Stephen Crane, o primeiro modernista norte-americano

Gênio precoce e escritor à frente de seu tempo, o autor de "O emblema vermelho da coragem", de 1895, protagoniza biografia assinada por Paul Auster.

Em 2017, após publicar seu romance 4 3 2 1 — um calhamaço de 816 páginas, no qual ele havia trabalhado durante anos —, Paul Auster, exausto, decidiu dar um tempo na escrita e se dedicar apenas a ler. Quis o destino que ele lesse alguns contos de Stephen Crane, que ele admirava desde que, ainda jovem, conhecera a sua principal obra, O emblema vermelho da coragem (The red badge of courage), considerado um dos maiores romances sobre a Guerra da Secessão. A partir daí, ele imergiu na obra e na vida de Crane, com interesse cada vez maior. Decidiu escrever a sua biografia e, três anos e meio depois, deu ao mundo Burning Boy — The Life and Work of Stephen Crane (ainda sem tradução no Brasil), outro livro com mais de 800 páginas, uma verdadeira declaração de amor ao gênio precoce que atingiu os Estados Unidos e o mundo como um meteoro no final do século 19, viveu e produziu intensamente e morreu aos 28 anos de idade na Alemanha.

Paul Auster (1947-2024) imergiu na obra e na vida de Crane. Crédito: Bebeto Matthews/AP.

Crane nasceu em Newark (por coincidência, a mesma cidade em que nasceu Auster), em 1871, filho de pastores metodistas. O mais novo de nove rebentos, desde cedo mostrou aptidão para a escrita, e já na adolescência começou a ganhar uns trocados escrevendo artigos e crônicas para vários jornais. Escrevia também poemas, que ele chamava de linhas ou pílulas, e por volta dos 20 anos completou sua primeira novela, Maggie, a girl of the streets, sobre uma garota pobre da região de Bowery, em Nova York, que é obrigada a se prostituir e acaba morta. Imerso no naturalismo mais áspero, com personagens realistas e diálogos crus, o livro foi rejeitado por todos os editores por ser ofensivo e imoral. Crane decidiu publicá-lo com recursos próprios, a muito custo (a pobreza material foi uma constante em sua vida). Mas foi com sua obra seguinte, O emblema vermelho da coragem, publicado em 1895, que ele atingiu o seu ápice criativo e inscreveu para sempre o seu nome no cânone norte-americano, e que fez Paul Auster afirmar categoricamente: “Crane foi o nosso primeiro modernista”. 

Mas o que há exatamente nesse romance de tão especial, entre tantos outros livros escritos sobre a guerra? Primeiro, eu gostaria de chamar atenção para uma peculiaridade que encontramos em alguns gênios da literatura e da filosofia, principalmente aqueles precoces: eles subvertem a lógica que afirma que o acúmulo de conhecimento gera obras melhores. O gênio, precoce ou não, muitas vezes sabe pouco, ou menos que os demais, mas produz algo superior e original. Obviamente há aqueles gênios que trabalham de forma lenta e consistente, e que são também eruditos, como Goethe ou Guimarães Rosa. Mas há também aqueles que surgem do nada e causam uma revolução sem necessariamente dominar por completo o meio em que operam. Penso em Wittgenstein, que ignorava boa parte da filosofia feita antes dele — e fazia questão de dizê-lo.

Stephen Crane faz parte deste último grupo. Ele era um leitor ávido, mas seus conhecimentos literários eram limitados; iniciou duas faculdades, mas cursou apenas seis meses em cada uma, e no período em que lá esteve interessou-se mais em jogar beisebol do que em estudar. Sua formação deficitária fez com que sua escrita fosse repleta de erros ortográficos (“Crane was a wretched speller”, escreve Auster1), e sua ousadia estilística eventualmente esbarra na má gramática — por vezes, parece que ele está numa corda bamba entre o sublime e o desastre, embora jamais caia. Um crítico mais puritano escreveu um artigo à época da publicação de sua obra-prima com o título O emblema vermelho do inglês ruim; outro afirmou que o romance possuía “mais erros gramaticais do que baionetas”. Mas nada disso importava de fato, e os leitores, os críticos mais progressistas e autores como Henry James, Joseph Conrad e H.G. Wells (que se tornaram seus amigos) o consideraram um gênio. Décadas após a morte de Crane, Gore Vidal afirmou que ele era melhor do que Hemingway, que lhe roubou o estilo. Crane podia ser jovem demais e não possuir uma formação sólida nas Letras, mas era uma força da natureza, um astro de enorme energia. Era também um rebelde e agia segundo suas próprias regras. 

