transformaram em figuras “reais” no imaginário ocidental. Apesar da objetividade, o propósito da organização dos personagens em pares é justamente o de compará-los, buscando, talvez, a eleição do preferido, do exemplar, às vezes do exemplo em face do contraexemplo, já que nenhum grande homem é virtuoso todo o tempo – e alguns, raramente. Segundo o historiador François Hartog, editor e comentarista de recente edição francesa da obra,[3] o objetivo das “Vidas” nunca foi o de “contar histórias do passado”, mas de refletir e ajudar o leitor a viver em seu próprio tempo: “não se trata de história, entendida como o conhecimento desinteressado do passado, mas de filosofia moral. Elas [as vidas] são tanto reflexão sobre como preparação à ação. Plutarco definia a filosofia como uma arte de viver”. Lembremos que o autor jamais escreveu qualquer tipo de introdução ou comentário geral às “Vidas”; o exercício de reflexão vem da leitura dos relatos, e das lições advindas dos fatos heroicos (ou anti-heroicos) neles contidos. “Quanto melhor ele [Plutarco] dominava a biografia”, continua Hartog, “mais ela se tornava filosófica, mais e melhor ele aprendia a conjugar a narrativa de uma vida com a inspiração filosófica do que escrevia, fazendo nascer da (simples) narrativa dos fatos o desejo de imitação [por parte do leitor], sem a digressão ou a intermediação de um comentário”.[4]
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É nesse contexto livre, amplo e profundamente subjetivo que se deve entender a leitura de Shakespeare e, também, a popularidade das “Vidas” na era cristã. Plutarco inspirou tanto autores quanto estadistas: Montaigne, Racine, Rousseau, Voltaire, Schiller; Napoleão, diz-se, não largava o seu volume durante as campanhas, assim como não largava o “Príncipe”. Não é preciso ir muito a fundo para descobrir o motivo, e César e Alexandre, postos em dupla, devem ter sido grande fonte de inspiração para o general-tornado-imperador.
A gigantesca importância histórica de César justificou o surgimento de grande número de biografias. Começaram com os “Comentários”, de sua própria autoria, multiplicando-se ao longo do período romano — Plutarco, Suetônio, Cassius Dio — até as centenas, talvez milhares de obras a ele dedicadas disponíveis hoje. Tal quantidade de fontes, diretas e indiretas, torna naturalmente impossível a ausência de discrepâncias factuais, que começaram a surgir logo após a morte de César. Na verdade, a morte de César foi talvez o episódio de maior discussão em torno de sua figura, tanto pelas múltiplas versões circunstanciais quanto pelas causas. As celebérrimas últimas palavras podem ou não ter sido pronunciadas: Plutarco não as menciona; em sua versão, a meu ver muito mais tocante, César tentava se defender dos golpes dos agressores até o momento em que, vendo Brutus com “a espada desembainhada”, “cobriu a cabeça com sua toga e se abandonou”. Foi Suetônio quem aparentemente sugeriu “Tu também, meu filho?”, em grego, ao passo que Shakespeare herdou a tradição posterior um pouco modificada em latim, “Et tu, Brute?. Ainda agrega, como suas últimas palavras, em terceira pessoa: “Então, desaba, César!”
