por Márcia Hitomi Namekata
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Haruki Murakami é, provavelmente, o mais conhecido autor da literatura japonesa contemporânea. Sua obra, composta por romances, contos, traduções e ensaios, é internacionalmente conhecida, sendo que boa parte dela já foi traduzida para mais de 50 idiomas. Murakami recebeu também diversos prêmios literários, dentre eles o Gunzô Prize for New Writers (por Ouça a Canção do Vento, de 1979, seu romance de estreia), o Franz Kafka Prize, em 2006, e o Jerusalem Prize, em 2009.
Com um estilo que já cativou leitores em diversas partes do mundo, e de uma influência ocidental marcante que o situa em uma posição à parte entre os autores japoneses, Murakami desenvolve, ao longo de seus enredos, temáticas recorrentes que perfazem um estilo próprio, e que vêm de encontro à própria condição do homem pós- moderno: seus protagonistas são pessoas comuns, solitárias, introspectivas, em busca de uma solução para seus conflitos interiores — normalmente a busca por seu lugar no mundo. É conhecido e apreciado — ou, nem tanto — por suas narrativas onde o real se mescla a uma realidade fantástica, quase onírica, e em cujos enredos suas personagens, em meio à solidão propiciada pela realidade pós-moderna, circulam por mundos distintos.
Ao contrário dos autores do cânone literário japonês — que compreende nomes como Yasunari Kawabata (primeiro Nobel de literatura para o Japão, em 1968), Yukio Mishima, Sôseki Natsume e Kenzaburô Ôe (também laureado com o Nobel, em 1994) — Murakami é motivo de controvérsias na área de Estudos Literários, sendo que sua obra é, por muitos, classificada como literatura de massa. O ambiente acadêmico divide-se entre os entusiastas assumidos de seus escritos, e aqueles que são seus críticos atrozes. Os motivos alegados por este segundo grupo são diversos: do excesso de personagens e narrativas paralelas nos romances mais longos, que acabam por confundir o leitor — como a trilogia 1Q84 (2009-2010) e o romance O Assassinato do Comendador (2017) — ao fato de os enredos do autor pecarem pelo nonsense, passando também pelo excesso de descrições, o que torna a leitura um tanto entediante.
Por outro lado, pode-se dizer que os apreciadores de seus livros também têm pontos a seu favor. A obra de Murakami é passível de ser vislumbrada por perspectivas diversas; mas o que fica bastante evidente em vários de seus enredos e através de diálogos travados com o introdutor da Psicologia Analítica no Japão, Hayao Kawai (na obra Haruki Murakami Goes to Meet Hayao Kawai[1]) é que os temas de suas histórias têm, invariavelmente, uma ligação com os aspectos do inconsciente.
Muitas de suas narrativas têm como ponto de partida um protagonista que vive uma crise existencial e está num período de isolamento. E, de repente, é instigado a reagir, muitas vezes por meio de um “chamado”. Essa fase crítica é necessária para que a personagem “volte à vida”: configura-se num período de luto — um “luto simbólico”, uma fase de transição após uma perda, necessária para que a personagem esteja preparada para viver uma nova etapa em sua vida, que resultará numa tomada de rumo no sentido de um desenvolvimento de ordem pessoal. Muitos dos protagonistas de Murakami são lançados em uma jornada que, sob um viés mítico, irá levá-los a uma descoberta de seu “eu” interior: uma busca não só de um objeto mas também de uma compreensão de si mesmo. E, nos dois casos, essa jornada ao inconsciente levará o protagonista a uma dimensão sobrenatural: o encontro com o que o autor vai denominar “o outro mundo”, “o lado de lá”.
Caçando Carneiros (1982) é o primeiro romance considerado “sério” pelo próprio autor, tendo sido o ponto de partida para a sua decisão de se tornar escritor. Tem início com um funeral e alguns flashbacks, e depois retorna ao tempo presente, com o divórcio do protagonista — decidido por sua esposa. Segue-se a isso um período de um mês em que este narrador — identificado apenas por boku que, na língua japonesa, é o pronome pessoal “eu” em linguagem coloquial — fica em estado de inércia, fazendo suas atividades rotineiras como que “levado pela correnteza”. Até que, pela força de um “chamado”, sua vida acaba por tomar um rumo completamente diferente.