Com O emblema vermelho da coragem, Crane extrapolou os conceitos de naturalismo e realismo, ao desvencilhar-se de toda a tradição narrativa do século 19 (Tolstói, Balzac, Dickens), atendo-se ao essencial. Alguns críticos já utilizaram o termo minimalista para descrevê-lo. Talvez porque Crane não tivesse conhecido a Guerra Civil (que terminou seis anos antes de seu nascimento), em O emblema não há uma informação sequer sobre o conflito, sobre onde e quando a história se passa, sobre a escravidão; não há um nome de um general, de uma batalha. Só sabemos que seu protagonista, o recruta Henry Fleming, é da União porque ele recebe um uniforme azul, enquanto os inimigos têm o uniforme cinza. Essa é a única informação histórica do livro, não há mais nada. Ao mesmo tempo, e talvez por não ter informações suficientes para escrever um romance de guerra per se, Crane teve a revolucionária ideia de descrever apenas o que se passa na cabeça do protagonista durante as batalhas, e a natureza à sua volta. O que temos são os pensamentos de Fleming e o que ele consegue apreender da realidade que o cerca. Por esse motivo, sua narrativa também foi chamada de impressionista.

Stephen Crane (1871-1900) foi considerado um gênio por autores como Henry James, Joseph Conrad e H.G. Wells.

Outra característica de Stephen Crane é o seu estilo de escrita. Gore Vidal, cujo primeiro romance, Williwaw, se passa durante a Segunda Guerra, afirmou que leu O emblema diversas vezes, “pelo estilo e pelo colorido literário”. A sua prosa é repleta de símiles e metáforas; segundo Auster, “ler Crane é quase uma experiência tátil”. Por fim, o romance de Crane se diferencia das demais obras sobre a Guerra da Secessão (e sobre qualquer guerra, na verdade) porque estas geralmente são relatos de heroísmo, ou de grande resiliência; já a principal característica do protagonista de Crane é sua covardia. Fleming teme o combate, e foge à primeira oportunidade que surge. Durante a fuga, acaba encontrando outro destacamento do exército da União, se desentende com um soldado e leva uma coronhada na cabeça, abrindo um corte — o tal “emblema vermelho da coragem”. Sangrando, reencontra os amigos, e mente, dizendo que foi atingido pelo inimigo. Ele é então tratado como um herói — e a partir daí se lança aos combates com uma fúria suicida, como se esta fosse irmã do medo. É um estudo psicológico poderoso, e escrito de tal forma que antecipa uma qualidade inerente a toda a literatura do século 20. Conforme aponta Auster, os pensamentos de Henry formam

“o centro do romance, o elemento que distingue o livro de outras histórias de guerra e o transforma em algo que transcende o seu cenário (o campo de batalha) para se tornar um drama sobre a própria consciência. Assim como Fome, de Knut Hamsun, O emblema vermelho da coragem é uma antecipação de fim de século de uma nova estética que começaria a surgir nas primeiras décadas do próximo, e levaria a obras como Ulysses, Em busca do tempo perdido, Enquanto agonizo, Ao farol e vários outros romances estruturados no que eu chamaria de interioridade arrebatada2, que aspira a explorar o interior dos pensamentos e sentimentos de seus personagens. Eu não afirmaria que Henry Fleming prefigura Leopold Bloom, exatamente, mas sim que a preocupação de Crane com o funcionamento interno da mente de seu protagonista compartilha de muitos dos impulsos que levaram Joyce a mergulhar tão fundo nos pensamentos do seu impotente e errante herói”.

Naturalista, realista, minimalista, impressionista, modernista, um dos pioneiros do fluxo de consciência. Todos esses rótulos cabem em Stephen Crane, um escritor à frente do seu tempo — a marca indiscutível de um gênio. Nada mau para um rapazote que conhecia poucos autores e cometia erros ortográficos.

Se o personagem Henry Fleming era covarde e vacilante, o homem Stephen Crane era o verdadeiro oposto: impetuoso e valente, aprendeu a se virar sozinho desde muito cedo. Como seus pais viviam ocupados demais com o trabalho pastoral, o pequeno Crane foi deixado à própria sorte — e talvez por isso tenha começado a tomar cerveja e fumar aos seis anos de idade (sim, você leu certo). Apesar de franzino e de saúde frágil, gostava de esportes e foi um bom jogador de beisebol. Após o sucesso de O emblema vermelho da coragem (que lhe trouxe fama, porém não estabilidade financeira, em parte por contratos injustos, em parte pelo seu próprio perdularismo), ele continuou escrevendo de forma profícua, foi contratado como correspondente de guerra, viajando para Cuba e Grécia, e serviu de testemunha em um processo escandaloso contra uma prostituta chamada Dora Clark, com quem ele foi morar na Inglaterra, e acabou morrendo de tuberculose em um sanatório na Floresta Negra, na Alemanha, em 1900.