As razões para o assassinato vão além dos detalhes curiosos. Elas tocam a essência do que foi e do que significou César para a posteridade. O que proponho neste ensaio não é tratar de fatos historicamente comprovados, porque nem o antigo biógrafo grego e muito menos o bardo são fontes fidedignas; basta lembrar que o fantasma do ditador, que aparece para Brutus no último ato da peça, é tomado das “Vidas Paralelas” — Plutarco, aliás, não é nada econômico nas intervenções sobrenaturais em seu relato. Os “idos” ou meados de março, quando morreu César, era um período que provocava particular apreensão entre os romanos, anualmente acossados pelas ondas de presságios revelados por adivinhos. Era a época do ano em que pitonisas e cidadãos comuns viam cometas no céu, animais de sacrifício sem os órgãos internos, o sol escurecer e esfriar etc. Proponho, assim, fugir da história e entrar no espírito das “Vidas”, o espírito da reflexão em vista da ação, o espírito da “filosofia moral”. Decerto o historiador moderno terá muito a agregar em outros exercícios, mas por ora bastam Shakespeare e sua fonte clássica. Queremos tratá-los como fictícios (porque ler Plutarco também deixa esse sabor, como ressalta Carpeaux), como autores clássicos, e extrair de seus textos, fiéis ou não à realidade, as nossas lições. Não são os Evangelhos “reais” o bastante, ainda que o agnóstico possa levantar todas as dúvidas possíveis sobre sua veracidade? Ao final, pouco importa como os lemos.
Voltemos a Shakespeare. O que leva Brutus e Cassius, os dois líderes da conspiração, a tramarem o crime? A “vigília” de Brutus em seu jardim, de madrugada (espécie de Jesus em Guetsêmane, recebendo os apóstolos, pedindo para o criado ficar acordado — só que um Jesus ao inverso, tornando-se Judas), contorcido de dúvidas e hesitação, explica pouco mais que isso: a dúvida e a hesitação estão lá, em carne viva, mas os motivos são débeis. Um pouco antes, Brutus interpela Cassius: “A que mar de perigos me conduzes / Pedindo que vasculhe a própria alma / Buscando o que lá dentro não se encontra?” (ato 1, cena 2). Porque matar o homem que lhe foi praticamente pai adotivo, objeto de amor filial e ilimitada admiração (“Pois Bruto… era o anjo de César”, lamenta Antônio),[5] não pode ser ato justificável apenas pela ambição de repente desvelada, ou pelo poder de convencimento de Cassius — como se Brutus, tão próximo a César, não conhecesse sua natureza; e como se César jamais tivesse sido abertamente ambicioso.
Eis, apesar de tudo, o motivo exposto por Brutus no famoso duelo retórico travado com Marco Antônio:
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“Porque César foi meu amigo, eu o choro;
porque ele foi venturoso, eu me alegro;
porque ele foi valente, eu o respeito;
mas porque ele foi ambicioso, eu o matei.
Há lágrimas por sua amizade;
Alegria por sua fortuna; respeito por sua valentia;
E morte por sua ambição”.
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(Ato 3, Cena 2)
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Segundo Plutarco, os sinais da ambição desmesurada começaram cedo, numa idade em que normalmente não se via tanto talento em adular; “o primeiro a adivinhar a habilidade que se ocultava sob a humanidade e a amabilidade de seu caráter foi Cícero: ele dizia que em todas as realizações e em todos os atos políticos de César, percebia intenções tirânicas”.[6] Orador brilhante e sempre disposto a ações demagógicas para assegurar o apoio do povo — apoio que, sabia ele, seria importante tanto para seus desígnios futuros como para blindar-se dos inimigos no presente —, foi no entanto nas conquistas militares que expôs como nunca os sonhos de grandeza: rumo à Espanha, de passagem por um lugar ermo e miserável, disse aos seus companheiros “prefiro ser o primeiro aqui que o segundo em Roma”; teria ido às lágrimas ao ler que Alexandre já reinava sobre multidões numa idade em que ele, César, não havia “feito nada de impactante”. Nomeado Governador da Gália, logrou imunidade contra tentativas de processá-lo por malfeitos durante seu primeiro Consulado; a longa e sangrenta campanha de conquista da atual França[7] foi empreendida com claros intuitos de prestígio político e benefícios materiais. Escreve Plutarco que ele e seus soldados “enriqueceram graças a suas campanhas”, e que seus oficiais, sobretudo jovens de linhagem nobre, se incorporavam às expedições com a “esperança de viver no luxo e de enriquecer”. Longe dos olhos dos romanos, os exércitos o saudavam como “imperador” — título apenas honorífico, já que Roma era uma república. A glória, individual e coletiva, explicaria a discutível utilidade de uma guerra tão dispendiosa contra uma vasta região em parte considerada aliada, em parte ocupada por bárbaros desorganizados (que só se reuniram sob o comando de Vercingetorix diante da brutalidade romana) — sem mencionar as supérfluas e malogradas incursões à Germânia e à Bretanha (Inglaterra), que não renderam nada além de mortos, gastos e o feito simbólico de estender o poder de Roma para além do mundo conhecido. Plutarco ainda arrisca a tese de que César viu na conquista da Gália a oportunidade de superar Pompeu, o glorioso general que fora durante tanto tempo seu modelo, protetor e rival.