Percebemos esse movimento em vários romances de Murakami:
………….Dance Dance Dance (1988): Boku (“eu”), o protagonista, sente um impulso de retornar a Hokkaido, local onde vivera as aventuras de Caçando Carneiros, seguindo um chamado que ouve e que acredita ser de sua namorada, que o deixou quando chegaram à casa de Rato — o amigo de juventude de Boku —, em meio às montanhas geladas;
………….Crônica do Pássaro de Corda (1994-1995): trata-se do período de inércia em que vive Tôru Okada, o protagonista da trama, que passa por um processo de espera antes de agir, depois de ficar desempregado, ver seu gato desaparecer e ser abandonado pela esposa;
………….Kafka à Beira-Mar (2002): mostra a jornada que empreende Kafka Tamura, menino de quinze anos que é um dos protagonistas da obra, quando sai de casa sem rumo e vai parar em Shikoku, local onde encontrará aquela que julga ser sua mãe;
………….O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação (2013): a obra se inicia com o protagonista saindo de um período de inércia de seis meses, depois de ser afastado do grupo de amigos do qual fizera parte durante um longo tempo de sua vida.
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Essa transformação que decorre do processo de luto faz parte do próprio movimento da vida. E, no caso das obras de Murakami, é a partir desse ponto que vai se iniciar a trajetória do herói, marcada por uma busca, fator que nos permite pensar na ideia da jornada do herói, sobre a qual discorre Joseph Campbell em sua obra O Herói de Mil Faces,[2] de que a aventura do herói costuma seguir o padrão de um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida.
Já mencionamos sobre as personagens solitárias, que parecem ser uma constante nas histórias do autor. Os cenários onde se desenrolam suas tramas pertencem ao Japão contemporâneo; seus primeiros romances, e também outros produzidos posteriormente, como Norwegian Wood (1987), Minha Querida Sputnik (1999) e Kafka à Beira-Mar, são narrados em primeira pessoa, fato que pode sugerir que alguns de seus narradores carreguem consigo experiências vividas pelo próprio Murakami. Para o romancista norte-americano Richard Powers, ele é como suas personagens, “nem totalmente japonesas nem totalmente americanizadas, ele também não participa de nenhum outro grupo identitário. […] As obras de Murakami compreendem a terrível desorientação do capitalismo tardio globalizante e nosso status como refugiados dentro disso”.[3] E, numa demonstração de uma posição dissonante dentro da sociedade japonesa, famosa pelos seus salarymen e pelo pensamento voltado ao coletivo, Murakami declarou que quis ser individual — ideia que se relaciona intrinsecamente à jornada do herói, que é própria de cada indivíduo.
Segundo o editor norte-americano Gary Fisketjon, há algo acerca dos narradores de Murakami — talvez a falta de ego, afeto e direção — que exerce um apelo sobre leitores em países onde as pessoas têm tanta liberdade que não sabem exatamente o que devem fazer com ela. Muitos dizem que suas personagens são excessivamente passivas; no entanto, o autor refere-se a elas como “calmas”, com um tipo diferente de força, o que permite que permaneçam neutras enquanto muitos eventos acontecem em suas vidas.[4]
Retomando-se a ideia de solidão, é possível dizer que muitas das obras do autor aproximam-se das chamadas hard-boiled narratives, ou seja, aquelas caracterizadas pela falta do elemento emocional no comportamento das personagens que, na maior parte dos casos, estão centradas no “eu”. Talvez no caso das histórias de Murakami possamos falar em solidão “não-emocional”, uma vez que, muitas vezes, suas personagens solitárias, embora busquem uma solução para os problemas que uma vez atormentaram suas vidas, acabam aceitando a continuidade da condição solitária, como que numa atitude de conformismo. Na maioria de seus enredos acompanhamos as personagens em suas jornadas solo: elas parecem “confortáveis” em suas rotinas, em seus afazeres cotidianos, passando ao leitor uma imagem de superficialidade. No entanto, em grande parte de suas obras, Murakami opta por dar um destino diverso a eles, impelindo-os a um confronto com o outro mundo (“o lado de lá”), configurando a oposição este mundo X mundo paralelo. A temática recorrente de Murakami acerca dos mundos paralelos consiste em uma das razões pelas quais a abordagem psicológica é largamente utilizada em diversos estudos sobre o autor. Segundo Michael Strecher,[5] a principal justificativa para o fato é a tensão entre o metafísico e o psicológico em sua obra.
Percebemos, em seus enredos, imagens recorrentes, que apresentam uma conexão com o psicológico: poços profundos, túneis, bibliotecas, labirintos e corredores escuros surgem nas obras de Murakami como elementos que estabelecem uma conexão entre “este mundo” e o “outro mundo”, do ambiente urbano a um imensurável abismo cósmico. Segundo Richard Powers,[6] as histórias do autor (re)traçam uma trilha de volta ao local onde ele as encontrou: os psiquiatras chamariam-no de “inconsciente”, ele o chama de “basement” — um local escuro, frio e quieto, um “porão da alma”. Ele diz que esse lugar pode ser perigoso para a mente humana, e é de lá que ele tira suas histórias e as traz para a superfície, para o mundo real.