Para concluir, eu traduzo o trecho inicial de Burning Boy, de Paul Auster, que mostra que nada como um grande escritor para reconhecer outro:

“Nascido no Dia dos Mortos e morto cinco meses antes de seu 29º aniversário, Stephen Crane viveu cinco meses e cinco dias no século 20, vencido pela tuberculose antes de ter a chance de dirigir um carro ou ver um avião, assistir um filme projetado em uma tela grande ou ouvir o rádio, um homem do mundo das charretes que não viu o futuro que esperava os seus pares, não só a construção dessas máquinas e invenções milagrosas, mas também os horrores da era, incluindo a destruição de dezenas de milhões de vidas nas duas guerras mundiais. Seus contemporâneos foram Henry Matisse (22 meses mais velho que ele), Vladimir Lênin (17 meses mais velho), Marcel Proust (quatro meses mais velho), e escritores americanos como W.E.D. Du Bois, Theodore Dreiser, Willa Cather, Gertrude Stein, Sherwood Anderson e Robert Frost, todos os quais viveram muitos anos do novo século. Mas a obra de Crane, que rechaçou quase tudo que veio antes dele, era tão radical para o seu tempo que hoje ele pode ser considerado o primeiro modernista americano, o homem responsável por mudar a forma como vemos o mundo através da lente do mundo escrito.

Ele deu seu primeiro suspiro em Mulberry Place, em Newark, Nova Jersey, o nono filho sobrevivente de 14 rebentos de seus devotos pais metodistas, Jonathan Townley Crane e Mary Helen Peck Crane. E como seu pai era um pastor que viajava de paróquia a paróquia nos últimos anos de sua carreira pastoral, o menino cresceu sem o comum apego a locais, escolas e amigos, mudando-se aos três anos de idade de Newark para Bloomington (hoje chamada de South Bound Brook), aos cinco de Bloomington a Paterson, aos sete de Paterson para o próximo posto de seu pai, como chefe da congregação da Igreja Metodista de Drew, em Port Jervis, Nova York, uma cidade de nove mil habitantes localizada na junção dos estados de Nova Jersey, Pensilvânia e Nova York, onde os rios Delaware e Neversink convergem, e então, quando o seu pai morreu repentinamente de ataque cardíaco, aos 60 anos de idade, três meses após o oitavo aniversário de Crane, a família se viu obrigada a deixar a casa paroquial, com sua mãe mudando-se para Roseville, em Nova Jersey, uma comunidade/bairro não incorporada dentro de Newark, na divisa de Bloomfield e East Orange, e o menino e seu irmão Edmund (14 anos mais velho que Crane) indo morar com parentes em uma fazenda no Condado de Sussex, depois todos se reunindo em Port Jervis para morar com outro irmão, William (17 anos mais velho) após o qual, em  1883, sua mãe comprou uma casa na cidade turística de Asbury Park, em Nova Jersey (“A meca de verão dos metodistas americanos”), onde o adolescente Crane começou sua carreira como escritor compondo sátiras de verão para outro de seus irmãos (Townley, 18 anos mais velho), que dirigia uma agência de notícias local para o New York Tribune e a Associated Press. A essa época, mais dois irmãos de Crane haviam morrido: em 1884, sua irmã Agnes Elizabeth, aos 28 anos, professora e contista, que havia sido uma segunda mãe para ele e encorajado o seu interesse em livros, morreu de meningite, e, em 1886, seu irmão Luther, aos 23 anos, faleceu ao cair de um trem em movimento enquanto trabalhava como sinaleiro e guarda-freios na Ferrovia de Erie. Após um ano frustrante e abortado como estudante universitário (um único semestre na Lafayette, seguido de outro semestre na Syracuse, onde ele jogou no time de beisebol e se matriculou em apenas um curso), Crane voltou para o sul, para os destinos gêmeos de Asbury Park e a Cidade de Nova York, decidido a se tornar um escritor profissional. Ele mal tinha 20 anos. No dia 28 de setembro, a poucas quadras de onde Crane logo estaria morando em Manhattan, o esquecido Herman Melville morreu. No dia 10 de novembro, a milhares de quilômetros a leste, em Marselha, na França, Arthur Rimbaud morria, aos 37 anos. 27 dias depois, a mãe de Crane morreu de câncer, aos 64 anos. O escritor em formação, recém-órfão, teria apenas mais oito anos e meio de vida, mas nesse curto período produziu um romance que é uma obra-prima (O emblema vermelho da coragem), duas novelas primorosas e de fértil imaginação (Maggie, a girl of the streets e The monster), perto de três dezenas de contos de incontestável brilhantismo (como The open boat e The blue hotel), duas coleções com os poemas mais estranhos e selvagens do Século 19 (The black riders e War is kind), e mais de 200 artigos de jornal, muitos dos quais tão bons que estão no mesmo nível de sua obra literária. Um jovem em chamas de rara precocidade, que foi impedido de viver a plenitude da vida adulta, ele é a resposta americana a Keats e Shelley, a Schubert e Mozart, e se ele continua a viver, como eles continuam, é porque a sua obra jamais envelheceu. 120 anos após a sua morte, Stephen Crane continua a queimar.” 


Marcelo Nunes é escritor e editor-chefe da Editora Nauta.

Referências

AUSTER, Paul. Burning Boy – The Life and Work of Stephen Crane. New York: Henry Holt & Company, 2021
CRANE, Stephen. The Complete Works. East Sussex: Delphi Classics, 2014

Notas

  1.  Algo como “Crane era horrível em ortografia”.
    ↩︎
  2.  Passionate interiority é o termo usado por Auster
    ↩︎

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