A volta da Gália dá início a uma nova fase na trajetória de César, a da consolidação de seu poder. Aqui sua vida adquire contornos de romance, quase super-humanos: persegue e derrota Pompeu na Grécia, alia-se a Cleópatra no Egito em meio a uma terrível guerra fratricida, empreende missões militares ao Oriente Médio, Ásia Menor, África e Espanha; alterna tantas viagens com passagens por Roma, assegurando em cada uma delas a dominação sobre a caótica vida política da capital. É nomeado três vezes ditador e outras tantas cônsul: ao contrário do sentido moderno do termo, a ditadura era cargo oficial previsto em lei, com prazo de duração determinado. As atribuições, no entanto, incluíam dispensa do Senado para propor e aprovar leis e, na prática, abriam oportunidades, ainda que temporárias, para a autocracia. Quando apontaram-no ditador pela segunda vez, foi por dez anos; na terceira vez, para sempre. Escreve Plutarco: “Os Romanos se curvaram ante a Fortuna de César e aceitaram seu jugo. Considerando que a monarquia [ou seja, a ditadura] lhes permitiria crescer, após as guerras civis e as desgraças por elas ocasionadas, nomearam-no ditador perpétuo. Seria reconhecê-lo abertamente como tirano, uma vez que seu poder absoluto, que já não era submetido a qualquer controle, se tornava perpétuo”.
Curiosamente, a ditadura perpétua não foi a gota d’água, mas o passo seguinte, como atesta o diálogo de Brutus e Cassius na segunda cena do Ato 1:
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“B: …eu receio
Que o povo escolha César como rei.
C: Receias? Devo concluir, então,
Que não te agrade vê-lo coroado.
B: Não me agrada; e, assim mesmo, eu o amo muito.”
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É estranho e difícil para nós, hoje, perceber a diferença entre a ditadura e a monarquia romanas. Mais do que de grau, era uma diferença qualitativa. Como a ditadura era prevista no ordenamento jurídico de Roma, o fato de César ter sido nomeado para a função em duas ocasiões anteriores e renunciado para tornar-se cônsul pode ser visto como indicação de que poderia fazê-lo de novo. Plutarco elenca outros motivos, inclusive sua conduta “irrepreensível” após a guerra contra Pompeu, o que fazia das críticas e acusações de seus inimigos exercícios tolos: “eles davam a impressão de atacá-lo pelos motivos mais elevados”, escreve ironicamente. No meio de tantos detratores, o povo o amava: foi erigido um templo dedicado à “Clemência de César”, “para reconhecer sua benevolência”. César, ao mesmo tempo, apelava em Roma para os expedientes mais populistas, seguindo os métodos, aqui já mencionados, que aplicava para contar com a lealdade dos exércitos: “Convencido de que simpatia era a mais bela e a mais segura escolta de que podia se fazer acompanhar, buscou conectar-se com o povo por meio de banquetes e distribuição de trigo, e o exército pelas colônias […]. Quanto aos cidadãos influentes, prometeu a uns consulados e magistraturas, encorajava outros confiando-lhes diferentes funções e honras…”. César teria sido o primeiro líder romano a promover, de forma organizada e regular, divertimentos de grandes dimensões para o povo, entre eles as disputas de gladiadores e torneios esportivos.