Essa ideia se relaciona à abordagem do tempo, outro aspecto que chama a atenção na obra de Murakami. Percebemos que, em muitas de suas histórias, em determinado ponto do enredo a passagem do tempo acontece de maneira distorcida, dando a impressão de algo fora da realidade, com a perda da noção de cronologia dos eventos cotidianos. Isso diz respeito à vivência, por parte das personagens, de uma outra dimensão temporal: aquela ligada ao inconsciente, onde a noção de tempo não existe. Trata-se de algo próximo daquilo que presenciamos em um conto de fadas, onde o próprio início da história é marcado por um tempo vago: “Há muito tempo, em algum lugar”, “Era uma vez”, conduzindo-nos a um mundo além daquele em que vivemos.
Em Caçando Carneiros, percebemos que a jornada à qual o protagonista é lançado tem como ponto final um local distante da megalópole em que vive. Boku (“eu”) precisa encontrar um carneiro selvagem com uma estrela nas costas, por ordem de um homem misterioso, testa-de-ferro de um figurão de direita, sob pena de, caso não cumpra tal missão, ter sua vida arruinada como um todo. Boku está saindo de um processo de divórcio, e acaba aceitando a empreitada devido ao incentivo que recebe de sua namorada, modelo de uma campanha publicitária que fora por ele idealizada — e que, como muitas das personagens femininas de Murakami, tem uma caracterização sobrenatural e é a responsável por conduzir o protagonista em sua jornada rumo ao inconsciente. Boku e a moça viajam para um local remoto de Hokkaido, onde viverão uma aventura fantástica, num cenário que, nitidamente, configura um “outro mundo”. É aí que Boku vai finalizar a missão de encontrar o carneiro selvagem e, também, de ter o encontro derradeiro e sobrenatural com Rato, seu velho amigo de juventude, passando por um processo de amadurecimento nesse lugar que é a própria configuração de seu inconsciente.
Os enredos do autor não fogem à regra daquilo que, constantemente, é um motivo de insatisfação entre leitores ocidentais quando o assunto é literatura japonesa: o desfecho das narrativas que, quase sempre, é destituído do típico “final feliz” dos contos maravilhosos ocidentais; ou, então, acontece de forma vaga — o que repercute nas obras (não apenas literárias) japonesas, enfatizando um traço de âmbito cultural dessa sociedade. Uma das razões disso consiste no fato de que o tempo, na cultura japonesa, tem um caráter cíclico, e não linear, como na cultura ocidental. Isso é perceptível desde a cultura clássica japonesa: o final de uma trama não é o seu objetivo último, em especial se considerarmos que uma história é um recorte da vida de uma personagem. Cabe afirmar também que, no pensamento oriental, tudo se ordena pelo ciclo da vida, pela passagem das estações do ano; isso fica bastante claro quando pensamos na poética clássica japonesa. Nas primeiras coletâneas de poemas do Japão antigo, como o Kokin Wakashû (“Coletânea de Poemas Antigos e Modernos”, 905 d.C.), os poemas são divididos por seções, de acordo com as quatro estações do ano — que, por si só, já carregam consigo o simbolismo do próprio ciclo da vida, que se repete infinitamente. Pensemos também nos haiku (ou haikai), forma poética breve de 17 sílabas que se consagrou no século XVII e que faz sucesso até a contemporaneidade, a qual se constrói através de termos fortemente relacionados à natureza e às estações do ano.
Em suas entrevistas, quando indagado acerca do destino de personagens que, simplesmente, desaparecem da trama sem deixar vestígios, ou sobre o significado de alguma passagem de difícil interpretação, Murakami diz, simplesmente, “não sei”, ou que, em maior ou menor grau, suas histórias são “mistérios sem soluções”. Delineiam-se como nossos sonhos, imagens que traduzem aquilo que se passa no nosso íntimo e que, muitas vezes, são decifráveis apenas através de símbolos.
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Notas:
[1] Haruki Murakami Goes to Meet Hayao Kawai. Trad. Christopher Stephens. rad. Christopher Stephens. Switzerland: Daimon Verlag, 2016-2017, 2.ed.
[2] CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. 1.ed. São Paulo: Pensamento, 1989, p.40.
[3] In: TANDOM, Shaun. The loneliness of Haruki Murakami. iAfrica, March 27, 2006. Retrieved 2008-04-24. Disponível em http://entertainment.iafrica.com/features/990664.htm .
[4] PHELAN, Stephen (February 5, 2005). “Dark master of a dream world”. The Age (Melbourne). Retrieved 2008-04-24.
[5] STRECHER, Matthew Carl. The Forbidden Worlds of Haruki Murakami. USA: University of Minnesota Press, 2014.
[6] In: TANDOM, Shaun. The loneliness of Haruki Murakami. iAfrica, March 27, 2006. Retrieved 2008-04-24. Disponível em http://entertainment.iafrica.com/features/990664.htm .
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