A imensa popularidade do ditador, portanto, deve ter em alguma medida contido o ímpeto dos conspiradores. Os humores mudaram quando a palavra “rei” começou a circular: Plutarco menciona o “desejo apaixonado” de César de tornar-se rei. “Foi esse o primeiro agravo da multidão contra ele e, para aqueles que o odiavam em segredo há muito tempo, o pretexto mais especial”. Quando Cassius, o líder dos conspiradores, soube que o Senado iria coroar César no dia seguinte (ato 1, cena 3), antes de sua anunciada partida para conquistar o Império Parta (atual Irã), decidiu agir. A diferença entre a ditadura e a monarquia, repito, não era de grau, mas de natureza: desde a fundação da República, no século VI a.C., todas as tentativas de derrubar o regime de equilíbrio de poderes entre senadores (representantes do patriciado), tribunos (representantes do povo) e cônsules (espécies de chefes do executivo) haviam sido repudiadas com vigor e horror. A monarquia parecia ser tão odiada por nobres como por plebeus — e César sabia disso, como ilustra Plutarco (e depois Shakespeare, na fala de Casca no primeiro ato) no episódio em que Marco Antônio tenta depositar três vezes o diadema na cabeça do amigo, que rejeita o gesto diante da reação de desconfiança do povo. O jovem Brutus, descendente de Junius Brutus, um dos heróis da antiga Roma que destituíram o clã dos Tarquínios, tinha, como bom aristocrata romano, especial orgulho de sua linhagem e carregava como herança o medo da tirania e o ódio aos reis. Foi esse princípio — e essa vaidade — que Cassius explorou habilmente para incitá-lo a se unir à revolta.
A continuação da conversa, que comecei a reproduzir acima, revela motivos bem menos nobres:
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C: …E ele agora é um deus, e o pobre Cássio
É um ser abjeto e deve se curvar
Sempre que César faz um mero aceno.
[ . . . ]
… Ah, pelos deuses,
Como pode esse homem morno e débil
Ultrapassar o majestoso mundo
E erguer sozinho a palma da vitória?
[ . . . ]
César e Bruto. O que há no nome César?
Por que esse nome é superior ao teu?
Escreve: o teu é igualmente belo.
Ou lê: o teu também se afeita à fala.
Sopesa-os: ambos têm o mesmo peso.
Recita-os em alguma invocação: Bruto erguerá fantasmas, como César”.
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(Ato 1, Cena 2)
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Vemos, então, que a chave para a compreensão dos motivos do assassinato de César está, em grande medida (senão exclusivamente), no temor de sua coroação. Mas de onde vem a informação? Do ouvir dizer, como Shakespeare deixa claro a todo momento. Por exemplo, nas palavras de Casca, o mesmo que antes descrevera o episódio da diadema: “…os senadores querem/Declarar César amanhã mesmo;/Ele andará, por terra e pelos mares, / Usando uma coroa, aonde vá […]; isso é o que dizem” (Ato 1, Cena 3). É clara a inspiração em Plutarco, que vagueia entre afirmações categóricas e rumores espalhados pelos conspiradores, um tentando convencer o outro, como aqui, na biografia de Brutus: “Soube, disse ele [Cassio], que os amigos de César apresentarão uma proposição para nomeá-lo rei” (Brutus, X). Shakespeare, contribuindo para a ambiguidade, não deixa o próprio César revelar seus propósitos. Quase decidido a não aparecer na sessão do Senado em que supostamente viria a ser coroado, intimidado pelos sonhos da mulher e pelos maus presságios dos “idos de março”, ele é convencido a comparecer pelo insidioso Décio:
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“Ouve agora. O Senado decidiu
Dar hoje uma coroa ao grande César.
Se mandas lhes dizer que não irás,
Podem mudar de ideia. E, além do mais,
Isso dá alimento à zombaria,
Pois pode ser que alguém venha a dizer:
‘Adiemos a sessão até Calpúrnia
Ter sonhos mais tranquilos e agradáveis!’”
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(Ato 2, Cena 2)
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É sempre bom recordar que César não é o protagonista da peça: suas falas correspondem a apenas 5% do total. A gigantesca presença, no entanto, paira como uma sombra, uma espécie de espírito, sobre os outros personagens. Tudo o que dizem, tudo o que tramam, tudo que fazem e tudo que sofrem, até seus fins, e até a peça seguinte — “Antônio e Cleópatra” — terá como causa e consequência Júlio César. Não é à toa que seu fantasma aparece na tenda de Brutus se anunciando como “teu gênio mau” (“thy evil spirit, Brutus”). Alguns tradutores gostam da palavra “demônio”; eu prefiro pensar numa consciência má.
Brutus, comido pela dúvida, tem um pouco de Hamlet, um pouco de Judas e, como disse, um pouco de Jesus — sua formação estoica nos convida a tal comparação. Ao lado da nobreza de seus propósitos e da relativa inocência que demonstra ao ser dobrado por Cassius, paira, claro, a arrogância e a vaidade do patrício. No belo monólogo do jardim, ele se acha no direito (mais que no dever) de matar a serpente dentro do ovo:
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“À escada vira as costas e olha então as nuvens
Tratando com desprezo os míseros degraus
Que usou para ascender.
Será assim com César?
Talvez: a precaução é necessária. A luta
Não diz respeito ao que ele mostra agora,
Mas posso argumentar: sua essência, dilatada,
Há de crescer a tais e tais extremidades;
E devo então pensar que é o ovo da serpente:
Ao ser chocado, há de tornar-se peçonhento,
E é preciso matá-lo ainda na casca.”
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(Ato 2, Cena 1)
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Desde o momento em que declara amor a César, no Ato 1, até a comparação com a serpente no Ato 2 e a punhalada, no Ato 3, pouca coisa transcorre além da retórica rancorosa de Cassius e meia dúzia de rumores. São poucas as palavras que o convencem. Tudo parece brusco demais. Eis o desconforto, a sensação de que falta alguma coisa. Sabemos que Shakespeare é homem de ação, e é na ação, ou seja, nos feitos ou omissões que seus personagens revelam seu verdadeiro caráter — não nas palavras, que podem ser enganadoras e, quando sinceras, frágeis. E é assim que morre Brutus, traindo o espírito de resiliência do estoicismo com o suicídio, da mesma forma que trai o seu protetor, o homem que o perdoou no campo de batalha (Brutus era aliado de Pompeu) para acolhê-lo quase como um pai. Mas, ainda que seja um autor de ação, e ainda que se recuse a dar aos seus conspiradores a convicção e a solidez de espírito esperadas de assassinos motivados pela política, talvez Shakespeare queira justamente dizer-nos algo com essa inconsistência. Se em nenhum momento ele deixa claro, pela boca ou pelos atos de César, qual destino o esperaria no Senado caso os conspiradores o tivessem poupado, e se ao longo de todo o drama ele nos transmite mensagens ambíguas, ora reforçando a honra e a moral dos assassinos, ora inserindo, aqui e ali, pitadas de inveja, mesquinhez e ressentimento, não seria essa a intenção — a de alertar a audiência para os perigos dos julgamentos prematuros e dos atos mal pensados? Porque, ao final, quando Brutus já se prepara para a batalha, chega a notícia — sempre vaga — dos expurgos e perseguições decretados pelo novo triunvirato:
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“Messala: … pelo banimento e a proscrição,
Em decretos de Otávio, Antônio e Lépido,
Foram mortos cem membros do Senado.
Bruto: Nesse ponto, discordam nossas cartas.
Segundo as que chegaram até mim
Setenta senadores pereceram
Nas proscrições; e Cícero entre eles.”
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(Ato 4, Cena 3)
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Brutus também recebe a notícia, um pouco depois, da morte de sua mulher Pórcia — “morte estranha”, o que leva a crer ter sido mais uma vítima da vingança dos novos senhores de Roma. Matou-se uma serpente para que três ocupassem seu lugar.
Se Plutarco tivesse vivido nos últimos dois séculos, teria feito algumas escolhas indiscutíveis. Napoleão seria uma delas. E como o “duplo” do general, penso que poderia ousar Beethoven, seu contemporâneo quase exato. O compositor, como qualquer ser político do seu tempo — e seria difícil imaginar um artista mais politizado que Beethoven nessa época —, não foi indiferente a Bonaparte, para o bem e para o mal: mais do que simples admiração, nutriu por ele um sentimento de irmandade, de paralelismo, como se as “missões” para as quais tinham sido designados, ou moldados, fossem equivalentes: ambos grandes homens que superaram suas origens humildes e as forças do atraso e do conservadorismo para revolucionarem o mundo em suas respectivas esferas. No episódio que já virou clichê, Beethoven pensou em dedicar sua Terceira Sinfonia a Napoleão; desistindo da ideia (o príncipe mecenas Lobkowitz acabou por receber a dedicatória), manteve o título de “Sinfonia Bonaparte” até saber que o homenageado fora coroado imperador na catedral de Notre Dame, no final de 1804; ato contínuo, riscou o nome da partitura, substituindo-o por “Eroica” e agregando o subtítulo “composta para celebrar a memória de um grande homem”. Beethoven, outro leitor ávido de Plutarco, admirou Napoleão como Cônsul e tolerou o resultado do plebiscito que o conduziu ao posto de monarca absoluto; foi o ato da coroação, meses depois, que o levou a riscar furiosamente a homenagem. Eis a diferença fundamental entre ele e os assassinos de César. Quanto à identidade do “herói”, o grande homem cuja memória decidiu preservar, o debate nunca terminou: há quem aposte numa autoreferência de Beethoven; outros julgam se tratar da figura abstrata, idealizada, do mártir defensor dos ideais humanos; por fim, é plausível que o artista ainda tivesse Napoleão em mente, o “verdadeiro” Napoleão, que morrera no momento em que tirou a coroa das mãos do papa e a depositou na própria cabeça.
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Notas:
[1] Todos os trechos da peça aqui reproduzidos foram traduzidos por José Francisco Botelho (Penguin-Cia. das Letras, 2018)
[2] A tradução inglesa usada por Shakespeare, de Thomas North, tinha como título “Lives of the Most Noble Grecians and Romanes”.
[3] “Vies Paralèlles”. Hartog, François (ed.), Éditions Gallimard, 2001.
[4] Em “Memórias de Adriano”, Marguerite Yourcenar reflete, por meio do seu imperador semi-fictício, sobre os perigos das biografias heroicas: “Quando considero minha vida, fico horrorizado com sua deformidade. A existência dos heróis, aquela que nos é contada, é simples; vai direto ao ponto como uma flecha […] os grandes homens se caracterizam justamente por sua posição extrema, na qual o heroísmo se mantém durante toda a vida. Eles são nossos pólos, ou nossas antípodas”.
[5] Até hoje é bem aceita a hipótese de que Brutus foi filho biológico de César.
[6] Cícero, sempre dúbio, pôs-se contudo ao lado do futuro ditador mais de uma vez, inclusive quando de sua inesperada e precoce postulação ao sumo-pontificado.
[7] De acordo com Plutarco, em um período de menos de dez anos César atacou 800 cidadelas, conquistou 300 nações e enfrentou um total de três milhões de inimigos, contabilizando um milhão de mortos e igual número de prisioneiros.
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